*

 

Clenilda amava um chaveiro
sempre que haviam chegado
em ápices de desejo
prestes ela a inaugurar-se
no rito dos casamentos
quase surdo um gatuno
ouvia-se à janela
João era chamado
sozinha ficava ela
(pra somar ao orçamento
trambicava arrombamentos)
foi isto prolongado
setenta vezes a fio
Clenilda era só tranças
ao toucador em frente
trançando os pecados
nas trancas do cio
um dia farta de esperas
encomendou de João um serviço
em segredo, claro, e por isso
mandaram-no até um beco
no beco nada claro
esperou-o nua em pelo
vestia apenas meias
negras de desapego
sua pele muito branca
e assim claras as ancas
mas negra como as meias
a vulva de negra teia
João como ninguém
compreendia fechaduras
e aquela até que enfim
de graça o arrombamento
trambicou co'a pica dura

 

 

 

 

 

 

a musa

 

ficar debaixo da saia
da musa

ver a saia da musa levantar
que nem a de monroe

beliscar a musa
ver se a musa não está
sonhando

não deixar a musa coçar a mão
direita
para dar sorte
e talvez algum dinheiro

ter a certeza de que a musa
acorda bonita

não se encontra uma musa
a cada esquina

desejar saúde caso a musa
espirre
só para ouvir
amém

não tapar os ouvidos nem os olhos
nem sereia nem medusa
é a musa

uma taça de vinho com a musa
faz bem para o coração

jogar a musa do viaduto
conferir se a musa é
de carne e osso

 

 

 

 

 

 

vitamina

 

abacates
pela hora da morte

 

duas tartarugas vivas
não sábias
esperando
na cesta

 

amolar as facas

 

transversal
guilhotina
tartarugas que retornam
ao mar
e engolem areia
pelos pés

 

dois abacates como seios
antigos
capa de revista encontrada
nos melhores sebos

 

leite
pela hora da morte

 

que esguichasse como choro
de mãe
das nervuras verdes
sujas de areia

 

bata tudo no liquidificador

 

duas colherinhas de chá
de baunilha
(essência)

 

não precisa sabão
basta enxaguar
e guardar na gaveta

 

 

 

 

 

 

i

 

nas tardes em que os ossos

não se justificam sob a

carcaça

 

a vida a entrar em mistério

como um trem que rodopiasse

bailarina de ferro prazos

grãos

minério fora

de seu estado rodopiável

 

a vida fogo e fumaça em decúbito

queda

livre-arbítrio de errar

 

a vida com cacos moídos na sapatilha

nas tardes em que os ossos

não parecem acompanhar a carne

e se encontram destroços

como um prédio antigo

ruína

morando dentro de mim

 

 

ii

 

hora que nunca chega

este poema é para ti

um grito alarido de versos

que nem roucos nem tão

dispersos

 

vida que como o trem

passará numa hora exata

que não se sabe nem se anuncia

impossível de anotar quando

a caneta dos dedos estoura

ao seu mínimo contato

borrando a mão desfazendo-a

em negra

negra

volúvel

melada tinta

 

poema que não se deposita

debaixo das unhas

e se tira com canivete

ou se deixa cair em cima

do papel quando a mão lique

faz-se

um poema que não se deposita

 

 

iii

 

basta entrar

num salto

nesta tarde ou noutra

em que os ossos não (s)acodem

e a inércia compele a carne ao

sangue e somos obrigados a viver

do que não criou sozinha a natureza

 

se bastasse estar atento

estaríamos todos

à hora do trem

mantenha-se atrás da linha da plataforma

esta cadeira

deitado na cama

enquanto me lês

andando na rua

sedento de chopp ou no claustro das

elucubrações metafísicas

a vida vem de espanto

e arrasta

quem nesta tarde ou noutra

num salto

não consegue entrar.

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©andré kertész] 

 

 

Diego Fracari nasceu em 91 e foi criado em São João da Boa Vista/SP. Estuda língua e literatura russas na faculdade de Letras. Trabalha com produção editorial e tem feito andanças pelo campo da tradução. Arrisca-se no blogue Fragmentos de nada disso. Vive em São Paulo.
 
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