poema

 

para Clélia

 

Eu deveria ter dito

que os seus olhos castanhos

resumem, neles, tudo o que há no Universo,

tudo mesmo, toda a magia, o espaço e o tempo, a energia, a música, tudo,

mas eu não disse

(talvez por ser tímido, ou por acreditar que a frase sairia forçada e artificial),

e o momento passou.

 

 

 

 

 

 

 

tempo

 

Você se lembra?

De nós dois sentados na areia da praia,

nos fins de tarde

enquanto as crianças brincavam de rolar até o mar,

imitando animais e objetos, que nós inventávamos

e nós dizíamos (algumas eram fáceis, algumas bem absurdas): agora vocês são pinguins, agora geladeiras, agora minhocas, agora siris, agora fogões,

eram infinitas as possibilidades

e nós ríamos muito, eram campeonatos,

eles competiam para ver quem imitava melhor,

e se esforçavam,

e você se lembra como nós manipulávamos cuidadosamente os resultados?

para que no fim das contas desse empate,

e depois todos nós mergulhávamos no mar

para limpar a areia antes de irmos para o chuveiro,

e agora eles cresceram, e nós envelhecemos

e eles mal ficam com a gente

e a brincadeira do pinguim e da geladeira

é apenas uma lembrança cada vez mais distante no tempo.

 

 

 

 

 

 

 

tempo II

 

(atualizando Nabokov)

a vida às vezes não é mais do que observar as folhas da palmeira na casa do vizinho

balançarem ao vento

numa breve manhã de outono

ensolarada, enquanto lá da rua vem o barulho do caminhão de gás

sabendo que a escuridão do tempo que veio antes de nós, e do tempo que virá depois

é infinita.

 

 

 

 

 

 

 

tempo III

 

cacos de azulejos, de xícaras, de telhas, de utensílios indefinidos, e

pratos (ou bacias) de ágata arruinados, espalhados

pelo chão, no ponto onde a areia da praia deserta encontra o

barranco do mato, e

no mato, no meio do mato, um limoeiro velho, folhagens vermelhas, amarelas e roxas do jardim extinto

e também uma banheira uns dois terços enterrada,

querem contar (mas, numa arqueologia sem método, não contam) a história das pessoas que viveram ali,

e que já se foram, sem que saibamos como eram, se foram felizes (e quando), se

viveram tragédias e tristezas (e quando) (e quanto),

como se chamavam (seus nomes e apelidos) e

onde estão enterradas (ou se o mar as devorou).

 

Mas temos fome, então nadamos até o barco, vamos embora dali e

logo nos esquecemos daquele lugar e daquelas pessoas que já morreram.

 

 

 

 

 

 

 

as nuvens

 

nuvens escuras e pesadas como paralelepípedos surgiram no horizonte,

elas vêm rápidas, trazidas pelo vento, eu comentei,

enegrecendo o céu, pesadas, escuras,

pesadas como paralelepípedos, você concordou,

enegrecendo o céu, trazidas por um vento forte que chacoalhava as árvores,

concordamos.

E então você e eu, ali embaixo, nos encolhemos, pois escolhemos,

diante daquelas nuvens escuras e pesadas como paralelepípedos que enegreciam o céu,

nos encolher.

 

 

 

 

 

 

domingo II

 

enjaulado nesta sala, neste apartamento

neste domingo ensolarado de céu muito azul

eu olho o tempo passar

sem ter o que fazer, para quem ligar

pego uma cerveja na geladeira e

lá fora, longe, uma motocicleta ruge, quebrando o silêncio

eu vou até a janela

e olho.

 

 

 

 

 

 

 

um funeral

 

um odor adocicado quase insuportável das flores de lírio (lírio?) e as

coroas com as mensagens de saudade eterna de familiares e amigos, os

castiçais de alumínio prateado com lâmpadas elétricas imitando velas

pelos cantos, as pessoas tentam falar baixo, mas às vezes riem alto, no

caixão, o corpo coberto por flores e o rosto com jeito de cera, quem está é

tia Yolanda, ou o que restou dela, o corpo, o invólucro, tudo com jeito de cera

(ela que era tão viva, tão engraçada, que contava piadas quase sujas e ria de si mesma:

está irreconhecível, não é ela, não pode ser ela ali esticada, e este cheiro de lírios)

então chega a hora, o caixão é posto num carrinho e vai sendo levado

primeiro ladeira acima, depois numa curva à direita, descendo, entre os jazigos

pelas ruas estreitas do cemitério São Paulo,

as pessoas se espremendo em passos curtos atrás do cortejo

óculos escuros, transpiração, todos sob o céu azul e um sol escaldante de verão

agora são os sons agudos dos coveiros quebrando, misturando cimento, abrindo espaço

todos de óculos escuros, transpiração, já mal se ouvem murmúrios,

os únicos sons vêm dos coveiros, inclusive sons de suspiros por causa do cansaço e do

calor

finalmente o caixão é colocado no jazigo, jazigo da

família do finado marido, Paulo, onde já estão os corpos (tragédia) de

uma filha e uma neta de tia Yolanda (tragédia, porque filhos e netos não deveriam ir

antes)

mais barulho de cimento e pás de pedreiro raspando o chão e os tijolos, a porta é lacrada

e as pessoas vão se despedindo umas das outras, óculos escuros

e transpiração, sob o céu azul e um sol escaldante de verão.

 

 

 

 

 

 

 

manhã

 

o dia começava a entrar pela grande janela de vidro,

daquela casa que eu nem me lembro de quem era

o sol vinha batendo de frente, grande, subindo

no horizonte

entre prédios distantes,

iluminando as árvores e os telhados da vizinhança, ofuscando,

na vitrola um disco de Bob Dylan,

Planet Waves, eu acho,

tocava sem parar, indo e voltando, no lado A

e ela e eu abraçados, no sofá,

éramos tão poderosos, éramos jovens, seríamos para sempre

e não queríamos que aquele momento acabasse,

naquela madrugada naquela sala daquela casa daquele sol no bairro das Perdizes.

 

 

 

 

 

 

 

tarde

 

Era preciso falar de tudo, falar tudo.

Era preciso discutir se, conforme a luz, quem melhor traduz em poesia o universo é

uma tela de Monet, uma fotografia de Ansel Adams ou um poema de Du Fu

(um lago francês, uma paisagem de Yellowstone ou a chuva numa montanha chinesa).

Era necessário debater se toda política é corrupta ou se toda corrupção é política,

se nosso relacionamento, com o tempo, mudou, melhorou ou piorou e qual o

impacto do crescimento de nossos filhos sobre a nossa vida, e também sobre

a questão incômoda de envelhecer

e era preciso limpar o cocô do cachorro, molhar o jardim e decidir o que comer à noite.

Mas:            como fazê-lo? diante daquela tarde que caía,

que se dissolvia, rápida, eterna e fugaz, vermelha,

diante daquelas nuvens gordas e róseas que passavam,

diante daquele sol que descia, enorme, escurecendo, a cada minuto, o céu?

Como tudo o que precisávamos falar e fazer seria possível, numa tarde daquelas?

 

 

 

 

 

[imagens ©jimmy brown]

 
 
 
 
 
 
 
André Caramuru Aubert (São Paulo – 1961). É historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas Montanhas (2014), A Cultura dos Sambaquis (2014) e Cemitérios (2014). Há pouco tempo decidiu que já estava mais do que na hora de tirar seus poemas da gaveta e espalhá-los por aí.