Tributo

 

para acalmar um filipino alojado no tórax
um velho poeta aperta macarrão cru
dentro do bolso

já reparou em como uma grande obra
com dois minutos de sono a menos
pode parecer tão ou mais inútil que a dança
ou em como a dignidade
quando incomensurável
beira à pena

um velho poeta
cercado por dois ou três do The London Times
acredita que tributo é o ato mais assombroso
do homem
Tributo é nome de vilão

e isso lhe é tão claro
quanto uma circunferência de sangue
se expandindo no algodão
mas pode ser incompreensível pra você
como as árvores
que escolhem as estações mais frias pra se despir

 

 

 

 

 

 

Manhã

 

 

Rimbaud voltando pra casa 

com uma Síndrome de Estocolmo

adquirida num banheiro público

Piva observando garotinhos a caminho da aula

como uma aranha cujo veneno esfriou pra sempre

Whitman barbado e virgem 

febril numa cabana

Jack Spicer bêbado e paralisado feito a lua

Carver vestindo o seu único terno

pra substituir o extintor do carro

mas antes cospe um krill na boca de sua esposa

Sylvia Plath cobrindo a cabeça com uma meia-calça fumê

porque seus óculos escuros caíram no lago

e sua boneca vodu quer passear no jardim

Bukowski sentado à beira da cama

como Bill Murray no cartaz de Lost in Translation

Emily Dickinson pensando num sepultamento 

com raspas de chocolate e vagalumes 

Corso olhando pro Sucrilhos

preparado com o óleo do cabelo de Ginsberg

Frank O'Hara descolorindo os pelinhos das pernas

pra exibi-las no MoMA

Haroldo de Campos abrindo a porta do banheiro 

e gritando à sua mãe já acabei

rompe o silêncio no céu dos poetas

 

 

 

 

 

 

Breve ensaio acerca do formato da cabeça de Steve McQueen

 

 

1) intro

 

the king of cool exagera no álcool

e abandona cerimônia em sua homenagem

caminhando com os nós dos dedos 

um primata 

na lapela a alça do caixão de Bruce Lee

 

 

2) horizonte lunar 

 

cérebro gradeado pelo tórax

no capacete um coração em pulsações marinhas

pela janela de um reformatório da Califórnia

a lua na funilaria

 

 

3) o chapéu da catedral

 

trigo revolto pela música 

dos pegas de Bonnevilles 1960

ponto da praia em que finais de ondas 

distraem os pés enquanto a areia os suga

só então o desequilíbrio é mencionado

o princípio do corpo descoberto na nuca 

como o que mal trazido à vida

é posto contra a luz

 

 

4) Paris-Dakar

 

publicar a mais fiel biografia de um marinheiro

sua cama amarrotada

promover visitas monitoradas

a cada lombada de ar e vinco

o orgulho com que os sobreviventes

a quedas de raios exibem suas vestes 

chamuscadas

 

 

5) o azul específico de todas as coisas 

 

barrado no inferno

e tarde demais para pegar o paraíso aberto

diz o dublê sob a fuselagem

e o dia amanhece 

no azul de mil caçadas solitárias

 

 

6) ao sul de um quintal qualquer/Paris-Dakar (cont.)

 

a beleza de um deserto recauchutado

com a lona que envolve plantas dos pés

o tempo parado para Sam Peckinpah diante

da profecia de rachaduras que cedem não às tentativas 

mas aos erros

 

 

7) moda

 

charme 

o anúncio da flor delinquente 

acesa sobre um defeito físico

antes que o reparem

embora o tempo já não seja um ponto em questão

 

 

8) túneis de melodia e mentira

 

dúvida outonal e semiaberta

fornos alimentados por trampolins e estalos hippies

um tremor de terra nasce na espinha de Faye Dunaway

e jamais será contido

 

 

9) amianto

 

o ator cínico e sujo

por não resistir à purificação

agora dorme

 

 

 

 

 

 

Tennessee Williams em uma de suas crises nervosas

 

 

levo pra me levantar da cama

o tempo que se leva

pra se recuperar de um luto

 

meus ossos de PVC

e seus refrãos devidamente encomendados

a nórdicos disc-jóqueis

o quase jazz de copos de vidro

chocando-se 

delicadamente 

contra mesas também de vidro

 

levo pra me levantar do chão

o tempo que se leva

pra voltar atrás

 

e com a língua empapada de terríveis domingos

esse Paraguai na minha cabeça

saio pra me drogar e fazer sexo nas docas

 

 

 

 

 

 

Nina Simone

 

 

ele costumava esmagar beija-flores

no para-brisa da caminhonete

mãos fortes

era capaz de partir uma noz

só com a linha da vida

foi preso num parque de diversões

martelo ainda no ar

nem sequer pôde ver o marcador 

subir até o topo da máquina

e eu devolvi o prêmio 

um Snoopy gigante molhado de choro

entregue a mim por antecipação

para incentivá-lo

 

estou num curso de etiqueta

num casarão do Pacaembu

desses que senhoras que perderam tudo

promovem com suas porcelanas lascadas

subir e descer escadas

com a Enciclopédia Britânica na cabeça

pra me livrar do rebolado grosseiro de garçonete

que os anos impregnaram no meu quadril

como uma malha neoprene 

mas hoje ele volta para casa

quinze anos depois

e quando me reencontrar no parque de diversões 

no mesmo velho parque de diversões

quero que me pergunte se sou uma pianista

não uma assassina

com os dedos ensanguentados

de maçã do amor

 

 

 

 

 

 

Bruna Beber

 

 

sua boca

cheirando a Jesus ressuscitado

 

seus cabelos

um prato de lã

 

a governanta alemã

que escancara as cortinas

pra despertar as crianças

 

suas tranças

no primeiro dia frio do ano

um cemitério coberto de neve

 

suas mãos

algemadas pra trás regendo bambus

 

sua voz

impregnada de clube noturno

 

a melancolia é um vestido de noite

usado de dia

 

 

 

 

 

 

Os olhos da minha mãe

 

 

os olhos da minha mãe

me lembram a palavra anistia

cinzeiros de vidro recém-lavados

 

sono entreaberto

é o decote do sonho

de sombrinhas usadas

na corrida entre o prédio e o táxi

 

o broche espetado

na água-viva da alma

buracos no gelo

por onde se safam as focas

 

os olhos da minha mãe

às vezes se fecham à mesa

em nozes que se auto restauram

e nunca me viram abrir um dos meus

durante as orações

 

 

 

 

 

 

Meditação

 

 

andar atrás de velhos lentos

não ultrapassá-los

 

 

 

 

 

 

Carveriana madrugada

 

 

bebê mijado chorando

o casal acorda

para trocar ofensas

 

 

 

 

 

 

Ainda sobre a relação entre suicídio e fuga

 

 

no contorno de giz feito pela perícia

a silhueta de alguém correndo

 

 

 

 

 

 

Marvin

 

 

nos olhos cimentados

do manobrista

Chaplin acenou pra mim

 

leve odor de Gelol

que têm os anjos dos outros

 

sono agitado

das mechas de um maestro

 

que estranha a cidade

vagando no banco traseiro

do seu próprio carro

 

 

 

 

 

 

Uma ideia de morte

 

 

a certeza de que morreremos todos um dia

não impede a deficiência do cérebro na entrega

de tal evento com exatidão

 

você pensa eu vou tocar essa chama

e ele te diz dor

você pensa eu sou mortal

e não há medo algum

 

então você recorre à década de 1990 

quando o seu melhor amigo se enforcou 

com o cordão de um quimono

ou aos seus 17 e o seu avô foi levado 

a um campo em que uma espécie de radiação 

inutilizou os silos da saudade

se você não preferiu o presente

em que a maioria dos seus amigos 

não passam de pufes da erudição 

a morte em vida

 

conclusão 

 

seja aguardando que fique pronto 

o seu passaporte italiano

ou escolhendo saquinhos de chá como antigos LPs

você nunca saberá 

realmente 

para que servem as flores

 

afinal o cérebro está bem longe do deus

diante do qual seu coração entrelaça os dedos

humildemente todas as noites 

farsa que sobrevoa os rochedos das possibilidades

mas temendo explorar suas fendas e pontas

 

e assim a morte segue

como a vida

esse lugar misterioso e nórdico

em que você até poderia mas não

 

a aurora boreal

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©ben zank] 

 

 

Sergio Mello (São Paulo/SP, 1977). Autor de No banheiro um espelho trincado (Ciência do Acidente, 2004) e Inimigo em Testamento (Soul Kitchen Books, 2013). Além de poeta, é roteirista e dramaturgo. Em 2010, a Imprensa Oficial publicou cinco de suas dez peças escritas até o momento.