No país de Alice

 

E quando descobriu o que era ser menino e o que era ser menina, Alice pensou que tivesse nascido ao contrário. Questionados por Alice, pai e mãe reagiram dizendo que "ir contra a sua natureza era como ir contra a vontade de Deus". Tudo bem, mas e aquela história de que "Deus escreve certo por linhas tortas?".

 

 

 

 

Cebolas não choram

 

Quando a mãe tava na cozinha eu sempre chegava em silêncio. Queria saber se andava chorando. A mãe só chorava na cozinha, e acho que às vezes no banho. Mas quando tava comigo ria muito. Só que eu queria pegar ela chorando, pra saber. Daí eu me aproximava devagar, e a TV bem alta na lá no quarto dela onde eu assistia, parecia que eu tava longe longe, e eu me aproximava assim da cozinha com uma lentidão que era só minha e dizia MÃE. Ela tomava um susto cego, e depois se acalmava com os olhos escorregando dos armários aéreos de volta pra pia. Tava cortando cebola, explicava ela, cortando cebola, sim, eu tô vendo, mas por que tá chorando? Não tava chorando, respondia ela, era a cebola, vem aqui sentir, é só se aproximar que sentirá os olhos arderem. Eu não queria testar porque tinha certeza de que não choraria e não queria provar isso pra ela de jeito nenhum, que nenhuma das duas saberia o que fazer com aquela situação. Minha mãe chorava na cozinha, e às vezes no banho, e fora isso a gente era feliz. Só muito mais tarde é que eu fui aprender a chorar cortando cebola. Bem mais tarde. Eu já tinha também uma filha.

 

 

 

 

Conto de cacos

 

Tenho a impressão de ter sofrido um grave acidente há alguns anos. Sinto que pequenos cacos de vidro estão ainda sendo expelidos da minha pele. Quando penso estar recuperada e sorrio, se passo as mãos em meu rosto, percebo nele pontos agudos, saltando-me de dentro. Por serem transparentes, ninguém observa. Mas a mim não podem passar imperceptíveis; me castigam. Às vezes, o desespero de me ver livre deles, me põe a esfregar o rosto, e deslizar as unhas, espremendo-o exasperada. Depois me deixo sangrar, e dou uma gargalhada aliviada. Esses pontos cristalizados sou eu me extravasando. Alguma coisa dentro de mim deve ter se partido, e ainda não cicatrizou. Está subcutaneamente inflamada. Já tentei produtos que fazem descascar a pele, e isso não trouxe os cacos à tona. Já espalhei cremes hidratantes, indicados por variados especialistas, mas ninguém parece entender o meu caso. Eu sou minha única salvação. Eu me compreendo e tenho complacência. Estou me curando constantemente. Vivo a me sabotar, a me encruzilhar, a testar minha capacidade de abstração. Se me distraio, me firo. Se me interrogo, me choco. Tenho estado assim, chocada. Esperando-me nascer. O que será que me aguardo? Que espera absurda me concentra? Estou focada, mas minhas lentes concêntricas embaçam diante da visão exacerbada da realidade. É que me dou conta de que não estou no centro. Sou periférica e inescrutável. Às vezes transbordo, mas quase sempre estou boiando. Planejo minha própria extorsão. Usurpo-me com frequência, tentando persuadir-me de que sou coisa outra. Tenho até uma identidade, números que me são determinantes embora não me revelem. Eu não os escolhi. E se tivesse sido me dada a chance de escolher? Eu me designaria em 5, 8, 2, 9, 0. Não saberia me ordenar. Eu não me obedeço, porque sei que não me condeno. Minha única punição tem esse aspecto de caco de vidro e é de mim expelida como um martírio, cuja dor é pungente, mas não me domina. Estou aberta à dor. Deixo-a entrar, revirar, procurar em mim o que quiser, e sair sem levar-me nada. Meu culto é meu sacrifício, e meu sacrifício é minha libertação.

 

 

 

 

eu-comigo

 

Entrei em uma tal sintonia comigo que estou me adivinhando as vontades, me fazendo favores e me retribuindo. Eu penso em uma música, e me canto. Lembro-me de um filme, e me assisto. Estou disposta a me levar para passear, estou me abrindo aos poucos, me sentindo à vontade. Parece que já me/nos conhecíamos há muitos anos, de outras vidas, só esperando. Noites dessas, eu estava em casa, era verão e o movimento na rua convidava, mas eu comigo esbarrava pela casa, quase confessando que na verdade não me importavam as luzes lá fora; eu ficaria em casa aquela noite, desde que eu estivesse junto. E não foi preciso dizer nada.

 

 

 

 

A salvação

 

Primeiro eu deixei de acreditar em Papai Noel — era a minha avó e algodão — depois no Coelho da Páscoa — eu só acreditava até então porque um dia eu o vi de verdade; mas mesmo tendo visto, faz tempo, e eu deixei de acreditar. Teve também outras coisas em que se acreditam, mas em que eu nunca cheguei a acreditar: duendes (diz a Xuxa que vê), ETs (um monte de gente jura que viu), pégasus, unicórnios (eu acho a coisa mais linda, mas nunca acreditei), entre outros. Depois eu deixei de acreditar em coisas mais sérias: fidelidade, "pra sempre", "nunca". Mais adiante, nos anos 2000, eu deixei de acreditar em Partidos Políticos. Deixei de acreditar em Salário Bruto — eles liquidificam e evaporam da nossa conta. Hoje restam tão poucas coisas nas quais eu ainda acredito — e sei que algumas delas também cairão quando eu tiver a maturidade necessária para vê-las cair — mas estas poucas coisas em que eu acredito, ah, elas me salvam!

 

 

 

©Ann Demeulemeester & Patti Smith

 

 

 

Brechó

 

Voltou à vitrine, após algum tempo. Desta vez exposto, parecia mais vibrante, iluminado, tropical. Já o havia visto, em outras ocasiões, desfilando no corpo de outra. Na época, não reparou além da estampa — e se não tornasse a vê-lo, talvez nem recordasse a cor — não fazia o estilo, e ela usava outra marca. Agora que estava com peso e medida diferentes; agora que era uma pessoa mais solta, que não se limita a um jeans básico com regata branca — nem condena, nem evita; agora que era verão e ela poderia levá-lo à praia, dançar com ele, andar no shopping... Deteve-se na vitrine por minutos. Mas não era impulsiva, e ficou de "pensar melhor". Nem reservou. Ele estava na vitrine, era a última tendência. E quanto mais o vissem, talvez mais gostassem dele, e talvez ele se esgotasse antes que ela o pudesse alcançar. Ponderou tentando conter o receio de vê-lo novamente em outra e dessa vez invejar. Voltou lá mais uma ou duas vezes, até que decidiu experimentar; "só pra ver como fica", disse uma daquelas mocinhas. Pegou na mão, sentiu o tecido entre os dedos. Provou. Achou que combinava. Não era questão de necessidade, sabia que era um capricho. Mas tinha tudo a ver com seus acessórios, com os lugares que frequentava; e porque lhe caiu bem, disseram alguns — mas taí uma ocasião em que não se pode ser sincero — mas quantos motivos é preciso listar para justificar uma consequência de viver? Contente, já saiu de lá com ele. Levou à vista. Sem culpa e sem receio. Dizem por aí que não tira mais do corpo.

 

 

 

 

O Plano

 

Ao girar a maçaneta, abra devagar. A porta irá ranger, e alguém notará sua presença. Entre mesmo assim. Coloque o guarda-chuva no balde que fica ao lado direito da porta, pendure o casaco no cabideiro que está isolado contra a parede, quase de canto. Em dois ou três minutos alguém virá perguntar o que deseja. Se souber, responda — não fará diferença, há uma fila. Talvez sinta-se mais desconfortável sentado num sofá que não tem o seu formato do que em pé, imaginando. Sente-se mesmo assim. Pegue uma revista para ler e finja ter interesse, como se o motivo de ter ido até lá fosse simplesmente pegar aquela — não uma qualquer; aquela — revista para ler. Estará desatualizada e provavelmente você descobrirá, dois anos depois, que a Angelina Jolie acaba de adotar uma criança vietnamita. Não erga as sobrancelhas, não faça do seu rosto um esboço da surpresa. Nem se a Xuxa cantar em trio elétrico, nem se o programa da Hebe sair do ar. Você não está ali para isso, e você sabe — é sempre pior quando se sabe, mas é também um alívio. A tevê estará exibindo uma semissenhora que se comunica com um papagaio; ou um mocotó apresentando um vídeo show. Desista. E quando chegar a sua vez, que disserem nome e sobrenome, e você se reconhecer naquilo, levante-se e vá. É inevitável. E você fará isso tantas vezes que logo lhe ocorrerá naturalmente (tão naturalmente que não fará sentido algum uma instrução desta). Neste plano você tem direito a 24 consultas por ano.

 

 

 

 

Sobrou pra mim

 

Sobrou pra mim. Herança kármica. Ferida pra lamber adoecida por mim. Comprimidos contínuos no pires ao lado da caneca de cidreira. Sobrou pra mim. Um roupeiro, uma cômoda com cupim. Um ventilador que não gira, um aquário sem peixes, um depilador a pilha. Será que eu encontro o que me falta no Móveis Usados? Num sebo, num secos e molhados? Será que encontro na ausência o que me completa, esse ai de mim? Até então passava pelas lojas sem comprar — sem nem me vender; passava os olhos nas vitrines das casas que representavam a família que eu queria ser. Sobrou pra mim. Um gato bordado no pano de louça, uma lã, um fiapo de esperança que espera espera espera... espreguiçando-se do quarto à sala. Um disco do Chico senta e às vezes chora comigo. Um livro do Kundera me concorda e implora por vingança. Mas sou permissiva e aceito o que sobrou pra mim. Uma lanterna, um celular e um laptop. Caso você queira ainda se conectar comigo, ligar pra mim, surgir luz no fim do túnel. Caso realmente tenha sobrado alguma coisa.

 

 

 

 

Viagem

 

Casal recém-formado na fila do avião ansioso para desembarcar. Percebo que recém-formado, pois eles se beijam. Beijam-se na fila que aguarda ansiosa para se livrar do casal que aguarda ansioso para viver sua paixão no Rio de Janeiro. Ele ri. Ela ri. Tudo tem graça. Os dois já possuem um idioma particular — o que me leva a crer que estejam juntos há poucos meses. Todo mundo em pé, aguardando. Estou sentada e amarga. Não tenho ansiedade em nada. Sair. Permanecer. Nenhum lugar me possui ou me espera. Reparo no casal: não são bonitos, mas vestem-se e agem como se fossem, e as coisas são melhores assim. Três pessoas à frente, há um travesti. Tudo nele é maior que em mim: altura, seios, cabelos. Especificamente sobre estes, os tem preso a um elástico rosa. É o único detalhe desconcertante no travesti fora o fato de, nitidamente, ser um travesti. Também eu tenho hoje um ar de traveca das ruas, uma coisa vagabunda que não me convém, que nasceu em mim quando acordei. Tenho vontade de vulgarizar, como um adolescente rebelde tem vontade de pichar os muros. (antes de entrar no avião, o homem que vende água de coco me cantou e eu fingi que gostei; por altruísmo ou empatia) Desde o início da viagem estou desconfortável. Sobrou pra mim um lugar na poltrona do meio, e eu não sei como me portar em situações em que fico no meio; preciso me posicionar em um dos lados. Primeiro tive que pedir licença para me sentar, depois nós dois tivemos que sair para dar licença a um terceiro. Esse terceiro, o felizardo da janela, não precisava olhar para nós. Podia fingir contente alguma contemplação. O outro fingia que dormia, como fazem os da ponta. Eu, desconfortável, mal podia segurar um livro; e pender a cabeça para um dos lados seria dar preferência a um dos dois, e eu levo mais de duas horas pra tomar qualquer decisão. Li todos os avisos escritos na poltrona da frente de modo que comecei a inventar histórias heroicas sobre mim caso caíssemos. Mas não caímos. E eu agora observava o casal iniciante, o travesti mascando chiclete, minha imagem refletida no espelho da mochila do cara à minha frente — como estou velha!... Até que a porta se abriu, e feito gado nos obstinamos a andar.

 

 

 

 

 

 

 

Priscila Lopes (Florianópolis/SC, 1983). Formada em Relações Internacionais, atua profissionalmente como Analista de Projetos & Propostas. Destaque em concursos e seletivas literárias, como o Prêmio Canon de Poesia e o Concurso de Contos Luís Jardim, promovido pela prefeitura de Recife. Em 2009, teve seu conto "O intangível" publicado na Revista Cult (138). Mais adiante, foi contemplada com a Bolsa para Autores com Obra em Fase de Conclusão, recebida da Biblioteca Nacional, com a qual pôde publicar seu primeiro livro de contos Uns traços, todos imponderáveis. Organizadora da coletânea nacional XXI Poetas de Hoje em Dia(nte), publicada pela editora Letras Contemporâneas com apoio do FUNCULTURAL/SC. Selecionada para integrar a antologia Cantares Catarinas — A Nova Poesia Catarinense (2010), da editora Todaletra. Home: pricostalopes.wix.com/priscila-lopes. FanPage: fb.com/priscilal0pes.