[Imagens de Lifelong Learning Labs | Basu Kshitiz | Osvalter | Lesma | Netto | Juan Esteves]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

Desde a teoria das ideias de Platão tem-se uma realidade pensante que a cada novo insight faz o mundo evoluir e o homem mais sábio, mas torna ambos também mais emblemáticos: tanto infinitamente promissores de futuro como potencialmente destruidores do futuro. Não em vão Robert Mallet escreveu que as boas ideias não têm idade, apenas têm futuro. Muito mais do que a previsão dessa "história invisível", as ideias têm uma outra função humana axial: segundo William Shakespeare, as ideias das pessoas são pedaços da sua felicidade. Deve ter sido por isso, talvez, que levou Albert Einstein a afirmar, a propósito, que somente seres humanos excepcionais e irrepreensíveis suscitam ideias generosas e ações elevadas. O que, convenhamos, independentemente de riqueza material, uma vez que, segundo Sartre, o dinheiro não tem ideias. Na verdade, as boas ideias, as ideias úberes, fertilizadoras de novos sentidos e direcionamentos, quando não de paradigmas e de revoluções sociais, científicas e tecnológicas, sempre trazem em si decisões bem fundamentadas que propõem mudanças mesmo ante o desconhecido, donde a ousadia fazer crescer e acrescentar. Isso leva a crer que não devemos ter medo das novas ideias, diz Napoleon Hill, porque elas podem significar a diferença entre o triunfo e o fracasso. O pior, nesse contexto, é não aceitar pensar o novo e acomodar-se para sempre na cristalização das ideias comodistas, anacrônicas, estagnadas, imutáveis. É desconhecer que todo o conhecimento humano começou com intuições, passou daí aos conceitos e terminou com ideias, pensou Kant.

Da Poética de Aristóteles a Heidegger, de Platão a Nietzsche, de Manoel de Barros a Poetrix, de Ezra Pound a Haroldo de Campos, de Vico a Fernando Pessoa, de Adélia Prado a Novalis, de T.S. Eliot a Bashô — por exemplo, — trata-se simplesmente de vivenciar uma verdade comum a todo ser humano, uma verdade doxa: viver uma realidade que pode ser mudada pela própria pessoa que a vive ou ou teme, contingência que a submete a uma mudança em seu livre-arbítrio. "O poeta é poeta por saturação da experiência", diz Goethe numa carta a Schiller. A experiência é o modo como o homem sabe o mundo, diz Gerd Bornheim. Para Mario Quintana a poesia é invenção da verdade. O que "bate" com Novalis: "Quanto mais poético, mais verdadeiro". Há no poeta um filósofo. O poeta é um filosoeta. O poema é um filosoema. Segundo Olavo de Carvalho, filosofema é "o sistema ideal de intuições e pensamentos que se oculta por trás dos textos, sistema que os textos refletem de maneira irregular e desigual, por vezes com partes faltantes, e que só pode ser contemplado por quem o reconstitua. Uma obra poética, para ser compreendida, basta que seja lida, bem lida. Ela posa inteira diante do leitor, pronta para ser contemplada em sua forma que, se é artística, é irretocável".

O bom crítico é um filosoeta. Ele subverte o modo normal de ver as coisas dentro e fora do poema. Ele dinamiza a leitura do poema, ontologiza a poesia. Ele contribui para que haja uma pedagogia da poesia. Para que a poesia se torne objeto de leitura. E assim mantém a dinâmica da sociedade poética. Reúne-se a seguir algumas ideias que fazem pensar a poesia na contemporaneidade.

Dênis de Moraes: "Parece não haver limites para a imaginação. O tímido poeta pode colocar no ar seus versos titubeantes, lado a lado com as homepages de Prêmio Nobel. A obra desliza pelo monitor, em composição sequencial, numa espécie de cibercolagem de interferências coletivas. Contam-se às centenas os grupos de discussão, fóruns, conferências e salas de conversação em tempo real sobre assuntos tão díspares como a literatura vietnamita e a poesia de Manoel de Barros. A literatura eletrônica — sem sobrepor-se ou equiparar-se — sublinha a emergência de um ecossistema fundamentado em interseções comunicacionais que possibilitam uma hibridação entre emissores-produtores e receptores-consumidores. O ciberespaço funda uma ecologia comunicacional: todos dividem um colossal hipertexto, formado por interconexões generalizadas".

Márcio Almeida: "Com ou sem computador, há um excesso de neoliberalismo produtivo-cultural, sobretudo poético, pasteurizando a intelligentsia poética e crítica em função de extremismos, exacerbações arraigadas em idiossincrasias bolorentas, em posicionamentos estanques cristalizados por ideologias déjà vu, em defesas radicais e intransigentes de teorias de areia à beira de um tsunami".

Luís Dohlhnikoff: "O que são, afinal, bons poemas, necessários para que haja bons poetas? Explica-se, enfim, a ausência de grandes questões poéticas: voltou-se ao verso por inércia. E a inércia é autoexplicativa. Inércia, porém, não tem aqui nenhuma conotação negativa. A volta ao verso em si mesma, não indica qualquer deficiência dos poetas contemporâneos, mas o "o pecado original" da teleologia vanguardista. O engano da teleologia vanguardista foi não avaliar corretamente a tremenda inércia histórico-cultural do verso. É possível entender as vanguardas visualistas dos anos 50 como um questionamento do monopólio poético do verso, equivalente ao questionamento da figuração nas artes plásticas e da tonalidade na música. Passado, porém, o momento vanguardista, o resultado não é a substituição de um monopólio por outro, ou seja, o monopólio da poesia visual, do abstracionismo e do atonalismo. A quebra dos monopólios formais e semânticos não faria, neste caso, muito sentido. Trata-se, então, da manutenção da pluralidade. Se a pluralidade não está em questão, não estão em questão os elementos plurais que a constituem. A poesia em verso é um desses elementos. Faz-se poema em verso, hoje, por opção, o que não contradiz a inércia, pois esta explica a sobrevivência do verso, não as escolhas individuais. E uma opção é uma resposta. A grande questão da poesia brasileira contemporânea não está, portanto, na poética, mas na crítica. E a questão da crítica pode ser resumida numa pergunta: onde estão os grandes questionamentos das obras contemporâneas? A questão da poesia brasileira contemporânea está, enfim, na ausência, ou, para usar a expressão de Paulo Franchetti, na demissão — da crítica".

Susanna Busato: "A imagem poética surge como percepção única, singular das coisas. Como desestruturar a camada simbólica desse signo e fazê-lo novamente signo, ou seja, um representamen mais próximo daquilo que nossos sentidos percebem do mundo? (...) A poesia inserida na perspectiva de que 'literatura é novidade que permanece novidade', como Pound a define em seu ABC, conhece muito bem a operação desautomatizadora e metalinguística da linguagem. A tradição que invade a poesia contemporânea nessa concepção a que aludo, desde o simbolismo, passando pela revolução modernista de Oswald de Andrade, caminhando pelas trilhas inovadoras de João Cabral e da Poesia Concreta, essa tradição legou uma perspectiva de escritura que sabe que não há limite possível no processo da construção poética. As molduras entre as linguagens tornam-se tênues em nosso século. A tecnologia digital e o universo da imagem em todas suas manifestações ensinam que não há mundo possível fora dessa dinâmica, desse movimento contínuo das imbricações entre as séries culturais e artísticas e das trocas entre códigos e sistemas. Não há como alijar-se do processo intercambiante de formas, pois o mundo hoje apresenta uma complexidade de conhecimento, cujas fontes são também diversas. Aproximar o distante, promover uma relação fora do eixo lógico-discursivo da linguagem, promover o encontro fono-sintático-semântico entre unidades significantes fora do universo acomodado dos modelos determinados pela língua, é o gesto poético que inaugura para o autor um modo singular de perceber o mundo e de expressá-lo. A leitura de poesia deve perseguir o trajeto do signo na sua arquitextura, pois é nesse percurso que o sentido se constrói e não fora dele. A arquitextura da obra poética é um complexo estrutural que nasce do diálogo entre formas. Estar ciente de que as linguagens caminham no mundo plasmando-se e iluminando-se mutuamente é condição para inserirmo-nos no universo da poesia de modo mais pleno, (...) pois a poesia constrói como um enigma e cada leitura revela-se impotente diante do pensamento abstrato que abriga os sentidos da imagem poética. Sem isso, caímos no conteudismo dos letrados, das discussões temáticas e acadêmicas sobre as influências ou sobre as estatísticas que mensuram a incidência de palavras de tal ou qual categoria no texto do autor, tais preocupações fogem do caráter central e essencial de que se nutre a arte: a linguagem e sua arquitextura e os aspectos intermediáticos com os quais mantém alguma relação. Não é a travessia do rio que importa, mas a permanência no rio".

Márcio Almeida: "Substitui-se ou transfere-se a academia canônica, papal (papa na língua, papa da comunicação, papa-aluna, papa-léguas de distância do "cheiro" de povo, papa-hóstia do "demônio da teoria", papa-defuntos de epitáfios brilhantes) com seus conhecimentos no gesso da metodologia do multiculturalismo, dos entrelugares, em detrimento xenófobo pelo que é nacional, da cultura dita popular, para a academídia planetária, plugada em tempo real e em vias de admitir, ainda que neguem os internautas-referência, não mais uma torre de marfim, mas uma torre receptora/transmissora em banda larga de suas/nossas proezas de silício e congêneres, para uma aldeia não mais apenas mcluhanianamente global, mas com amplitude doméstica sob a ilusória e narcísica acepção de que basta ligar o computador e lá vêm bobagens geniais sob o duplo impacto de recursos informáticos com domínio de programas sofisticados que garantem "efeitos especiais" à linguagem, e o domínio epistêmico adquirido antes da academia-academia. A poesia de hoje resistiria a uma leitura sem a adjetivação conceitual? Sem os ganchos e as sinapses eruditas que per si selecionam receptores, a poesia teria chance de voltar a chegar ao povo da rua? Ou isso é absolutamente irrelevante, desde que Oswald de Andrade anunciou que 'o povo ainda vai comer do meu biscoito fino?'. Existiria, até por necessidade  didática, uma pedagogia poética pós-moderna, ou os próprios loci no tempo veloz da contemporaneidade já se encarregam de munir os adeptos do VLER de vetores de leitura? Os produtores de poesia pós-modernos teriam uma mínima preocupação com a recepção poética? A poesia contemporânea manter-se-á 'nos eixos'? (eixo Rio/São Paulo, eixos paradigmático/sintagmático)?".

Ronald Augusto: "Qualquer discussão séria acerca da poesia contemporânea talvez devesse avançar sobre a questão do espaço de atuação que lhe é reservado. Embora os veículos tradicionais (jornais, revistas, TV, rádio, etc.) persistam como reféns da baixeza insistindo numa recusa frontal a tudo que se aproxime de um lance de pensamento, a internet por outro lado, começa a dar sinais de vida inteligente e às vezes chega mesmo a nos enganar. A internet parece encarnar a imagem desse nosso presente sem margens presunçosamente aparentado a um 'pós-tudo'. E a poesia contemporânea se sente bastante à vontade no interior da fragmentação especular que marca esse recinto virtual".

Márcio-André: "Como dialogar se o interesse se mantém na expressão das vivências pessoais, para aquém de experiências concretas, estas que envolvem um exercício de escuta e abertura do outro?".

 Rogério Barbosa da Silva: "Situar o que seja 'nova poesia brasileira' e em que se constituem suas formas e forças coloca-nos, imediatamente, num paradoxo: seus constituintes, formas e forças, só podem apontar o sentido de uma pluralidade de poéticas, o que nos impede de pensar a poesia brasileira no singular. O que se vê, no imediato de uma apreciação do contemporâneo, são pulverizações das tendências e das tradições literário-artísticas (...). Nessas circunstâncias podemos avaliar a proliferação das revistas literárias e seu papel de divulgar, selecionar, orientar ou organizar tendências vigentes da poesia nos espaços geográficos variados do país, seja no plano da cidade, de um estado ou do próprio país".

Marcelo Dolabela: "O poeta deve habitar 'mídias auxiliares' para se alimentar de outras linguagens e, ao mesmo tempo, mostrar que a poesia é o alimento que perpassa as estruturas mais inventivas das outras mídias. (...) A poesia é a realidade máxima, do ponto de vista humano. Todo poeta, todo poema é participante e participativo. (...) Ao invés de cânones, paideuma. Ao invés do estabelecido, o provisório. Ao invés do para sempre, o nunca mais. O compromisso do poeta é com a poesia, o que já é uma grande jornada. E essa jornada passa, obrigatoriamente, pela invenção, experimentação e pelo fazer-desfazer codificações ou coisificações. Poesia é escrever com borracha".

Nea de Castro: "A fragmentação é estratégica, prioritária na lírica hesitante da atualidade. (...) Uma imagem da contemporaneidade é sugerida, ou apenas pressentida, por Jean-François Lyotard nesta reflexão sobre o pensamento do filósofo e sinólogo François Jullien: um 'longo percurso oblíquo entre terrenos incertos'. Fragmentos do corpo, do desejo, decompõem a cena primitiva, bíblica, da sexualidade. (...) Os poetas atuais, que começaram a publicar entre os anos 80 e 90, retomam essas perspectivas modernas da fragmentação, transformadas pelas poéticas do intermezzo: antilira cabralina, concretismo, poema-praxis, poema-processo, tropicalismo e poesia marginal. Jogos lúdicos, enleios com a linguagem, e a esfinge da nova era em gestão renovam os sentidos de suas práticas fragmentárias".

Joana Sousa Freitas: "Poesia é tudo isto e muito mais, para mim é liberdade de expressão, pureza da alma, sangue que nos corre nas veias com melhor ou pior talento. A escrita é paixão pelas coisas, pelas pessoas, pelo que nos exterioriza e interioriza, o que está no mais fundo de nós, é alegria, tristeza, oscilação e dúvidas, é razão e coração, e o tudo e o nada, o cheio e o vazio. A poesia não serve apenas para ser apreciada, serve também para nos fazer refletir, tentar compreender, como somente para se iluminar por ela".

Dirceu Villa: "Então, como poeta, vou fazer deste "para onde vamos?" um exercício utópico em homenagem a Thomas Morus e a todos aqueles que perderam seu tempo sonhando maravilhas de papel. (...) Finalmente percebemos onde é que fomos parar: não se trata de um paraíso artificial. O que havia antes é que era uma situação impensável, uma coleção de absurdos, o mundo dos livros de Kafka tornado cotidiano e tributável. Agora não estamos mais

naquela farsa meio sombria, é como se estivéssemos acordados sem a transformação em insetos monstruosos como os do pesadelo. Boa sorte para nós, então".

 

 

 

Na nossa insaciável sociabilidade (Kant), vêm abaixo as doces e consoladoras palavras (Jean Molinet), pois o que temos é, sem + hipocrisia, uma solidariedade mecânica (Durkheim) numa época em que  o desconhecido é o irmão lobo, iniciante em que perdura uma solidão que não se vê (Sosêki), quando também nenhuma epopeia erudita escandida por apaziguar o leitor, encantar o ouvido do coração (Philipe Beck), donde não ser possível a literatura dos cordeiros, a individualidade salvável (Adorno), sem renunciar à poesia como causa contra a tirania (P. Beck), como vício impunido (Larbaud) de um resto de multidão perdedora até de si mesma, mas consciente dessa perda, ou prosa do mundo (Hegel) como um tanto do feio realismo da verdade literária (Marthe Robert), especialmente contra o seu inexorável emotivismo moral contemporâneo (Danilo Martucelli) e seu combate espiritual maior que qualquer revolução política (Jeal Paul), a comprovar que toda leitura, boa ou má, é sonho de duração (Philip K. Dick).

O maior erro acadêmico foi achar que tudo da Literatura estava consumado, ainda que o povo não tenha assimilado quase nada de nada nem do Modernismo. Ledo Ivo engano. Nova crítica, recrítica, cricrítica e nenhuma pedagogia para ensinar a recepcionar os contíguos sutis e o jargão da narratologia (Antoine Compagon). Nem é preciso lembrar (ou lembrar sempre) que todas as artes e ciências, a partir do Modernismo, passaram a ter dependência histórica da universidade (idem), donde todo conhecimento outro ter se tornado folclore, doxa, nada. E quando a teoria se fez combate feroz e vivificante (...) contra as ideias preconcebidas dos estudos literários, pronto!, o que restou de nossos amores, ainda Compagnon, foi a vis polemica, os impasses, o terrorismo intelectual.

Chega-se, enfim, a uma escritura proterva = sem fé e sem lei, que lembra a lógica de Dante, a hermenêutica da suspeita dos seus mestres desde Nietzsche a Marx, Feuerbach a Freud, Foucault e Girard, Becker a Agamben, o Julien Gracq que escreveu todas as palavras que conduzem a categorias são armadilhas.   Porque, eis Compagnon com razão de novo, toda teoria é uma ironia.

Chega-se a um ponto em que ler e escrever é aporia: fim de linha de um caminho sem volta. E aí concentra-se um terrorismo intelectual que não se quer admitir ante a hipocrisia da esperança da autoajuda, da New Age, da mística religiosa, da poesia-purpurina, do romance escatológico, mas salvífico, dos segredos do coração best-seller. Em meio à literatura-circo, a literatura-cabeceira-de-insônia, literatura-decorum, literatura-marketing, é o próprio autor que se bane sem pane. Porque incomoda, não é bem-vindo, não edulcora, não exerce + a função de fingidor e está mais como o diabo gosta. É quando ele cria um outro estranhamento — o que fica para pensar o fim da vida: o estar-aí que já foi, agora, sem ocultação de mais nada; o desvelamento de que "o mundo vai acabar", do Baudelaire em Fusées; a desmistificação da "ilusão intencional"; o desarme da surpresa do irremediável. Há um momento em que a criação literária esbarra-se com as trincheiras cotidianas da existência adulta daquilo que é totalmente óbvio (David Foster Wallace). É quando a linguagem exige reinvenção, não um ato continuum, para dizer a opulência do crepúsculo, mas a coralidade dos três tempos juntos em expiação, pois na esteira de novo com Wallace, chega-se ao fato de já estar meio que longe de tudo. É como escrever uma Odisseia com migalhas. Enfrentar um Ulisses joyceano com vírus mais forte que cavalo de troia.

Atestado de óbito, exame médico, bula de remédio, cobranças judiciais, avisos bancários, classificados, página de polícia, resultados de concursos, textos de manuais de aparelhos eletro-eletrônicos, dicionário, graças alcançadas, avisos de abandono de emprego, balanços, expedientes de publicações, serviço de meteorologia, cartas de leitores, anúncios (à exceção de ofertas do dia) seção "Há 50 anos", cadernos específicos, seções específicas, leilões on-line e presenciais, e mesmo tirinhas de cartunistas constituem um tipo de literatura com um corpus de leituras indesejáveis en masse, ou não generalizadamente apreciável por qualquer público, senão por aqueles consumidores de informações muito subjetivas, a maioria de ordem pragmática, segmentativa, que encontra nesses conteúdos um ponto de ancoragem de um dado interesse. Ex.: ninguém lê bula de remédio por indicação médica ou curiosidade, mas, quando o faz, fá-lo por medo. Um leitor de página de polícia a priori só estaria interessado em ler um anúncio de venda de apartamento em bairro de luxo para conhecer as manhas do condomínio para enriquecer seu imaginário de meliante. O leitor de seções "Há 50 Anos", que se presume ser historiador ou pesquisador, não teria outro interesse para justificar sua leitura "desejável" do assunto. Dificilmente leitor comum do que quer que seja leria balanço de empresa, se não for acionista da mesma e tiver rendimento a receber. Ainda que seja assustadora a gama de contraindicações contida em bulas de medicamentos, é ínfima a parcela de gente que as lê, mesmo porque a linguagem científica da posologia é per si desencorajadora da leitura dos indicadores de remédios. Essa linguagem farmacológica, não obstante se saber de sua máxima idoneidade e segurança, torna-se, aos olhos leigos, tão suspeita quanto as poções das bruxas medievais.

Outras questões, a propósito, agregam-se por 'afinidade': (quase) ninguém lê textos longos impressos ou em posts. E essa pré-ojeriza ou apraxia poderá, com a ajuda hoje do tablet, conduzir no futuro tendência à leitura do mínimo como regra. E não é tudo: não é redundância questionar: o que torna um bom livro de leitura indesejável para diferentes leitores, se o que o populariza não é a hermenêutica da dúvida? Mais: ainda que quase sempre de assunto insosso, as leituras indesejáveis poderão, no entanto, renovar o interesse em torno daquilo que já se conhece ou o círculo filológico, ainda que seja para estudos. Na esteira do sempre aplau(d)sível Compagnon (+Bally), a ligação orgânica da forma e do fundo, que permite interpretar um fato estilístico (...) pela linguagem e pela ação dos fatos da linguagem sobre a sensibilidade.

Estas Leituras Indesejáveis presentes são por certo e intenção cheias de ironias e humor, provenientes da parrésia poética, críticas como convêm ao seu legado de procedência, e por isso mesmo uma forma dialógica com um leitor que quer se divertir e pensar com coisas sérias. Mesmo porque, entende-se como Edgar Bayley, que a poesia é esperança viril entre os homens.