[ Homem vestido de Papai Noel toca sino ao chegar de bicicleta para a abertura do posto de correio de Natal mais famoso da
Alemanha, na pequena vila de Himmelpfort, no norte de Berlim. No ano passado, mais de 292 mil crianças de todo o mundo
enviaram seus pedidos de Natal. Todas foram respondidas. Foto Markus Schreiber/AP ]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

[ bryan nash ]

 

 

A coisa se torna interessante quando não se pode fazer nada – Eduardo Milán

 

         O receio de todos era de que tudo desse certo. De que mesmo o defeito fosse resultado de um errozinho genial. De um lapso. Do desligamento da coisa no único instante em que o telefone tocou e, ao ser atendido, foi desligado pelo outro. Não se sabe nem se o outro era a coisa. O medo de agradar a todos poderia encher a memória de remorso. O modo de provocar unanimidade, favorável, o que seria muito pior. Um pré pânico já se sentia só de pensar na incrível generosidade da crítica e na magreza do dicionário após o uso guloso de adjetivos para qualificar o virtuosismo da perfeição. Temeu-se obtusamente pela represália de Deus, pois alguém, em nível mortal e mundano, haveria de comparar a coisa com a magnitude irretocável do Supremo Imprescindível. Pensou-se no alvoroço acadêmico e na profusão de títulos honoris causa que seriam concedidos ao criador da coisa. Ou à própria coisa. E no concurso universal para premiar com generosa e robusta riqueza aquele(a) que de qualquer parte, com qualquer idioma, mesmo de línguas mortas e enterradas, e em qualquer gênero nomeasse a coisa com tal designação que pronunciá-la curaria doenças e inveja, eliminaria o ódio, mataria a fome. Porque então a coisa já não seria mais palavra, pensamento, elemento inusitado a perturbar a harmonia com revoluções adiadas pelo medo do ridículo, pela camisa de força dos dogmas, pelas incertezas das ciências e pela brochante finitude. Ao ser reconhecida, a coisa seria a condição de ser eterna como Deus, perene como a lembrança do amor que fez bem, inesquecível como a cicatriz que ensinou e presente como o movimento pendular do coração da vida. A coisa superaria estilos, genialidades, experiências, promessas por si mesma, pois não haveria parâmetros, analogias, eventos capazes de superá-la senão por outra coisa. A coisa seria (eis outro medo) o big-bang, seu próprio sopro, porque sua origem já viria com o máximo de sua evolução. A coisa seria até mesmo o seu próprio nada (e aí então o pavor com a simples ideia de a coisa vir a ser alguma coisa, qualquer coisa que desafiasse tudo). E tudo teria sido diferente (ou nem teria sido) se ao ser gerada no átimo de sua concepção a coisa fosse abortada. Impossível alegria, uma vez que a coisa era seu próprio esperma, seu mentor, seu desejo de ser. Ou até de anular-se, quando preciso, para não ser mais a coisa, ainda que momentaneamente. Agora o que moía a consciência de terror era a coisa se assumir coisa. Pior: de se descoisificar. E assim deixar um vazio que se suporia buraco negro na coisidade, saudade, dor na alma, último recurso para a razão que deixou de ser razão. De algum lugar do mundo chegou por e-mail a informação de que lá a coisa existiria, sim, mas não se deixava ver. O que levou o povo local a ver a coisa preta até em coisa nenhuma. O que assustava — e muito — era a coisa não ter feição, cor, cheiro, sombra, voz, signo, credo, time de futebol predileto, preferências por cores, tendências, e sustentar tamanho poder diáfano, tácito, insípido, elegantemente formidável stricto sensu. De outra parte veio a notícia de a coisa ser a representação imaginária de tudo o que cansou de ser visto, falado, ouvido, pensado, escrito, assumido como certo e como errado. Porque a coisa superava ruído e silêncio, mantra e pensares levitacionais. Ela não teria aurora nem crepúsculo. Raiz ou sopro.  Aliás, nem se poderia afirmar se a coisa era "a" coisa ou se era "homem". Mesmo porque, não lhe apetecia ser gênero.  Ela seria o que nunca foi. Daí não ser possível um nome para designar o seu ser coisa. Ao pronunciar coisa, crianças poderiam voar, se quisessem, ou tornarem-se imediatamente imunes a qualquer cobrança ética de adultos. A coisa teria poderes nunca antes vivenciados por ninguém e nada. Um deles, muito apreciado, consistia em transferir para seres inanimados dores humanas sopitando no último estágio de tolerância. Assim, alguém acometido(a) por uma puta dor de cabeça, por exemplo, poderia transferi-la para uma pedra à toa e disponível no quintal da casa, ou exposta a um tropeço na rua. Outro poder permitiria à pessoa, quando fosse dormir, desligar-se da vida orgânica, o que resultaria garantir revitalização do organismo e prolongar a existência por no mínimo dez décadas. A própria coisa entendia ser curta e quase sem sentido uma existência humana durar no limite extremo, cem anos. E ainda assim com prevalência da decrepitude na quase totalidade dos sentidos. Economistas e capitalistas repudiaram a coisa desde sempre, por ela dispensar todos os supérfluos, o meramente consumista, o excesso, o non sense do sistema fordista pós-liberal. O medo especulativo e dominador do mercado se justificou pelo fato de a coisa tornar quase tudo inútil, blasé, déjà vu e de ser capaz de transformar o nada símbolo de nada. A coisa teria também o poder de ser, por exemplo, a coisa-livro: qualquer pessoa, mesmo analfabeta, poderia escrever conforme seu desejo, vler sua obra, ou exibi-la como um filme, uma música, uma peça de teatro. Como poderia saber com a coisa-gosto o que seria útil à saúde. Com a vantagem de não ser preciso deglutir iguarias incompatíveis ao metabolismo das vísceras. Muitos confundiram a coisa com provocações de guerras intermitentes, sobretudo no Oriente Médio. Com falsos alarmes escatológicos, com segredos seculares desvendados em filmes sobre códigos de Da Vinci, de alquimistas da hora, com lexemas de libras. Poucos, todavia, tiveram acuidade de notar que a coisa não se consumia em fogo, não adulava seus bajuladores, tampouco se dava ao luxo (e, se quisesse, podia) de antecipar discrepâncias de cúpulas políticas, ajuizar sob decisões logarítmicas, utilizações ultra fragmentárias de íons. Do mesmo modo, ninguém observou qual seria de fato o movimento da coisa, que não se sabia se sob arrastos, em pé, ziguezagueante, imóvel. Por vezes a coisa não se deixava coisar. E aí multidões peregrinavam pelo mundo à procura de suas raras e eficientes aparições. Em alguns casos acreditava-se estar a coisa cuidando em off de suas coisinhas, se bem que nem se desconfiasse fossem elas as(os) coisicas, filhos(as) da coisa, um novo tratado sobre a coisificação, ou simplesmente o que se deixasse ver com a imaginação. Talvez cenas obscenas da coisa, fazendo sexo, mas logo a ideia se desmantelava no mesmo incorrigível nada, pois a coisa era destituída de gênero, número e grau, para muito ou para menos. A coisa tinha todas as idades e quando evocada e pega de bom humor consubstanciava-se no desejo do seu ou da sua evocador(a): — Coisa, torne-se coisa-arte, e lá vinha um museu de tudo com enorme talento coisífico de tutoria de causar arrepios mil nos donos das bienais. De vez em quando pintava no pedaço até uma Mona Lisa básica, a pretexto de desaurar benjamineanamente o negócio de o povão ter que ir à Europa, pagar ingresso carézimo para ver o que só se podia ver na televisão. Que o povão fosse quantas vezes pudesse à Europa, mas não para ver o rosto de uma mulher que não ria. Coisa, torne-se, com alegria, um desfilé, ou seja, um desfile de moças-filés para deleite geral. Aí aparecia uma modelo que caminhava como uma girafa assustada, com os beiços da Angelina Jolie, os olhos da Bruna Lombardi, o rosto da Clarice Lispector, o corpo da Carla Perez (antes do tchan), o charme da Audrey Hepburn, a voz cave da Paula Fernandes e a gulodice sexual da Lady Godiva. Incomodava horrores o fato de ante situações de perigo, a coisa-bunker ter o poder de materializar palavras-protetoras capazes de blindar a pessoa falante sob assalto, sequestro, ameaças verborrágicas de políticos, padres, pastores, camelôs e a tchurma do 0-800. Ao pronunciar a palavra escudo, a pessoa não seria atingida por tiro de tanque, metralhadora de última geração, nem por bala perdida de uma das mais de 11 mil favelas do país. Somente correriam um certo risco as pessoas loquazes, cujos pronunciamentos defensivos profusos acabariam por beneficiar os bandidos. Dizem que no Rio, no Summer’s 2012, uma velhinha aposentada, ao deixar um caixa-eletrônico, foi atacada por um negão-armário, quando pronunciou "Valha-me, meu São Jorge", que, imediatamente, com seu cavalo baio cujo nome é raio, saltou na frente do assaltante com uma espada imeeeennnsa, decepou-lhe a cabeça e a jogou num mangue próximo para alimentar caranguejos. Desde então, a coisa tem sido milimetricamente perseguida em todos os lugares e entrelugares da Terra, por espias contratados por fabricantes de armas e por acadêmicos insatisfeitos com o poder verbivocovisual que dispensa qualquer aparato bélico na defesa de direitos humanos. Soube-se que a coisa só era afetada pela alergia muito forte que sentia por certas palavras como diegésis, apithanon, gonorreia, Hemengarda, transtextualidade, caminhada, comunitário, galera, John Wayne, Richard Gere, Tom Hanks, Congresso Nacional, sertanejo, destarte, outrossim, adrede, data venia, inolvidável e amém. Sempre havia alguém, contudo, que contestava uma ou outra coisa. A coisa tornou-se importante porque lembrava o que era natural. Sem a sofisticação da tecnologia. A coisa era in natura. Podia escrever e receber cartas manuscritas a lápis. Distinguir passarinhos matinais. Cortar massa de pastel folhado. Declinar em latim nomes científicos de plantas domésticas. Prever bom ou mau tempo com o dedo molhado de cuspe esticado ao vento. Visitar pessoas amiúde. Guardar folhas secas em livros raros. Passar noites inteiras em velórios de desconhecidos. Dar puns com cheiros de pomânderes e às vezes de incenso. A coisa não gostava de relâmpagos por temer que seu ser incógnito se revelasse em céu raivoso. Pelo menos era o que se supunha, pois em noites de tempestade a coisa não se manifestava de jeito nenhum. Podia-se, por isso, saber de acidentes, fenômenos, ruindades ecológicas. A coisa não gostava de julgamentos, a começar pelos textuais, porque, tudo indica, tinha respeito ou completa indiferença pelo que se escrevia sobre ela. O que realmente escrever sobre a coisa? O que mudaria com ou sem a coisa? Ela só existia para quem dela fizesse existência. Não existia para quem não a considerasse nem uma coisa. A coisa-em-si podia nem ser em si uma coisa. Podia ser jogo de palavras. Invencionice. A coisa entendia que tudo havia sido escrito e só haveria novidade se uma produção, ainda que mínima, se originasse da neurolinguística, que superasse, porém, o surrealismo, o dadaísmo, as pulsões e os enredos e personagens e cenários e fraseologia e emoções e conseqüências desgastadas por séculos de escritura. Porque nada já se podia dizer da coisa. Ela teria que ser a coisa da literatura, a coisa do poema, a coisa que justificasse a coisa em nome de. Por isso ela não se admitia nem ser o sonho, por ser um diálogo de olho fechado, uma imagem que se esvai em branco na memória, ou que, ao ser lembrado, se tornasse mais uma ameaça do que propriamente um prazer. Poder-se-ia cometer suicídio em sonho. A coisa ensinou, no entanto, que para haver literatura teria de haver um homem para a literatura. Um homem que tivesse a literatura como necessidade. Como ar. Que o fizesse reagir contra si mesmo se preciso, desde que autorizasse a dignidade humana que toda a literatura tratou com palavras por séculos de história. A coisa ensinou que o texto não poderia depender de outro livro para ser texto. O livro que entornasse seu teor alimentaria os famas.  A coisa não poderia se repetir. Fantasiar-se de mesmice. Servir para a erudição gastar-se em conceitos. Fragilizar-se em concessões orais, virtuais, televisivas, holográficas, em remix multiprocessados ou mesmo em omissões da fala, verbos descarnados por apologias, loas em função de arranjar emprego, prestezas vestibulandas, vagabundagens de inteligências boêmias, insights de botecos, puxasaquismos de ocasião, rezas e babados fortes, psiu. A coisa teria de mostrar aos homens que todos são literatura. A frase que tocasse valeria ser obra-prima. O livro em branco, desafio. Best-seller seria o feitor de cabeças. A coisa ensinou que o melhor seria o melhor para muita gente e essa escolha seria feita por muita gente. A coisa mostrou que literatura não era coisa para muita gente. Coisa para muita gente era o que tinha o nome de consumo. Consumatum est. A crítica serviria para difundir o óbvio para um "leitor suficiente". E o óbvio não seria facilitar a ascensão do discernimento da classe da Eja que aprendeu a soletrar o nome do Lula. Tampouco a filosofia de chavões e cartões postais de lugares-comuns. A coisa seria boa quando tocasse os sentidos das pessoas, quando as levasse a pensar o que elas nunca foram, o que as pessoas poderiam ser sem ler e sem pensar naquilo que a coisa indicasse. A coisa seria então tudo o que nunca tinha sido. Nunca se poderia supor, por exemplo, que a linguagem bebesta dos bebês pudesse ser literatura, pelo fato de as pessoas terem superado o estágio de grunhidos e dadás. Como não se supôs que a emoção do aprendizado de palavras pudesse ler o mundo em silêncio. Faltava à coisa, então, deixar de ser coisa. O que deixou de ser foi a literatura. Ninguém se interessou mais pelas(os) mesmas(os) tramas, dramas, chamas, damas, lamas, famas, camas.  Tudo estava muito igual em vozes diferentes. Com verbos similares em roupagens de grifes e brechós. Em dicções regionais. Em rastros mais manjados que endereço de prostituta de interior. Em vaidades carecas e bigodudas. Em clubinhos mallarmaicos e academíticas. A literatura não se merecia mais. Porque virou espetáculo local para estrangeiros fazerem turismo. Ou erupções de conhecimento que ninguém lê. A literatura virou a casaca. Virou mercadoria. Porque sebos passaram a vender mais do que livrarias. Porque os livros passaram a dar status a amebas felizes. Porque toda pessoa que teve um dodói na alma tornou-se escritor(a). E porque muitos leitores tornaram-se mais incuráveis que seus mentores. A coisa foi muito criticada por defender essas teses. Por propor uma literatura sem aspas. Uma literatura sem donos(as). Uma literatura sem lixeratura. Sem recapitulação ou acoplamento. Sem serventia didática, redescoberta de manuscritos ou preconcepção. E sem o discurso da experiência da leitura que só serve para si mesma. E sem babar  sofisticação na teorreia sobre o kitsch. A coisa sofreu muito por propor a exploração do desconhecido. Por ter proposto também que se inventasse novas palavras para dizer o que nunca foi dito. E porque "como a língua, o texto não é mais a palavra de alguém." E deu exemplo: a frase U jAnIlE prU cOA trUzI sAl prU vAdE tanto poderia dizer a janela aberta pro céu traz o Sol pra vida, como teria sentido se apenas ilustrasse a voz do falante ou a leitura com os olhos de brilhos fonéticos matinais. Não importaria, segundo a coisa. A coisa comeu o pão que o diabo amassou por ter posto na roda a recepção em que o leitor não tinha que resolver nada senão praticar a experiência de ler. A coisa trouxe como novidade a leitura + Você, inclusiva do leitor que podia ler todo o texto e tirar sua conclusão tácita, ou ler excertos e inventar o resto de acordo com o seu interesse. O maior barato, no caso, foi a coisa novel acabar com  concursos literários e instituir o leitor luterário sem "ilusão afetiva." Por isso e por um bom tempo, congressos e seminários de literatura deram ênfase ao tema Conclusões Interativas com o objetivo de verificar a qualidade do nós em detrimento do eu-sozinho. O slogan do último evento foi "Eu tenho a forca!" — III Congresso Mundial Heróis da Babel. Nele, todos os dias, três puristas eram simbolicamente enforcados no jogo da forca no qual palavras comuns como angu, cocô, modinha, emoção, eram postas nos tracinhos para adivinhação. Nenhum dos convidados eruditos, figurões, scholars, mega-pós-ultra-doutores foi capaz de matar a palavra-chave para evitar de ser morto pela ignorância...popular. (Haveria, por acaso, uma ignorância erudita?). Infelizmente, a moda acabou por causa do PT, que tentou cooptar o evento, tornando-o absurdamente populista e chato. Uma pena. Era espetáculo inesquecível ver as torcidas organizadas, sobretudo a "Eu sô a coisa gorda , e daí?", antagônica da "Com a coisa presa no seu rabo" se digladiarem em meio a foguetes, charangas e ..... de R$1,99, confete de jornal picado, as mulheres felinianamente gordas com seus úberes chacoalhando, deitando imprecações umas contra as outras: — Cê não é puta, mia fia, v. é apenas uma madre Teresa de Calcutá da cintura pra baixo + essa língua banguela de chupar culhões da senilidade tarada! — Sai de perto, culatrão! Nédia bandida! Sua presença já é uma ofensa aos nascituros! Reparou o mau cheiro? — Deve de ter sido sua mãe que abriu a porta do inferno que são as suas pernas. — Hunnn, olha quem fala! Essa suína famélica, cuja bulimia fê-la comer até o eucológio. — Buchuda, macrossomia! Cê gosta mesmo é de engasgar essa sua garganta de PVC com apecum de macho mesclado com óleo de macacão de mecânico. — T'esconjuro, demônia! Escroto flato! Não é à toa que um peido seu apagou o incêndio de Sodoma & Gomorra. — É a porca falando do toucinho. Quem aqui desconhece que ocê foi levada pro pólo Norte pra impedir as rachaduras das geleiras com seu vomitado? A coisa estava certa: esse mundão veio já foi muito divertido. Por tudo, mas sobremaneira por nada, a coisa é a coisa.

 

 

 

 

 

[ bryan nash ]

 

 

"Morrer é uma coisa fascinante", 13

Na Bunda é o cara, 19

A caminho de casa, 27,

Uma polêmica virtual ou cutucando a onça com vara curta, 53

Love story — 12º dia de separação entre Cláudia & Soren — a carta que a amada nunca enviou, 77

Outro pequeno mistério no pedaço & uma enquete, 78

Uma pontinha de nada do apocalipse: a pira humana na Serra da Verruga, 82

Visita a Carly ou quase isso, 86

Beltrana: as garras do anonimato, 90

Como sentir saudade em silêncio e nem se perdoar pelos pensamentos vãos pelos vãos da casa, 102,

Personagens do romance são mortas antes de se tornarem até mesmo pessoas da vida, 104

I.A.?, 118

Pra você, leitor(a) maravilhoso(a), não achar que o autor está zoando, confira a seguir uma história acontecida recentemente no seu país Brasil, 122

Pra bater um Love tem que haver química: confira como foi possível se apaixonar no itinerário entre um aeroporto e uma casa de cinema..., 129

Lúcia Cradwood — louca, santinha do pau oco, mãe desesperada, 131

Sentir a dor alheia pode ser um remédio, mas pra quem?, 135

Crônica de uma praça assassinada, 136

Promessa é dívida: olha o glossário aí, gente!, 154

De volta ao Hospital do Câncer, 155

Arnold Cradwood não é um caso perdido, 167

Na Bunda, o segundo encontro, 177

"Oh pedaço de mim – oh metade amputada de mim...", 188

Vocês de lembram do desmoronamento do edifício Cobra Nadja, 203

Oaristo, 204

"O acaso vai me proteger, enquanto eu andar distraído", 225

Ponha-se no lugar do(a) outro(a): tristeza é do âmago, nunca dói uma vez só e nunca ninguém aprende a desentristecer, 226

Desgraça pouca é bobagem, 230

Temas para detonar sonhos airosos ou bochichos mil pós-assalto em caixa-eletrônico, 241

Alguma vez na vida você pensou  nisso, 244

Das bananas barulhentas dos assaltos no faroeste aos vírus silenciosos dos hackers, 246

Desgraça pouca é bobagem/2, 251

O desespero é uma pessoa sozinha no meio do deserto, morrendo de sede, de fome e sem falar o idioma do vento. Ou: desespero é uma pessoa sozinha no meio da multidão implorando por ajuda. Muda, 274

A banca, 277

Tresvarios, 291

Pesquisa de opinião literária, 326

Em vez de auxiliar a dor, Maria Auxiliadora aumentava a dor de quem já estava sob sofrimento, 328

Marcas invisíveis doem mais que histórias de cicatrizes salientes, 331

O fim de Doramar com deliciosos lugares-comuns, 332

Bar thes, 335

Advertência: o texto a seguir requer estômago forte – comer com os olhos – comer o livro – comer a bola – comer gente, 342

Suíte do texto anterior: para onde vão mesmo as delícias da repugnância humana? Ou o banquete de plantão, 346

Como o imaginário salvou da morte gestante miserável e seu nascituro ninguém, 366

What's a diffrence a day makes, 376

O anel que tu me deste era diamante e ficou, o dedo, não, 389

Herdeiros de Erínias, 392

Vai fracassar o projeto humano?

Mesmo que o mundo acabe um dia, ele permanecerá por aqui para sempre, e de suas entranhas podres poderão nascer as criaturas põs-apocalípticas, 406

Jornal Pobretal — oferecimento Pobrebrás, 414

"Morreu na contramão atrapalhando o tráfego" – a entrevista que originou o Jornal Pobretal, 419

É um passarinho? Não! É o super-homem? Não! É um baita detrito de nave espacial que pode cair na sua cabeça a qualquer momento e em qualquer lugar. Xô!, 426

Talvez nem Freud explique, mas nós amamos o que nos mata, 427

Pondo a vida em dia, depois da vida, 434

 

PÁGINAS NUMERADAS SEM TEXTO, DEPOIS DA NOVA PAGINAÇÃO

202 – 273 – 290 –

 

 



[ gelo na cratera de marte | 2005 | ISTOÉ/1868-3/8/2005 ] 

 

 

Para uma seleção de somente 24, mais de 165 mil candidatos já se inscreveram para fazer a viagem ao planeta Marte no ano 2023 pela Fundação Inspiration Mars, numa aventura só de ida, com a duração de 501 dias. Ainda que a NASA aposte na eficácia de um motor de propulsão a plasma, que será testado em 2014 pelos astronautas que estarão a bordo da Estação Espacial Internacional, cuja máquina, se aprovada, poderá, numa versão futura, fazer a viagem ao planeta vermelho em apenas 39 dias; ainda que, segundo os especialistas, o ideal de tempo seja de três meses; e ainda que a exequibilidade da missão esteja condicionada a uma série de percalços como surto imprevisto de radiação solar e adaptação do organismo ao ambiente de microgravidade, penso em outro tipo de problema. Penso em algo que pode levar os aventureiros cósmicos ao surto de loucura ou à mais completa indiferença súbita pelo encantamento a caminho de um lugar estranho a no mínimo seis meses de viagem, com temperatura de -63ºC, que não possui água, alimento nem oxigênio para se respirar, tampouco gente de qualquer espécie para se conviver: a solidão.

         Fernando Pessoa teria mesmo razão? "Se te é impossível viver só, nasceste escravo". Não seria a solidão uma forma de egoísmo? Um êxtase para nada? A solidão é a dor de estar só em meio de outros? Não se trata, no caso, de ficar sozinho em meio a uma multidão indiferente, que boa ou ruim está ali ao lado, de frente, junto, humana, pronta para um help, para atender a um apelo, dar uma ajuda, por olho no olho sem capacete, sentir reações instantâneas e ao vivo. Trata-se é de ficar praticamente sozinho e isolado no meio do silêncio de mundos inóspitos, frios, sujeitos às intempéries de um cosmos do qual não conhecemos nada, senão que ele desafia em cada brilho a nossa insignificância e inteligência e faz mais longínqua a eternidade de Deus.

         O que me acabrunha nessa viagem por si tão louca como civilizar o desconhecido é não ter com quem dividir o sonho. É de sentir como o significado de família se destroça numa aventura a 150 milhões de quilômetros de suas raízes terráqueas. É de saber que aquelas pessoas que vão juntas na mesma nave sem retorno são ou serão tão óbvias quanto a última esperança humana ante o desconhecido de nós mesmos. O que nunca soubemos existir em nós agora nos será irremediavelmente revelado, porque não haverá mais nada nem ninguém para saber ouvir o que somos quando temos de nos revelar. Sem culpa e sem remorso, sem medo e sem paixão, só nos restará, pobre de nós, martenautas inconsequentes, nos perguntar, patéticos, o que fomos fazer naquela lonjura intrépida, o que buscamos tanto, distantes de nós, que deixamos tão vazio o coração na hora de partir.

         Para que nos servirá essa viagem? Para imaginar o valor simbólico do espaço? Para que o homem possa conceber novos nichos de renascimento? Para o homem transferir o seu lócus de morte? Para podermos admitir uma ética à inteligência artificial ante o fracasso total da destruição do nosso planeta de origem? Para provar que há 3 bilhões de anos, como quer a teoria de Steven Benner, recentemente apresentada em Florença, a Terra teria se formado a partir do elemento molibdênio, um catalisador apropriado para transformar moléculas orgânicas nas primeiras estruturas vindas de Marte, que então esbanjava oxigênio?

         Haveremos, sim, de colonizar ilhas brilhantes no infinito, porque assim é nossa índole de predadores e porque, disse-o Apolodoro, é o céu que nos governa. Não à toa Ernest Hemingway ter razão: "Um continente envelhece assim que o homem põe os pés nele". E a ficção-científica mostra em sua profusão de filmes: a tendência do homem futurista é a de abandonar suas colônias espaciais como se abandona uma fonte de riqueza esgotada ou uma plataforma de entulho. Nosso futuro é nômade. "O mundo, diz Nelson Rodrigues, é a casa errada do homem". E cada estrela é uma mãe. Por isso iremos cada vez mais longe para ficarmos sempre mais próximos da Luz.

         E nela, cortado que seja o cordão umbilical com a Terra, toda viagem será um risco. A solidão não será, então, o que vai nos deixar falando sozinhos ou vendo rosas azuis que ninguém vai acreditar que vimos um dia no deserto de Atacama. A solidão não será ver o rosto da pessoa de quem se gosta no celular, tampouco sentir o cheiro e o gosto de festa na memória quando bater fundo, bem no fundo, uma saudade de estar com os amigos comemorando simplesmente a vida. A solidão de estar em Marte é que nunca ninguém esteve lá antes pra sentir solidão e poder voltar e dizer: melhor é não ir.