Em aparência, o nome de José Castello não necessita de comentários. Renomado crítico e jornalista cultural, autor do romance Ribamar e das aclamadas biografias de Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, laureado de dois prêmios Jabuti, ele ocupa um lugar de destaque nesse imenso cenário da literatura brasileira. Entretanto, todas as qualidades em foco caracterizam antes um escritor consagrado, um "monstre sacré" das letras, do que uma pessoa em carne e osso. Por isso é que a nossa conversa de hoje se refere, principalmente, ao lado humano de nosso convidado, aos seus "trabalhos e dias" correntes. Vamos discutir o ofício de literato, para assim dizer, em mangas de camisa... [Oleg Almeida]

 

 

 

 

 

 

 

Oleg Almeida - Primeiramente gostaria de lhe fazer a minha pergunta de sempre. Como José Castello se tornou escritor: descobrindo sua vocação de modo espontâneo ou criando-a ao longo dos anos? Foi um processo lento e gradual ou uma epifania?

 

José Castello - Desde que li pela primeira vez um romance, o Robinson Crusoe de Defoe, aos 9 anos de idade, pensei que também queria ser escritor. Mas talvez esse desejo tenha surgido ainda bem antes. A irmã mais nova de minha mãe, Maria da Paz, que é minha madrinha, costumava nos visitar à noite para ler contos de fadas. Fez isso durante muitos anos. Eu me maravilhava com aquelas histórias passadas na Pérsia, na Índia, na Rússia. Minha madrinha ia embora, e eu continuava a sonhar acordado com aqueles personagens fantásticos. Gostava muito (ainda hoje gosto) de "sonhar acordado". Para pegar no sono, em silêncio, contava histórias para mim mesmo. Ainda hoje, às vezes, faço isso. Creio que nesse hábito de narrar histórias em segredo surgiu parte importante de meu desejo de escrever.

 

 

OA - Quais foram os autores nacionais e estrangeiros que o influenciaram naquela fase de formação literária? Fale-nos um pouco sobre as leituras cujo papel educativo ou inspirador foi, a seu ver, crucial.

 

JC - Além do Robinson Crusoe, marcaram-me, de modo muito forte, as leituras de A Metamorfose de Kafka, de O estrangeiro de Camus, e de O lobo da estepe de Herman Hesse, que li no início da adolescência. Desde cedo também comecei a ler os poetas, em particular Bandeira, Vinicius, Cabral e Castro Alves. Cheguei a eles através dos compêndios escolares. Lembro que lia Cabral em sala de aula e lágrimas escorriam em meu rosto. Logo ele, o "poeta de pedra". Mas não para mim: sempre considerei Cabral um poeta da emoção, e foi essa ideia que muito mais tarde defendi em meu livro João Cabral: O Homem Sem Alma, hoje editado pela Bertrand Brasil.

 

 

OA - Sua criatividade não se restringe a uma só área específica. Quem é o senhor: romancista, biógrafo ou crítico literário por excelência?

 

JC - Não aprecio muito essa divisão da literatura em gêneros. Acho que ela só serve para asfixiar a escrita. São recursos didáticos, que se usam nas escolas — mas que dizem muito pouco a respeito da realidade. Vejo isso em meus livros. Alguns ainda não conseguem acreditar que meu romance Ribamar (Bertrand Brasil, 2010) seja, de fato, um romance, preferem achar que é um livro de memórias. Já O Poeta da Paixão (Companhia das Letras, 1993), minha biografia de Vinicius de Moraes, já foi descrita, mais de uma vez, como um "romance envergonhado". Quando a Global Editora resolveu editar uma seleção das crônicas que publiquei em O Estado de S. Paulo — feita por Leyla Perrone Moisés, o que muito me honra —, os editores tiveram dificuldades em escolher se o livro entraria na série "As melhores crônicas" ou "Os melhores contos". Sou um escritor que transita entre os gêneros — e são escritores assim, como Enrique Villa-Matas, Jorge Luis Borges, João Gilberto Noll, os que mais admiro.

 

 

OA - Continuando o tema já esboçado... o que o senhor pensa da universalidade do talento literário? É possível que um escritor seja exímio nos gêneros tão diferentes entre si como, por exemplo, o romance e a poesia?

 

JC - Por que não? A literatura é o reino do particular. Para cada escritor, a literatura é uma coisa completamente diferente. Cada grande escritor reinventa a literatura a seu modo. Tome Pessoa, Virginia Woolf, Cortázar, Kafka, Borges, Villa-Matas, Saramago: o que há em comum entre eles? Muito pouco. E justamente por isso eles são grandes escritores. Na literatura as regras não funcionam. Regras, em literatura, não passam de mordaças.

 

 

OA - Sua carreira na imprensa brasileira tem sido longa e respeitável. Ao trabalhar em tais veículos de comunicação como O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil e O Globo, o senhor poderia contar algo sobre as suas atividades jornalísticas? Seria uma parte inalienável de sua obra literária (aqui me lembro, notadamente, de Mark Twain) ou, antes de tudo, um ganha-pão?

 

 

JC - As duas coisas. O jornalismo foi para mim — e ainda é, no jornalismo literário que pratico — um ganha-pão. Não tenho outras atividades: vivo, exclusivamente, do que escrevo. E no Brasil, tirando Paulo Coelho, Paulo Coelho e Paulo Coelho, quem mais vive realmente de direitos autorais? Bem, talvez Lya Luft, João Ubaldo... Jorge Amado, sem dúvida, viveu também. Mas são tão poucos! Mas, além de ganha-pão, o jornalismo sempre foi, também, uma paixão. As fronteiras entre jornalismo e literatura — pelo menos, segundo a maneira como concebo as duas atividades — são muito estreitas. São fronteiras muito contaminadas. O jornalismo joga você de cara na vida, e essa experiência radical da realidade enriquece, muito, qualquer escritor, de qualquer gênero ou estilo. Agora, preciso admitir também que o jornalismo é uma espécie de atividade missionária, que exige de você 24 horas diárias de dedicação. E isso, se forma e enriquece, também lhe rouba forças e tempo para fazer literatura. Não foi por acaso que só consegui escrever meu primeiro livro, O Poeta da Paixão, depois que, em 1992, abandonei em definitivo as redações.

 

 

OA - Qual é seu modo de escrever? O senhor se solidariza com Baudelaire que valorizava o aspecto técnico da construção textual, pondo em relevo a paciência e a perseverança do escritor, ou acredita naqueles rasgos de inspiração catártica que volta e meia evoca Púchkin?

 

JC - Não gosto da palavra inspiração — lembra as coisas sopradas por anjos, ou por espíritos, e sou, antes de tudo, um cético. Agora, não posso negar que há alguma coisa que se assemelha ao "transe" na atividade do escritor. O escritor trabalha às cegas. Pensa que escreve uma coisa, e lhe vem outra, e escreve outra. Nunca sabe muito bem por onde está indo. Dança em círculos intermináveis, repisa os melhores lugares, as mesmas palavras, retorna e retorna, e nunca está satisfeito. Isso se assemelha, sim, ao transe. Pense nas mães de santo girando e dançando à espera de seus espíritos. Há algo muito parecido no ato de escrever!

 

 

OA - Sabemos que o senhor mantém um blog em que são publicados seus ensaios críticos e resenhas. O que poderia dizer a respeito da Internet? Em sua opinião, ela contribui para o desenvolvimento de novos valores artísticos ou apenas serve de ponto de encontro aos habitantes da "aldeia global" de McLuhan?

 

JC - Ninguém pode ser contra a internet. É tão absurdo quanto ser contra o celular, ou o avião! A questão é o uso que se faz dela. Armada em forma de uma imensa rede, na internet, hoje, temos de tudo. Do pior, mas também do melhor. Claro que ela pode contribuir, e contribui sim, para a aproximação da arte. Mas também pode gerar, e gera, grandes enganos, grandes mentiras e grandes frustrações. A internet é um meio, um veículo — uma rede gigantesca que acolhe a tudo e a todos.

 

 

OA - O senhor tem compartilhado suas experiências com os jovens autores, ministrando oficinas literárias. Acha que existe mesmo alguma receita universal para se fazer, digamos, um bom conto?

 

JC: Não, não existe receita alguma. Digo mais: acredito que é impossível ensinar alguém a escrever. Você aprende a escrever lendo. A função das oficinas, segundo eu entendo, é outra: é ajudar o aluno a se livrar dos vícios, dos clichês, dos lugares comuns, e a se aproximar de sua própria voz interior. Todo grande escritor tem uma voz interior inconfundível. Arranque, ao acaso, uma página de Kafka, uma de Proust, uma de Cortázar, uma de Saramago, de Clarice, e dê a alguém que tenha o hábito da leitura. Se ele for mesmo um bom leitor, depois de duas ou três linhas saberá dizer: é Kafka, é Clarice, é Saramago. Entrará em contato com essa voz interior que é, na verdade, a marca singular que distingue cada escritor de todos os outros. Essa marca não se ensina. Chega-se a ela. O máximo que uma oficina pode fazer — e deve fazer — é escoltar o aluno na direção de sua voz particular. E mais nada.

 

 

OA - Queria perguntar-lhe, por fim, como avaliaria o estado atual da literatura no Brasil. Há grandes vultos na praça, novas vertentes ou, sabe-se lá, até novas escolas literárias estão em franca expansão, ou tem razão quem afirma que "la belle époque" das letras brasileiras ficou no passado?

 

JC: Não temos escolas, não temos grupos (a não ser um ou outro grupelho sem importância), mal temos tendências. O rico hoje é isso: cada escritor segue seu próprio caminho. Essa é, no meu entender, a maior prova da vitalidade da literatura brasileira de hoje. Pense em Noll, em Hatoum, em Raduan, em Sérgio Sant'Anna, em Raimundo Carrero. Vamos aos mais jovens: pense em João Paulo Cuenca, em Tatiana Salem Levy, em Eliane Brum, em Joca Terron, em Carola Saavedra. O que os une? Muito pouco. O que os separa? Quase tudo. Isso é ruim? Isso é ótimo! Insisto: é um sinal indiscutível da fertilidade de nossa literatura de hoje.

 

 

OA - Que tal finalizarmos a nossa entrevista com uma série de perguntas instantâneas?

 

– Seu livro de cabeceira? – A paixão segundo GH, de Clarice Lispector.

– Seu prato predileto? – Nhoque ao sugo.

– A cidade de que mais gosta? – Rio de Janeiro.

– O filme que considera uma obra-prima? – Todos os filmes de Akira Kurosawa.

– Seu time do coração? – Fluminense e nenhum outro.

– Sua música preferida? – Nunca paro de ouvir as sonatas de Beethoven.

– Seu hobby, de modo geral? – Dar longas caminhadas sozinho.

– Seu lema? – Não ter lema algum.

 

OA - Muito obrigado pelas respostas interessantes e enriquecedoras! Tenho plena certeza de que nossos leitores vão gostar de sua entrevista e procurarão conhecer melhor suas obras.

 

 

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[Publicada originalmente na Revista EisFluências, agosto de 2012 (Ano III | Número XVIII), p. 19-20]

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janeiro, 2013
 
 
José Castello (Rio de Janeiro, 1951). Escritor, jornalista e crítico literário brasileiro. Autor dos livros Vinicius de Moraes: O poeta da paixão (1993), João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma (1996), O inventário das sombras (1999), Fantasma (2001), A literatura na poltrona (2007), Ribamar (2010), entre outros, além das crônicas e ensaios literários.
 
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Oleg Almeida (Bielorrússia, 1971). Poeta e tradutor, sócio da União Brasileira de Escritores (UBE/São Paulo). Autor dos livros de poesia Memórias dum hiperbóreo (2008) e Quarta-feira de Cinzas e outros poemas (2011) e de numerosas traduções do russo (Dostoiévski, Púchkin, M. Kuzmin) e do francês (Baudelaire, P. Louÿs). Mais em www.olegalmeida.com.
 
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