{a busca do leitor por vir, denise, o gesto de pierre menard impõe-nos. aquele-não-inventado-ainda. mediante seu próprio labor ledor, o que se descobrirá a si mesmo. ao fazê-lo, recriando-se, recriará a lida obra. que me conduziu até você não foi outro itinerário: despertou em mim a mesma tenacidade, uma vez leitora atenta.}

 

A epígrafe que encima esse texto é uma das muitas peças com as quais um tal 'Hermeneuta Noviço' tenta construir o puzzle de que se compõe a  personagem 'Denise' do romance Le mot juste, o primeiro do escritor Roberto Amaral, lançado em 2011, pela Orobó Edições.

Talvez a característica fundamental de 'Denise' é a de ser uma leitora atenta, uma daquelas que não se conformam tão somente com a tinta preta que recobre as palavras, mas quer arrancar o que elas silenciaram, o que elas não declararam, o que elas gritaram, mas para dentro. Esse modo de ser leitora atenta faz de 'Denise' uma leitora-intérprete inconformada com o não-dito, pois, assim ela crê, há sempre algo mais a ser desvelado pelos caracteres que insistem em macular a virgindade de páginas em branco.

E eis que essa 'Denise'-personagem, ao ser lida, passa a duplicar-se em outras novas leitoras atentas, em outras denises inconformadas com as palavras que foram tatuadas por incontável tempo em objetos-livros. O trabalho de tais denises duplicadas é colocar outra vez as palavras em movimento, não deixá-las sossegar, agitá-las no cadinho das perguntas-ainda-não-respondidas, transformando-as em metáforas sempre vivas.

Eis aqui o caso de uma dessas leitoras atentas, o de Melissa Boëchat, que coloca o autor da obra, Roberto Amaral, na berlinda, tentando arrancar dele a palavra justa que compõe o grande mal-entendido que é Le mot juste.

 

 

Melissa – Roberto, eu queria começar pedindo a você que fale um pouco sobre a construção do romance...

 

Roberto – Bem, Melissa, o argumento de Le mot juste nasceu fundamentalmente da minha condição de leitor, da minha relação obsessiva com os livros. Sempre fui um frequentador assíduo de sebos. O meu maior prazer sempre foi o de reservar, dentro de cada mês, pelos menos dois sábados para visitar sebos. Talvez visitar não seja a melhor tradução, talvez perscrutar os sebos seja a palavra mais justa. Dois sábados nos quais dedico duas longas manhãs a fuçar estantes, a passar em revista um a um cada livro que preenchem seus nichos. Sim, um por um. E, em cada um, cheirar as páginas, olhar longamente a capa, ler as orelhas, a contracapa, e trechos aleatórios. Numa dessas longas e minuciosas buscas, eis que encontro um livro que há muito buscava, Ficções, de Jorge Luis Borges. Ah, foi um encontro soberbo! Abro o livro na página de rosto e vejo uma assinatura, o nome de um local e uma data, 'Denise, Porto Alegre, junho/1998'. Vejo, na sequência, várias passagens assinaladas, ao longo dos vários contos que compõem a obra. Confesso, fiquei um bom tempo a imaginar quem seria essa 'Denise' que se desfez de Ficções de Borges, não sem antes ter sublinhado tantos trechos capciosos. Pronto! Eu tinha nas mãos o enredo de Le mot juste, a demanda pela personagem 'Denise', uma leitora, a um tempo, atenta e desprendida.

 

 

Melissa – Ao considerar que 'o surpreendente não estava necessariamente na obra que lia, mas na nova espécie de leitora que ela [Denise] havia se tornado', a obra se abre como uma caixa chinesa, em que múltiplas instâncias de leitores (internas e externas a ela) se relacionam. Desse modo, pergunto: qual é o jogo proposto ao leitor de Le mot juste?

 

Roberto – Melissa, se há um jogo proposto em Le mot juste, esse o do puzzle, o do quebra-cabeça. O leitor é lançado, assim que começa a ler a narrativa, a se imbuir também na construção da personagem 'Denise', aliando-se (e alienando-se) aos narradores-personagens, 'Borges', o 'Hermeneuta Noviço' e a própria 'Denise'. Não há outra forma de dar sentido ao relato, fundamentalmente elíptico, a não ser que o leitor o inteire com as peças que sua interpretação aponta para um possível encaixe. Pode-se falar também de outro jogo se dando em Le mot juste, o do esconde-esconde, esse um tanto mais lúdico para o leitor que se lançar à obra com o pendor da leitura ingênua, no sentido schilleriano. Lá, ele encontrará motivos para rir de uma personagem que nunca se mostra para a prontidão de quem a busca só pelo prazer de gargalhar junto com ela.

 

 

Melissa – Percebi em sua escrita um movimento pendular de um fazer literário que rompe a linearidade temporal na construção de um agora que se dá na leitura — leitura que é 'devolvida', em um modo contínuo, à história narrada. O leitor faz o que fazem os personagens e torna-se ele mesmo o personagem principal do romance que lê. Como é isso?

 

Roberto – Você está se referindo ao leitor que aceitou de peito aberto o convite para montar o puzlle e brincar de esconde-esconde. Tal leitor abraçou a causa dos narradores-personagens, qual seja, a da demanda pela construção de 'Denise', tornando-se, ele próprio, outro narrador-personagem. Nesse caso, o leitor vê no espelho que deveria refletir 'Denise', a sua própria imagem, aliás, as inúmeras reverberações de sua personalidade produzidas pelos vários cacos de um espelho para sempre estilhaçado.

 

 

Melissa – Seu texto, fazendo uma referência a um dos pensamentos de sua personagem, surge com o 'sorriso nonsense de quem acaba de nascer já maduro'. Conjugando imagens e palavras, Le mot juste busca essa palavra exata e madura, ou o sentimento exato, que parece escapar pelos dedos nos diálogos entre os dois leitores-personagens. Estariam eles buscando esse algo mais ou é mesmo no que se perde entre os dois que está a essência desse algo que lhes escapa?

 

Roberto – Eis uma pergunta de uma autêntica leitora atenta (risos). Maurice Blanchot em A parte do fogo, afirma que 'Kafka quis destruir sua obra, talvez porque esta lhe parecesse condenada a aumentar o mal-entendido universal'. Não encontro tradução, a um tempo, mais precisa e mais contraditória para o fazer literário, do que esta apresentada por Blanchot. A meu ver, essa frase traduz o background de Le mot juste, qual seja, o de revelar o eterno mal-entendido que foi, é e será continuamente produzido pela literatura. Em outras palavras, o mot juste, essa tal palavra justa, que uma vez declarada se consubstanciaria na clarividência da compreensão da condição humana simplesmente não existe. O mot juste sempre redundará num retumbante fracasso, o que faz da literatura a arte do impossível e, em razão disso, uma arte humana demasiado humana. Daí, a busca incessante de leitores e escritores pelo alfarrábio definitivo, aquele que nos conduzirá de volta para a pré-Babel. Dessa forma, Melissa, o diálogo que se estabelece entre o 'Hermeneuta Noviço' e 'Denise' no espaço inencontrável de Le mot juste é feito desse plus ultra que sempre culmina em acúmulos e perdas, e é justamente aí que se encontra a fraqueza e a força da narrativa.

 

 

Melissa – Em alguns trechos que me intrigaram fiz algumas anotações que gostaria que você comentasse, tomando sua concepção de literatura e seu romance como base para tal:

a)     a primeira: 'A realidade é a ficção construída por meio do olhar do leitor';

b)    'Buscar na obra alguma verdade, ainda que ela esteja mesmo fora do texto (em uma assinatura)';

c)     Denise: escrita? ou além-literatura?;

d)    cito seu personagem: 'você, eu e ess'outro personagem que nos olha com distraída atenção. passemos-lhe o bastão!'. Questiono: 'Personagem consciente do leitor?'.

 

Roberto – Se você me permitir, responderei a essas questões num esquema bate-bola:

a)    se 'a realidade é a ficção construída por meio do olhar do leitor'? Penso essa questão ao lado de Paul Ricoeur. Em sua tríplice mimese, ele aponta a refiguração como o terceiro momento de um longo arco hermenêutico, que se inicia com a prefiguração (toda a atmosfera que envolve o ato criador do autor), passa pela configuração (a obra consumada), e alcança o encontro entre o mundo da obra e o mundo do leitor, ou seja, o momento da referência metafórica. A refiguração, dessa forma, se constitui na condição do leitor pós-leitura/interpretação da obra. Ele verá o mundo da mesma forma que antes? Ele quererá mudar o mundo, mudando, em primeiro lugar a si mesmo? George Steiner afirma em Linguagem e silêncio, que 'Quem leu A metamorfose de Kafka e consegue se olhar no espelho sem se abalar, talvez seja capaz, do ponto de vista técnico, de ler a palavra impressa, mas é analfabeto no único sentido que importa';

b)    em relação a 'Buscar na obra alguma verdade, ainda que ela esteja mesmo fora do texto (em uma assinatura)', se 'alguma verdade' quiser significar a busca de dar sentido à nossa humana condição, concordo inteiramente com a afirmação. No meu caso, como autor, quis dar sentido à autora daquela assinatura ('Denise'), construindo uma obra para dar-lhe vida. No caso do leitor, ao ler a obra, contribuir para que a vida de 'Denise' tenha sentido. No caso de ambos, do autor e do leitor, encontrar na obra algum sentido para suas próprias vidas;

c)    'Denise: escrita? ou além-literatura?'. A meu ver, 'Denise' representa ambas as coisas. Por ser escrita, e escrita literária, transforma-se, pela leitura em além-literatura;

d)    Sim, pela constituição da obra, a personagem tem consciência de seu possível leitor. Consciência, no entanto, de um único tipo de leitor, o atento.

 

 

Melissa – Para terminar, uma parte me marcou muito, lerei aqui o trecho ao qual me refiro: {a recusa em dar-me definitivamente em situação, dispensando-me da condição de personagem e conformando-me em pessoa, está no fato de, nesse preciso momento, eu começar a morrer. eis tudo: tornar-me mortal é ao que me oponho, definitivamente. na realidade, já morri uma vez, e o limbo do esquecimento é demasiado terrível, insuportável!, eu diria.} Gostaria que você falasse um pouco sobre essa ideia de oposição entre personagem/pessoa, morte/presença (não esquecimento); como isso opera dentro do romance? Ou a operação é justamente extrapolar o romance, sugando esse leitor-pessoa-personagem para a vida interior da literatura?

 

Roberto – A esse respeito, gostaria de retomar uma frase de Paul Éluard, a saber, 'o duro desejo de durar'. Penso que o que 'Denise' trata é disso, do antigo desejo do ser humano de alcançar a eternidade. De durar para sempre. Mas é sabido que a luta contra o tempo e contra a morte é uma luta vã, inglória, natimorta. No entanto, alguns poucos de nós, os artistas, encontraram uma maneira de permanecer no mundo para além da morte física. De que forma? Ao deixar sua obra como legado, como o último recurso de ganhar uma sobrevida na memória do que ficaram e dos que virão. Eis o temor de 'Denise', o de, uma vez tornada humana, assim como quer o 'Hermeneuta Noviço', ficar exposta à mortalidade, à velhice e ao esquecimento. Melhor, então, não seria permanecer como personagem de uma obra que lhe assegurasse sobreviver às terríveis mazelas de uma humana condição? Melhor não seria aguardar, ainda que empoeirando-se nas estantes de um sebo, que um leitor atento a resgatasse e a apresentasse para outros leitores, também atentos, dispostos a retê-la na memória?

 

 

Mais sobre o livro na Germina

> A Multiplicação de Textos de Le Mot Juste, por Ronald Augusto

 

 

 

 

 

 

Melissa Gonçalves Boëchat. Doutora em Literatura Comparada pela UFMG/Birkbeck College/Londres. Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Graduada em Letras pela UFMG e em Comunicação Social pela PUC-Minas. Atualmente, é bolsista PRODOC-CAPES na UFSJ. Seus interesses de pesquisa são Literatura e Imagem, Literatura e Antropologia e Fotografia.

 

 

 

setembro, 2013