©margarita georgiadis
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

[respiro a possibilidade...]

 

respiro a possibilidade esvanecida, nuvem

aqui (letras formais de cartas para refugiados) começa: por

 

ventura acariciaste com todas as chagas minha técnica de dizer, foi escura, parda nas maneiras de arrastar o último lume de seda sobre a curvatura de lajotas azuis: rosto de nuvem.

 

Almejei queimar

as mãos além dos teus fios, conceber a exatidão que supus te basear, teu fim se encontrar (varanda intensa) com a sustância solar — decerto a cada sol sombrio me converti mais a não só amante mas filho, apêndice da carne de teu rumor.

 

Penso d.e.u.s, uma flor rebentou de agonia,

de água que lateja, cultivei a paixão como uma placa sobre o asilo dos alucinados, no gesto que me desenhou irmãos (os bezerros fortalecidos nas tetas da velocidade) também ceguei — furtou-se da alegria de prever a gravidez que te banhou em existires.

 

Incha o vácuo do pulmão, agora — ... — necessitas das fibras, da força que desenvolvi nos joelhos, meu modo trepar e criar caretas frente ao espelho, para maquilar com pós a claridade quebrada de um ser sequer, portanto me precedes, enreda em jogos fóbicos, sabes do deserto a nos desfigurar, nuvem,

 

de roturas, capaz de possuir.

 

 

 

 

 

 

[Um terror de cães...]

 

Um terror de cães com a rua dobrada (o vento a arder uma representação violenta da passagem), recado posto em meio à brancura da geladeira, lembro dum grito colorido de

sirene: apalpar a noite é um começo de escrita, falávamos disso, os nossos labirintos,

 

e dissolvendo o açúcar

de cada angústia no nosso demônio bêbado: transávamos o desejo se inventando, as infâncias comedoras de éter. Periferias,

 

tiro, bala, bilhetes como corpos transpirantes para drogar os olhos, e após as linhas, no fundo sanguíneo de paredes úmidas.

 

Redigidos à mão nervosa, solucionaram encontros sob uma janela de fundos falsos. Olha lá fora, na esquina dos versos envelhecidos,

onde marcham são já os que não deveriam passar, temperados pela escuridão (sobre eles, idealistas conjecturarão a maldade), repara que

 

tremeluz em cada a feição própria do

abismo.

 

(Deve recordar que chorei, derradeiro, o hino socialista que cantou seu sorriso.)

 

 

 

 

 

 

[Capaz de dizer tantas coisas...]

 

Capaz de dizer tantas coisas, floreios caldais, e por isso nosso sangue se furta no instante da explosão,       transfigurado, transoutro — homens de branco atravessam o corredor, retirar das tomadas, uma a uma, desesperanças (faúlhas luzentes, oclusas: de repente): escutei o rumor

 

da circuncisão

 

 

(p á s s a r o s, p á s s a r o s, p á s s a r o s)

 

 

onde pulverizam nossos dedos é já a primavera visceral,

onde tripas de cocaína retiram as redes, o amparo, deixam o que extrapola de caos as cabeças na multidão: respirou?

 

são socavas no sol, avante à paz do organismo puro (não há, e repara na altivez das prostitutas, o sorriso faiscante estrangulado no ninho)

 

sentamos, dinheiro enrolado em mãos trêmulas, é sujeira que cai do lábio, o refeitório transtorna, bandejas representam fanáticos pelo medo — haverá comida depois?

 

me ensina

a falar horda, tribo, com as pilastras cadentes das funções corrompidas, o céu grafitado à insônia urbana: bichos acuados dentro do orvalho, da saliva de deus (ágrafa, voluptuosamente inexistente): em fuga

 

Ele veio porém (Ela, letra transexual), partes de mim pulsam, pulsam, as paredes estão encharcadas

 

(não há parede)

 

o coração faminto enferruja de fome os trincos

 

das janelas,

 

e querer um faisão, quero-o ave de recados: quero caçar no bico o fundo da mais fatal palavra, é uma viagem estar vago, ansiosamente perfurado por cíclicas inanições no deserto: esta ave também foge, com ela leva digitais, um ter sido criança específico,

 

um filhote — não, não — menino liberto no tempo pelo pai, ombro deslocado, bicicleta com arranhões de barro

 

caída

 

(também não era um pai, acho)

 

na noite, se desligam a ventura fluvial das lâmpadas, surge o fértil terreno onde estalam os inaptos

 

 

 

 

 

 

[Desliga a música, esplende...]

 

Desliga a música, esplende

o que do caule de escrituras, sobre a mesa de centro, apetece nesta porção de desejos exilados —

 

é a língua utópica do trabalhador nu, apagadas as luzes de seu quarto, a desferir memórias, zoológicos de animais esquálidos e: a pomba estoura

na janela, planta as peles que se chocam no desfazer das estantes, no corte das fotografias onde cozinha o mofo violento contra o nosso medo da morte;

 

pois é limite a doença que dança no sudário,  enquanto a frialdade deslocada pela mosca mitifica

 

a fome.

 

Letreiros luminosos, a rua, reentrâncias sob vestidos; saciar é com o barro deixado no tapete, na sujeira sob as unhas, a ilusão de profundo se faz, amantes se enfiam pelos gritos, um e outro, terreno de delírios — perco a sensação dos dedos no suor que —

 

(O apartamento sitiado; queimar. Há loucura no aquário.)

 

Me deixa afocinhar com os porcos, arremeter as mãos no calor

 

da liberdade

 

(tua, repleta de um brim pouco sujo e as pedras quentes

ainda no sapato).

 

Sem as lentes, dancemos à cor, mendigos,

do fundo.

 

Das carnes.

 

 

 

 

 

 

[Íamos decorando o espaço...]

 

Íamos decorando o espaço (entre os sofás azuis, os pratos com migalhas de beijos) com nenúfares das drogas prediletas, teus gritos empilhados na parede da garganta, arrancá-

vamos um a um como se  usássemos mãos menos fluviais que as nossas pra compor um terço perolado,

 

paredes ouvem, enfiavas a reza no tecido do travesseiro portanto,

meu contato ajoelhado de prece, cercado por latas de cerveja esvaziadas, creio ainda no deus de me embrenhar neste tu,

 

as luzes ou tato aceso, as luzes ou tato apagado:

 

na superfície de tênue infância (meu olhar vertido na embocadura do teu, não nos sei mais) baila o desolador cenário das carências, meninos vendendo cerâmicas, taxistas se oferecem, e infundimos a lambidas. Eu, por exemplo, fui bicho trucidado por memória, um sacrifício de cinza encostado no corredor, antes de entrar no dilatar deste respiro, desta troca nas hélices do teto, onde meus armários todos abertos (os teus, em verdade), a dentição escovada pela janela, remida entre as sirenes que congelam, silenciar. Cavo, encorpalavrado em presença ágrafa pra dizer

 

um que amorosamente dispo e sou, de olhar — luzido, luzido, luzido, vê a paisagem, escuta a música rumorosa, não importa, o idioma não mais que os estilhaços, a forma dolorida sob camadas que renovamos com pomada, pele, cuspo, dor — o quarto escuro pra dormir, trocas de ar: digo, luxúria, pra encontrar basta a brasa emergencial, um travo de milagre tampa a garganta, calo

 

,dedos sangrentos de trabalho, a hóstia de um dia e outro, sem nós,

molhada, dissoluta, de pós, cair maquiado como ator e arar a terra de onde partira com lágrimas sagradas,

 

(te lembrar nos oráculos não basta).

 

 

 

 

 

 

[Vitimado pela surdina...]

 

Vitimado pela surdina, a calada do cansaço que olha ao viés, elejo este copo de espera — antes de ser tragado sem filtro, desmemoriado, é no vagar que me encontro, os batimentos cardíacos furtados à massa informe e saturados nisto, este pedúnculo de orifícios: é uma palavra escondida nas cuecas do mito, um pêssego costurado ao rosto, o quê, o tijolo essencial para dar início à festa do leopardo que refastela a pelagem na malha vermelha de suas vítimas?

 

Não ser vago, pairar nuvem sobre blocos de concreto.

A tatuagem carnívora que sibila pele, monturo de desejos de chamar quando a assinatura balouça entre o absurdo e o nada: um nome,

 

chove.

 

Sem óculos, desfoca, estou à janela: conjuntos de vozes, uma cor no movimento provoca meu anonimato — virá a mão?

 

A terra arrasada — prolifera aos poucos: faz correr a mulher de vestido pardo, jornal preso à lateral do tronco, não pode parar o homem: parte o último ônibus; chão, acúmulo de bitucas e detritos de solidão. Imagino tudo, não vejo nada; quero dizer, tudo se engendra na moagem disto.

 

(Ao flanco do deserto, que venhas, pois na paisagem pós içamos o colchão, comer amoras e roer os joelhos é melhor que as febres do ouro.)

 

Hoje que morreu um poeta, lembro do leite em pó dos transatos, as ideias limítrofes e o canteiro de velhas imagens que, no amor, nos serviam — calculo daqui a distância da juventude. Um belo perfil de cãs ao

 

vento.

 

Serve o saber de bichos — um dorme, conserva trêmulo o calor sem preâmbulos, vem outro, aberto pela sede do breu sem trevas, aninha o caldo de visagens e se fecha, barrigas coladas em flor (cio reticente).

 

(Um animal é gesto de fogo branco).

 

Afinal.

 

 

 

 

 

 

[De pelagem fina, negra...]

 

"estou grávida da minha própria fatalidade."

Ana Maria Vasconcelos

 

De pelagem fina, negra ao extremo de doer,

como um bebê que enervada pela inanição e dedos pálidos a mãe deposita na porta, é seu embrulho de ossos frios que colho após segui-lo os ganidos, atravessando corredores chorosos, desde uma cavidade exígua na memória, anterior ao que sou agora, me construindo com suas pupilas de inarticulada clemência, um professor sombrio, uma pepita irredutível de espinhos carregada sempre no bolso ou, com incômodo, debaixo das unhas, ensinando a meticulosidade do pavor à mão, este cão: todas as noites invariavelmente

 

espancado pelo dono.

 

Todas as noites a aprendizagem da crueldade, do esquecimento ambicionado — projeto, os esquadros todos, de morrer.

 

Que voz ele pretende tirar de mim? Ou dar? A vontade de parar,

de cegar, chegar à sazão da ceifa, ao fim prometido dessas criaturas e então jamais o sofrimento de novo. Seu ser mudo, o gesto eloquente de travar os acontecimentos com dobras vermelhas, com as pauladas a reverberar em mil peles (para, por favor, para), obrigar ao concreto a inflexibilidade após tantos calos de expressivo horror. O cão

 

apanhando ainda. E ainda.

 

Nada pode dizer. Eu, um turbilhão de ciências, mesmo retido na pequenez infantil, assisto, ouço, noite, noite, noite, o ganir negro, o conceito vivo e ainda intelectualmente informe, a existência toda em sua voz animal, colocado no centro eruptivo de sua garganta a evadir as costelas, as patas, os dentes amassados, suas letras inexistentes de assombro, o mundo em sua inteireza subentendido já no calor do mijo involuntário, suas hipérboles de inocência, seus sintagmas incosturáveis, uma luz fraca fraturando na impossibilidade de tocar o perdão, sem deixar dúvidas, no entanto — sua voz perfeita. E

 

indefensável. 

 
 
dezembro, 2013
 
 
 

 

Viktor Schuldtt escreve o blogue o silêncio infecto de. [ desterritoriosilencios.blogspot.com.br ]
 
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