AS TERCEIRAS INTENÇÕES

 

Abro os portões da angústia e da alegria à tua espera.

Sob as sombras do momento pesa a incerteza deste encontro selvagem.

Virás, quem sabe, entre nuvens de tempestade com tua juventude solar,

Trazendo a flama secreta de um puro desejo animal.

 

E me deitarei na areia de tua pele,

Beberei o vinho das tuas mãos.

Desaprenderemos as palavras num súbito reencontro obstinado.

E diremos a nudez.

Harpa

de gestos, teu abraço vibrará despido numa intensa melodia.

 

Decifraremos os mistérios banhados a ouro, antes que as laranjas da aurora

Amadureçam no horizonte febril e todos os cisnes da luxúria cantem.

Através de tua esplêndida arquitetura alcançarei

A nascente de todas as dádivas.

 

 

 

 

 

 

MITO

 

 

Ninguém me criou. Estou convicto

De que nem existo.

Com tais palavras, e um pouco de barro, eu mesmo me fabrico,

Ergo-me da terra:

Bicho nu e aflito. E na dor

De nascer, eu grito.

Quem sou, quem somos, permanece não dito.

Mesmo construindo casas ou ritos

Nossas vidas

Não passam de dúvida

E conflito.

 

 

 

 

 

 

HORAS E HORAS E HORAS

 

I

 

A luz acordada tem dessas aves madrugadoras

Que sobrevoam as tardes cinzentas e áridas

E depois pousam agourentas nos ramos noturnos.

 

Os homens cantam entre ruas sujas de tumulto,

Suas casas oferecem um ninho pobre às palavras desalojadas do coração

E o algodão das nuvens coagula sonhos

Feridos pelas garras rapinantes da cidade.

 

Enquanto as aves miúdas fisgam palha eu cato as palavras.

 

 

II

 

São parcos os recursos

dos punhos contra os danos

das horas, dos dias e dos anos.

 

A poesia não me protege da chuva.

 

 

III

 

Nenhuma paz diuturna se detém no cerne de minhas visões.

Sou como uma criança cercada de cadáveres de estrelas,

Entre soluços e lápis, delírios e signos, dons e abandonos,

Eu desconheço como se respira e se não enlouquece.

 

Quero viver o torvelinho dos dias, madrugar à beira do poema.

Devo guardar o mapa do tesouro ou gritar o nome de um amor?

Prometo confessar cada segredo que ilumine minhas escamas.

Todo hei de me abrir, das mucosas e ossos aos veios da linguagem.

 

Cantarei a beleza física do mar ou o horrendo pesadelo das vísceras.

O silêncio se escreverá azul num céu desabitado pelos deuses

E no tenebroso vazio cósmico darei as mãos a quem me ouça

Pois o meu uivo diuturno acordará os sonâmbulos e os mortos.

 

É esta a esperança que me faz erguer a cabeça decepada e iniciar

A transfusão do grito em sonho mineral, flor de papel e espanto.

Na mão como uma chama, o coquetel molotov do meu canto

Há de incendiar as noites frias e demolir as casas do silêncio.

 

 

 

 

 

 

A MUSA AVESSA

 

 

Era sincera: não gostava de poesia

Preferia palavras duras, sem doçura nem penumbra,

Talvez amasse a manhã limpa de pássaros e nuvens.

Insetos? Não sei se odiava. Ou se varria a sala

Com pressa, indiferença.

Sei que não amava poesia.

Não lhe viessem com Neruda ou Quintana debaixo do braço,

Gostava de palavras de aço.

Das que se usa para o comércio ou para dizer bom dia,

Por Deus e obrigada. Poesia, não queria.

Tentei demovê-la.

Falei das palavras, em seu estado neutro bruto nu,

Caladas e pacientes, do papel inocente na gaveta, do desejo selvagem da voz,

Do desespero inexpressivo da tarde.

Escuta-me, existem os sonhos, as madrugadas silenciosas,

A solidão. E, sobretudo, a morte.

A poesia vem raiando como um gesto natural

Dos dedos da medula do desassossego, breve espanto diuturno

Que faz as palavras circularem úmidas

De sono e embriaguez.

Mas ela não me escutava, transformada em adeus,

Uma das palavras úteis com que se vestia.

Nem lembro o seu nome

Mas sei que ela não aprovaria este poema, daria de ombros,

Mergulhada em tarefas muito importantes que se desfazem agora na minha memória.

 

 

 

 

 

 

AMIGOS OCULTOS


Tenho amigos que se ocultam
na sombra na poeira no sul no norte
no olvido na solidão no mar
ou sob uma máscara de sal e silêncio.

Suas vozes desertam os nomes fogem.
Entretanto os rostos às vezes volvem
como um segredo antigo uma lua nova
nos dias noturnos em que os revejo,
reabertos os sorrisos cheios de silêncio.
E mal reconheço as palavras apressadas
que me saúdam ou indagam as novidades.
Sei que suas vidas correm e se derramam
fugidias como arcos de cristal
ao acaso da tempestade ou se revelam
intrincadas como os veios de sangue do tempo.

Revejo os amigos ocultos num gesto numa foto
numa cadeira num copo na palavra franqueada
que tenta conversar comigo e reabilitar o sorriso.
Temos o pacto de um abraço
intacto ainda que milhões de paredes
nos separem e cubra-nos o tédio oficial
de viver entre prédios cinzentos em destinos alheios a todas as alianças sutis
como as dos grãos de areia com as gotas d'água.

Os amigos ocultos caminham na transparência
da pura ausência. Mas sei que os tive
por um ou dois segundos
antes que se dissolvessem no ar
enquanto cavavam seus lugares no mundo.

 

 

 

 

 

 

ÁGUA DE PEDRA

 

 

Em meu sono sonoro, eu sou uma pedra

alta, concisa.

Minhas palavras esvoaçam

como aves infinitas.

Meu único mito é o silêncio —

mar secreto

de onde o pensamento retira

peixes definitivos.

 

Em minha música, eu sou

um girassol

fincado no meio-dia.

Minha fulminante natureza de palavra

acende os incêndios da voz.

Eu sou a convergência do fogo

em pensamentos altos,

maleáveis.

 

Em minha alucinação, sou um híbrido, deus-cavalo

ferido de morte. Minhas asas exploram

horizontes rubros.

Pertenço à natureza imemorial

dos pensamentos.

Recrio o mito entre falos,

espadas,

pedras tumulares.

 

Em minha imobilidade, eu sou uma árvore

de seiva sonora e raízes concisas.

As minhas palavras são brotos

de natureza solar, na plenitude

de uma tarde de verão,

entre cítaras e cigarras.

E nos dedos definitivos

nasce morre

a água.

 

Em meu fulcro de flor e medo, cavalo sedento,

Sou um homem.

Estes signos inquebráveis são os delíquios

Rubros

Da minha safra, cifra de treva com pressa,

pulsação de estrelas definidas:

As palavras em chamas que ostento

Ainda me doem

nas unhas.

 

Em meu sopro final, eu sou a água

Extraída da pedra, os póstumos

desejos do morto de sede.

As palavras

Que escavo de sono

em sonho me despertam.

Minha natureza é este rio

Rubro e definitivo.

Um fio de timbres entre as sombras das palavras.

 

 

 

 

 

 

ENTRANHAS

 

 

Um gesto extremo:

expor as vísceras do poema.

 

Não há exércitos dentro desse cavalo

Ou fezes. Só calma e melancolia.

 

Sob a transparência da caligrafia

Derramam-se todas as palavras

Como sal na mesa.

 

Aberto. Escrito. Mudo. Nu.

O corpo espesso e sem muros

Franqueia sua geometria

 

Como um lugar luminoso,

Uma mina de fogo suspenso.

 

Eu olho para o fulcro dessa escrita:

Um desejo obscuro que se põe

Em movimento.

 

E reconheço os meus pássaros cativos:

 

A melodia insinuante na voz

Os contornos nítidos de uma solidão

Uma necessidade intermitente de chuva e sol:

Todas as sedes abrasadoras

da árvore desarvorada

de tudo o que eu fui e do nada que eu sou.

 

 

 

 

 

 

RESTOS

 

 

Na mina das palavras todo sal é ouro

E cada sonho é vinho.

 

A canção queima

Dons e dádivas nos altares da língua.

 

Mas hoje faltou alma.

Dediquei o dia à rude destruição do poema.

 

Sem alicerces o meu delírio

Desmoronou em silêncio.

 

Destruí

As arestas do monstro. Quebrei-lhe

As plumas de vidro.

 

Devastei a pedraria falsa dos seus adjetivos,

Escarrei nas cores líricas.

 

Do meu esforço completamente vão

Não restou esboço nem rosto.

Só umas palavras cegas e molestas:

Estas.

 

 

 

 

 

 

QUARTO

 

 

Neste pequeno refúgio sob a treva constelada,

Acendem-se todas as palavras.

Minha língua é flor vermelha

E a haste contida do meu grito lança-se na noite universal.

 

Delicada plenitude a desta janela musical.

 

O poema brande a juventude das suas palavras

Enquanto a luz atravessa a espessura do silêncio

Incidindo nos objetos surdos que me fazem companhia.

 

Minhas unhas riscam a mobília

Como pontas vivas de canetas.

 

As palavras fogem pela porta

Correm como os rios de uma caligrafia em êxtase,

Gafanhotos saltam num jardim que é puro ardor e plena liberdade.

 

Fora do quarto fechado os horizontes cerceados

Pela minha timidez expandem-se até às margens infinitas do poema.

 

 

 

 

 

 

CESTO

 

 

O poema nasceu morto,

Roto e roxo em minhas mãos.

 

Eu que lhe fiz o parto

Decomposto e putrefato

 

Cavando no ser as palavras

Que jaziam enterradas.

 

Fui sua mãe e seu incesto.

Tentei amamentar o texto

 

Mas do peito não jorrava

Nem a tinta nem a mágoa

 

Necessárias a seu sustento.

Ei-lo aí no centro do cesto

 

De rosto amassado e torto

Entre meus outros abortos.

 

 

 
 
abril, 2013
 
 
 

 

 
Sandro Fortes (São Luís/MA, 1970). É professor e artista plástico, formado em Letras e em Jornalismo pela UFMA. Em 2006, venceu um prêmio literário e publicou Um passeio mítico pela obra de Clarice Lispector, ensaio em que analisa várias obras da romancista e contista. Inédito como poeta, guarda na gaveta o seu primeiro livro de poemas, Nós somos as palavras.
 
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