Ainda chuviscava, mas o Campeão recusou o guarda-chuva.

Tá bom assim.

E o irmão não insistiu. Nenhuma vez.

O Campeão desceu apressado pela calçada, gotas vazando dos beirais dos prédios, reparando no ponto de ônibus vazio e no farol abrindo e fechando pra ninguém.

Mas era engraçado perceber o quanto pisava desencontrado. Fosse só pela inclinação, por aquele único sinal — alguém que caminhasse prestes a despencar — com tudo, no chão.

 

Desde sempre o Campeão trabalha na Padaria Pão Nosso. A padaria trocou de dono três vezes, a maioria dos antigos funcionários foi embora. Novos funcionários vieram. E essas toucas na cabeça de todo mundo. Luvas. O caixa separado do balcão.

Quem mexe com dinheiro não mexe com pão, Campeão.

O Campeão não sabe muito bem porque começaram a chamá-lo de Campeão. Antes do pingado, do pão com queijo na chapa, do pão que agora é por quilo. Também no Bar do Euzébio, onde vai jogar Canastra valendo 50 contos a rodada [ou sinuca, melhor de três, e quem perde paga a cerveja], o Campeão é o Campeão.

Sua vez, Campeão.

Usou parte do décimo terceiro pra comprar esse videocassete CCE, de segunda mão, do Mulato, o cara de óculos fundo de garrafa que vem consertar a máquina de pão. Uma máquina velha e encrencada, de origem francesa, dessas que não se fabrica mais. Dessas que não se encontra peças. Só o Mulato dá jeito.

Mas o Campeão é desconfiado, principalmente com as coisas de origem duvidosa que o Mulato tenta vender. Na dimensão dos boatos, o Mulato se encolhe aos fundos da padaria com chaves de rosca enferrujadas, surrupia peças novas da máquina e coloca peças velhas. Larápio. Só boatos, dizem. Mas sempre tem alguém de cabeça quente no balcão da padaria perguntado. Reclamando que a bicicleta travou o guidom, o som da televisão deu pala, o rádio ficou mudo.

Pra convencer o Campeão a comprar o videocassete, o Mulato falou que o Campeão podia levar uma fita do Rocky Balboa.

O Campeão resistiu. Ia esperar. Esperar um pouco.

O Mulato falou que não tinha porque esperar. O Mulato tinha a voz suave, passava a língua na boca entre uma frase e outra, alguém que colasse as palavras. E olhava junto, não se esquivava.

O Campeão tentava revidar, evocando falsas contas a pagar, boletos de prestações imaginárias.

Tô no sufoco, disse, como sempre.

O Mulato sorriu. E dois tapinhas no ombro do Campeão. E começou a contar o caso de um homem que vinha juntando dinheiro a vida toda. O Paulinho da Índia, lembra? Um turco, não abria a mão nem pra limpar a bunda. Ninguém mexia no dinheiro dele, nem os filhos. Não confiava em bancos. Desde aquela vez que confiscaram a conta de todo mundo, o Paulinho da Índia enfiava o dinheiro debaixo do colchão. Racionava comida como se houvesse uma guerra. Como se esperasse o apocalipse. Vestindo trapos, calçando o mesmo velho sapato, passava por mendigo a quem não soubesse. Comprava tudo do mais barato. Sacava os óculos fundo de garrafa e conferia moeda por moeda. Era capaz de excomungar um balconista por conta de cinco centavos. Ou menos. Só por cisma.

O reboco despencando da parede da casa do velho, o muro, os últimos dentes vivos na boca apodrecendo e o desgraçado não movia uma palha.

É cascavel enroscada no bolso, disse o Campeão.

E que fim levou? Escorregou no banheiro e deu com a cabeça na quina da pia. Levaram três dias pra encontrar a carcaça do velho. E todo aquele dinheiro. Mofando. Debaixo do colchão.

Tá tudo certo, Campeão.

 

Sempre foi assim.

No Natal, o Campeão leva caixas de bombom Garoto pras sobrinhas. Elas sempre gostaram de bombom Garoto e todas as meninas do mundo gostam de bombom Garoto. Mas aquelas meninas deixaram de gostar de bombom Garoto. Descobriam, numa matéria da Revista Nova, que bombom tem muitas calorias. Precisam evitar chocolate se quiserem frequentar a piscina do clube nas férias de janeiro, e chamar atenção do Ricardinho e do Paulinho. E o Campeão não entende as novas preocupações das meninas ainda tão novas. O Campeão acha que as meninas deixaram de gostar dele, porque elas torcem o nariz pras caixas de bombom. Abandonam as caixas de bombom ainda embrulhadas ali no sofá e passam a futricar outros embrulhos, ajeitar maquiagem, colocar um CD do KLB pra tocar.

O Campeão não presta muita atenção nas coisas, principalmente nessas coisas que mudam com o tempo. Antes de sair — de recusar o guarda-chuva — achou melhor pegar os bombons de volta, já que ninguém ia comer.

 

 

Duas semanas antes, as chuvas da primeira quinzena de dezembro tinham arrastado barracos, arrancando telhados e inundado as regiões mais baixas da cidade. Parecia o fim do mundo. A televisão mostrava famílias que tinham perdido tudo. Geladeiras cheias de lama e colchões boiando na água. Era o fim do mundo. Ali mesmo na rua, um muro tinha caído. Era a terceira vez que caía. A segunda naquele ano. O Campeão vinha chegando em casa, as calças pingando de tão ensopado, avistou dois homens discutindo rente aos escombros. O homem de boné amarelo falava que não podia controlar as forças da Natureza. Não tinha como dar ordens às nuvens. Não era culpa dele se chovia tanto. O homem de barba falhada parecia irritado. Começou a gritar que era a terceira vez. Fez caretas e levantou os braços. Disse que no terreno ao lado também chovia. Chovia o mesmo tanto que aqui. E o muro de lá, como você pode ver, nunca caiu.

Azar do goleiro, o Campeão pensou.

E já entrando no prédio foi pensando que precisava engraxar o sapato. Tinha que se preparar pra ir à casa do irmão. Precisava engraxar o maldito sapato. A ceia daquele ano seria diferente, bem diferente dos outros anos. A avó deles, D. Lulu, 63, tinha arranjado um namoradinho. Um moleque testudo de 23. E mais ninguém se importava, porque não havia ninguém pra se importar. A mãe do Campeão tinha deixado a casa e sumido quando eles ainda eram miúdos. O pai do Campeão tinha se juntando com uma cozinheira da Bahia, que mexia com Umbanda e vendia AVON. Ninguém sabia muito bem onde o pai tinha ido morar. Os avós cuidaram de tudo. E quase como uma recompensa, um acordo, uma obrigação, quando a D. Lulu tinha problema, eram eles — o Campeão e o irmão — que resolviam.

Como resolveram tudo da vez que a D. Lulu ficou no hospital, pra tratar de dois tumores benignos na garganta. Nada sério. E foi quando saiu do hospital, que ela quebrou a promessa.

 

Tinha prometido ao marido que nunca ia arranjar outro homem. Uma promessa que ela fez quando o marido estava em coma, depois do acidente: um moleque roubou um carro no posto do bairro e fugia avançando sinais. Seu Otávio Manoel Farias, 77, voltava da feira, a pé, com a cesta cheia na mão. O carro saiu de traseira e bateu com tudo em seu Otávio. Tomates voaram longe e a cabeça de repolho se abriu. A polícia prendeu o moleque meia quadra pra frente. Perdeu completamente a direção. Estourou num poste com tanta força que o motor se descolou do chassi e rasgou o capô. Seu Otávio permaneceu em coma por uma semana. D. Lulu prometeu que, fosse qual fosse a vontade de Deus, não ia arranjar outro homem. De jeito nenhum. Seu Otávio faleceu no sétimo dia. Era domingo.

 

D. Lulu teve alta do hospital e disse que precisava ir ao cemitério. E lá ela ficou por meia hora conversando com a lápide. Ria e gargalhava, olhando pra lápide.

Deve de ter amalucado, o Campeão pensou.

Ele aguardava de longe, sem ouvir o que ela falava. Doidice. E no ponto do segundo ônibus, de volta pra casa, a D. Lulu falou que tinha tido uma compreensão. Tinha tido uma compreensão de uma coisa enquanto tava no hospital.

Uma compreensão, sabe como é?

Não tinha nada a ver com voltar atrás. Tinha mais a ver com seguir adiante. E começava frases que não terminava. Citava obscuros exemplos pela metade. Como se a coisa toda aparecesse excessivamente clara pra ela. Uma ideia tão forte que existisse fora dela. Como se ela pudesse apalpar a coisa. Uma intuição tão clara e óbvia, tão clara e óbvia, que provocasse a impressão de que todo mundo já compreendesse. Tudo.

O Campeão teve certeza de que a velha tinha saído do eixo. Calculou despesas com médico de cabeça, psicólogo, terapia com crochê, remédios de tarja preta acumulados à beira da cama. Talvez até internação, o que é melhor pra todo mundo, obviamente, num caso desses.

Eu entendo, ele disse, antes de entrarem no ônibus.

 

No final daquele mês, o irmão do Campeão ligou. O Valdiney tinha visto a D. Lulu atracada com um moleque testudo, lá no Forró do Juarez.

Só aí o Campeão entendeu que ela tinha quebrado a promessa.

O irmão do Campeão disse que ia arrancar a barrigada do moleque. Ia colocar a polícia atrás. Ensinar ao moleque o que é que era bom. Falar com a D. Lulu. Bater a real.

Enquanto descascava batatas, a D. Lulu disse que tinha tido uma compreensão. Uma compreensão, entende? E ninguém tinha nada que se meter na vida dela.

Trambiqueiro, disse o irmão. Isso que o moleque é.

Onde já se viu se envolver com a uma mulher na idade dela. Uma mulher com tantas necessidades, já no fim da vida. Esse moleque devia arranjar alguém mais jovem. Devia de caçar o rumo.

Não precisava tanto, o Campeão pensou.

D. Lulu soltou as batatas na pia, enxugou as mãos no roupão, e disse que o irmão do Campeão era uma pessoa má, um ignorante. Não enxergava um palmo na frente do nariz. E, por favor, que fosse embora dali. E não voltasse mais.

O irmão do Campeão alvoraçado. Praguejando. Os olhos cuspindo faíscas, empedrados, prestes a saltar pra fora. Então entraram no primeiro bar que encontraram e pediram uma cerveja. E o Campeão se calou ouvindo o irmão falar e repetir como aquilo era um absurdo. Falar e repetir que aquilo tudo era uma desgraça. O fim do mundo. Falar e repetir que aquilo tudo não ia ficar assim. Onde já se viu?

Não, não ia mesmo.

O Campeão teve de arrastar o irmão pra fora do bar. E ainda pagar a conta. O irmão cismou com uns meninos que jogavam sinuca, do outro lado do bar. Cismou que os meninos riam demais. Riam dele.

O Campeão precisou arrastar o irmão pra fora do bar, ajudá-lo a se equilibrar no caminho de casa. Abrir a porta. E explicar pra mulher a situação.

O irmão parecia não ter mais nada na vida, de repente toda a energia mirava o namoro da D. Lulu. Mal conseguia trabalhar. E ameaças. Promessas de riscar a barrigada do testudo. Ligava no meio do expediente e dizia que no sábado [às vezes era sexta, quinta, ou quarta], o Valdiney tinha visto a D. Lulu e o testudo — lá no Forró do Juarez.

O Campeão tava cansado.

Depois de desligar o telefone, decidiu ir à casa da avó. E já foi dizendo que não aguentava mais. A gente é uma família e família não fica de cara virada um pro outro. Não vira as costas um pro outro, assim por pouca coisa. Que um respeitasse a decisão do outro, respeitasse a vida um do outro. E pouco se importava com quem D. Lulu saísse. Ou vivesse. A D. Lulu podia sair com um jacaré grudado nas costas, ele não tava nem aí. A vida era dela. Mas ela devia de ter compreensão com o irmão dele. O irmão era muito sistemático, ela sabia, não era de hoje. Além de tudo, era ciúme. Bobagem. Não havia razão de ficar um de cara virada pro outro. A D. Lulu concordava. Mas ela não podia ir atrás do irmão dele. Porque o irmão dele tinha vindo até a casa dela daquela vez, lembra? A maior desfeita. Se fosse o caso de resolver as coisas, então o irmão devia se desculpar. E não precisa ser amigo do Amarildo, fazer agrado nenhum pro Amarildo, só respeito.

Na casa do irmão, o Campeão não achou jeito de começar o assunto. Ficou por muito tempo sentado com um copo de cerveja na mão, olhando as meninas jogar videogame, olhando o bonequinho azul de sapatos vermelhos que corria acompanhado do bonequinho amarelo, cujo rabo se transformava numa hélice. E os bonequinhos corriam e viravam de ponta cabeça. Pulando e se transformando em bolas. Girando, quebravam pequenas televisões fora do ar. Matavam outros bonequinhos que atiravam pedras. Passavam por argolinhas douradas, davam cabeçadas em molas e eram lançados ao ar. E seguiam adiante, se desviando de espinhos, buracos, passando por baixo de cachoeiras e pontes. Desbravando túneis e cavernas até tudo terminar numa plaquinha, que girava. Tudo ao som de uma música meio triste, que às vezes acelerava e voltava ao normal. Tudo pra recomeçar outra vez.

Quando o Campeão foi até a cozinha, encher o copo, o irmão o chamou num canto. E o Valdiney tinha visto, mais uma vez, a D. Lulu com o testudo, na quarta-feira, lá no Forró do Juarez.

No maior love, sussurrou.

Só aí o Campeão contou que tinha conversando com a D. Lulu. Contou mais ou menos tudo que tinha falado pra ela e mais ou menos o que ela tinha dito. O irmão devia de parar com implicância, com cabeça dura. Aproveitar o Natal e convidar os dois.

Tá maluco? Nunca. Trazer aquele sujeitinho interesseiro pra dentro de casa, pra comer da comida dele, ainda mais no Natal.

Nada disso vale a pena, disse o Campeão.

E logo a D. Lulu ia morrer, e aí não adiantava mais. E que se ela morresse de uma hora pra outra, o irmão ia ficar com remorso.

Tá maluco?

O Campeão disse: Não dá conta de ajeitar uma bobagem dessas? Quero só ver quando as meninas tiverem porte de moça. Vai pôr na coleira? Vai dar a bunda no lugar delas?

O irmão avermelhou o rosto.

Pelo menos minhas filhas moram comigo, fechou o punho: minhas filhas e minha mulher.

 

O Campeão deu por encerrado o assunto.

Enquanto lavava os copos, prometeu a si mesmo que ia deixar isso tudo pra lá. Não eram mais crianças. E se acertassem do jeito que achassem melhor. As coisas sempre se acertam, de uma forma ou outra. Já tinha seus próprios problemas pra resolver — e isso não é pouco. E ficar esquentando com birra dos dois, não valia a pena. Devia de cuidar da própria vida, cada um da sua. E deixar tudo pra lá. Mais ou menos isso.

Mas o irmão apareceu na padaria. Pediu um suco de laranja e sentou ali de frente ao balcão, coçando a cabeça sistematicamente, como se limpasse teias de aranha.

O Campeão corria de um lado a outro, contagiado pela pressa dos clientes fazendo os mesmos pedidos, os mesmo olhos bambos e fita colorida de crachá de firma, ainda enrolada no pescoço.

O movimento ia alto até mais ou menos umas oito e meia. Então o despertador mental de 1,99 do Seu Paulo disparava, e ele começava a baixar as portas — amanhã tem mais — enxotando dois ou três gatos pingados incapazes de desovar uma cerveja no balcão.

Outro suco, disse o irmão. E quanto o suco chegou: tenho uma coisa muito séria pra te falar.

Agora eu não posso.

Mas tem que ser agora.

Seu Paulo arreganhava os dentes pra uma mocinha. A fila escorria longa e imóvel, rente à parede, por quase toda a padaria.

Mutuca, disse o Campeão. Segura as pontas pra mim.

Do lado fora, o Campeão mandou o irmão desembuchar.

Resolvi dar um jeito na coisa.

Tinha pensando melhor. Ia falar com a D. Lulu. Convidar a D. Lulu e o moleque testudo pra ceia de Natal. Resolver a maldita questão, como o Campeão tinha sugerido.

 

A ceia daquele ano seria diferente, bem diferente dos outros anos.

O Campeão pegou a camisa velha, rasgou de uma vez só. E o barulho escorreu e deu um estalo no final. Esticou o trapo, depois enrolou. A latinha de graxa esperava aberta no braço do sofá. O solado do sapato é bom. Apenas o salto, reparando um pouco. Mas era engraçado perceber o quanto pisava desencontrado. Fosse só pela inclinação, por aquele único sinal — alguém que caminhasse prestes a despencar — com tudo, no chão. Joelhos bichados. Tornozelos podres. Passou só a ponta do pano na graxa, um tiquinho só. E foi distribuindo no couro embaçado que imediatamente ganhava brilho, um embuste de novo, ainda era o mesmo sapato. Enfiou nos pés, pegou as caixas de bombom Garoto, e saiu assoviando.

D. Lulu já tinha chegado. Usava um batom vermelho rouge que escorria pra fora do fiapo de boca. E o vestido preto com minúsculas lantejoulas reluzindo roxas, acompanhada de brincos e colar imitando pérolas.

Conversava com as meninas, próximo ao aparelho de som.

Então se virou. Os olhos murcharam: Pensei que fosse o Amarildo.

Ele ainda não veio?

Me ligou tem meia hora, disse que estava saindo de lá. E até agora nada.

Deve ser por causa da chuva — disse o Campeão.

É, todo ano é a mesma coisa.

O Campeão entregou os embrulhos às meninas. Elas abriram rapidamente — e ao constatar do que se tratava — ainda mais rapidamente os abandonaram.

O irmão tentava consertar o pisca-pisca falhado, que desenhava uma estrela de pontas tortas, em cima da árvore de Natal. Tirava da tomada, torcia umas lâmpadas, ligava outra vez. E nada.

Se uma queimar, atrapalha o resto — disse o Campeão.

Inclinou-se sobre o pisca-pisca.

Elas funcionam em série, uma depende da outra — torceu uma lâmpada, e tirou fora.

Ligou na tomada. E exceto por aquela lâmpada arrancada, estava tudo funcionando perfeitamente.

Não tenho paciência pra isso, disse o irmão.

Passaram pela cozinha, pegaram duas latas de cerveja, e de lá pra área de serviço, onde o irmão acendeu um cigarro. A chuva tinha diminuído, mas ainda dava pra ouvir o estalo de gostas caindo, feito pedras caindo, de tempos em tempos, no telhado da varanda de amianto lá embaixo. O cheiro úmido das paredes se misturava ao de pernil, de arroz temperado, ao cheiro de alho e chestervindo do andar debaixo.

Eu gostava era de fazer churrasco, disse o irmão. Mas aqui não tem jeito.

Churrasco é melhor mesmo, disse o Campeão.

Também dos andares debaixo, vinham risadas, em ondas, então soterradas por tristes canções natalinas. E conversas sem nitidez, abafadas, consumidas pela distância.

Será que ele vai dar cano? — perguntou o irmão.

É a chuva, só isso.

A campainha tocou. E o irmão saiu.

O Campeão aguçou os ouvidos. E escutou a D. Lulu dizer que, mais uma vez, havia pensando que era o Amarildo.

O irmão acendeu outro cigarro. Deu uma risada forçada.

Eu disse, não foi? Eu disse.

O Campeão só olhou de volta. E saiu no rumo da cozinha.

A mulher do irmão já tinha tirado o pernil do forno. Pediu ao Campeão que abrisse o vinho. E dali, o Campeão podia ver a D. Lulu debruçada na janela, olhando a rua, quase na ponta dos pés. Tirava o celular da bolsa, procurava um número e colava o aparelho no ouvido. Fitava o visor, e colocava o aparelho de volta na bolsa.

Serviu uma taça de vinho pra ele, outra pra ela. A D. Lulu não tirava os olhos da rua, do celular.

Trouxe um vinho pra senhora, disse o Campeão.

Ela se virou, esticou os lábios.

Não precisava.

Ela abaixou os olhos, na direção dos pés dele.

Mas que beleza de sapato!

Só engraxei — disse o Campeão.

Tá ótimo! — ela disse — parece novo. 

 

 
 
dezembro, 2013
 
 
 

 

Marcos Vinícius Almeida é autor do romance Inércia (Multifoco, 2009). Publicou textos em revistas e jornais: na revista Cult, Suplemento Literário de Minas Gerais, Jornal Opção e portal Cronópios. Em 2010, foi laureado no Prêmio Ufes de Literatura. Escreve em www.quebracorpo.blogspot.com.
 
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