©lászló moholy-nagy
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Equinócio

 

 

Plante pelo inverno,

que as flores aqui são de asfalto

os ombros

         puxam carros de boi

e dia

e noite são

tão claros quanto intermináveis.

 

Mas, mais que o vento, beijos

entre quem até então se

desconhecia

 

prenunciam primaveras.

 

 

 

 

 

 

Ressonâncias

 

 

Coexistência das almas, como

montar um quebra-cabeça

(com peças

de jogos distintos)

ou espelho partido.

 

Vê aquelas duas árvores, ramos

embrenhando

crescendo tortuosos, uns nos outros,

contra a distância das

raízes.

 

Ou o ponto de táxi onde se aconchegando à noite

aquele casal de cães

vagabundos,

após errar pela cidade o dia inteiro,

dorme.

 

Surpresa do encontro súbito,

os cacos de reflexos.

 

 

 

 

 

 

O elogio da superficialidade

 

 

Amo as águas da tua íris,

maré que dissimula uma voragem

morada de peixes-diabo

e lulas infernais.

 

Por suave que seja a voz

prefiro os estilhaços,

o silêncio entrecortado de gemidos da língua em movimento,

não estragado pelo sentido.

 

Porque o que palpita nos dedos entre as tuas coxas

desconhece o ódio a ignorância a estupidez

que a língua distraída em seu ócio

deixa escorrer.

 

 

 

 

 

 

Poema cartográfico

 

 

Sim, só o amor salva

mas você não sabe direito

que besta é essa

                   se tem plumas

escamas, suas cores.

 

Ainda que antes do Brasil a língua

entoasse as sílabas, nervuras

da palavra

         arara

o que elas diriam

                   a Cabral?

 

Não serve a frieza dos mapas

o desconhecido onde

                   o pergaminho acaba

 

ou como bússola

a andorinha bêbada dos pensamentos

que um vazio

entretém

 

a gaivota traçando

círculos no céu para

morrer no mar.

 

 

 

 

 

 

Da alegria

 

                   – para Guilherme Flores

 

 

Brota o sorriso amarelo

um ipê quase

afogado na fumaça do ar petrificado

e a comunhão

do pássaro solitário com o céu

apesar das procelas.

 

Cantar

         contra o imperativo

dos antidepressivos

 

cantar

         além do rolo compressor

da voz

         da turba em festa

 

cantar.

 

 

 

 

 

 

Uma serenata

 

 

Você está em seu primor

quando menos

presta, quando

tem todo o pudor de quem profana

um templo, Dioniso

arfando em seu alento.

Desprezamos a brancura do lírio,

sua exaltação como

moeda intacta

de um tempo remoto.

 

Agora enquanto a ausência quimera

devassa todo o bairro boêmio

que outros dedos irão te

despetalar?

Messalina nas ruas, Salomé desvelada

Vênus das peles lançada à lama

de meus devaneios

(dormindo sozinha outra vez em sua cama,

a calcinha rosa de algodão

corada de vergonha).

 

 

 

 

 

 

Voyeur

 

                            E, se o seu olho o fizer tropeçar, arranque-o e jogue-o fora

                            Mateus 18:9

 

 

Lábios fumígenos

de um carvão se apagando

os membros se esforçando e cedendo, se esforçando e cedendo,

         até que o tempo e esforço

os desfaçam.

 

As mãos entraram em jogo só muito depois

o gosto a voz o cheiro primeiro

e o olhar em tudo, mesmo

neste teatro de sombras:

 

insatisfeitos enquanto tudo repousa

os olhos leem nas pálpebras

         o livro da noite

 

e porque são eles que trazem a primavera ao corpo

só os olhos não se saciam.

 

 

 

 

 

 

Metafísica em resposta a Stevens

 

It is the cry of leaves that do not transcend themselves

Wallace Stevens

 

 

As folhas gritam

porque não se transcendem,

as carnes,

lado a lado, dos amantes

gritam porque não se transcendem,

as palavras gritam porque não

se transcendem

vibrando com som e fúria até

morrerem em pleno voo,

ou será que tudo

transcende, e

somos nós que, estranha

paralaxe, as folhas

cobrindo os corpos,

nos atrasamos para a reunião? 

 

 

 
 
dezembro, 2013
 
 
 

 

Adriano Scandolara (Curitiba/PR, 1988). Poeta e tradutor, formado em Letras e mestre em Estudos Literários pela UFPR, onde estudou e traduziu o poema "Prometeu Desacorrentado" de Percy Bysshe Shelley, ainda inédito. Também traduziu recentemente os livros Deuses Sem Homens, do romancista Hari Kunzru (editora Nossa Cultura), e O Gênio Não Original: poesia por outros meios no novo século, da crítica Marjorie Perloff (editora da UFMG). Como poeta, foi publicado na Babel Poética e no Caderno Ilustríssima. Lançou em 2013 seu primeiro volume de poemas intitulado Lira de Lixo (editora Patuá). Integra o coletivo escamandro [www.escamandro.wordpress.com].
 
Mais Adriano Scandolara na Germina
>
Poemas