Viagem

 

Sempre errei muito.

Minha língua é meu engano.

 

Cavalgo minha língua

em

cantigas

cantilenas

responsos.

 

Que língua é essa, que desconheço?

Eu

matéria vagando em suas mãos.

 

 

 

 

 

Grafitos de Vênus

[escritos em banheiros femininos]

 

 

 

aviso:

decifra-me e devoro-te,

palavra!

 

 

*

 

palavras dançam,

marcam a ferro e fogo

seu corpo:

a língua.

 

 

*

 

linguagem

 

ponto cego

residência antiga

visão privilegiada

 

 

*

 

deixe-me

tatuar sua pele

e serei eu

a marginália do seu texto

 

 

*

 

espelho

sempre tão contrário

a mim

 

 

 

 

 

 

Happy end

 

I

 

Eu num acreditava, seu moço.

A gente nasceu um pro outro.

O diabo foi isso.

 

 

II

 

 

Dizer disso, sei não.

Levo jeito é pro amor __

a língua apreendida entre um beijo e outro.

 

[com #versificados, grupo de poesia nos classificados de jornal]

 

 

 

 

 

 

Mirafiori

 

 

Encurralados,

nossa ilha verde é próxima e nos causa espanto na moldura da janela.

O algodão de uma nuvem gruda no skyline da serra.

Os arranha-céus tentam desvendar o horizonte de belvederes particulares.

Quantos andares alcançariam até enxergarem o outro lado?

 

Ali, ao nosso lado, Murilo, o primeiro engenheiro

regularmente nos visita. Esquadrinha os jornais,

vai aos sebos, mata o tempo em uma galeria.

 

Vem a passeio. Dirige por aí, para nos cruzamentos

e nos observa por trás dos óculos.

Ainda conseguiríamos reconhecê-lo não sendo assim?

 

Parece se deliciar com a competição entre as edificações.

Encimando cada arranha-céu, o símbolo da empreitada.

 

Com seu meio sorriso, meio a sério,

ele nos diz,  os gestos largos,

não voltará. Perdeu a graça.

 

 

 

 

 

 

Tenho pedigree, não nego.

 

 

Li Fernando Pessoa

navego sem precisão

Levei porrada e digo

alto, claro e bom som.

 

A imagem da espera

para que me abrissem a tal porta

ao pé de uma parede sem porta

ela me seguiu vida afora

sua inutilidade, sua pertinência.

 

Nunca acreditei que a tal porta se abrisse.

Mas tem noites nesta cidade

em que até eu espero.

 

 

 

 

 

 

Faroeste como destino

 

 

Tudo questão de tempo.

Conforme o horário, a localização geográfica

a fase do enredo

o jogo, o cálculo

mesmo avião que joga bombas

joga a comida, pernas mecânicas

sobre os seres em terra

sobre as cabeças que correm

olhos ao céu.

 

Os custos contabilizam tanto a bomba

quanto a reconstituição do que se dizimou.

A reposição do armamento.

Após o armistício, as forças de paz.

 

Tudo questão de tempo pra virar fita

excerto institucional ao roteiro habitual

brinde

à tal política externa de ocasião.

 

Enquanto isso, a guerra ganha trilha sonora sob os capacetes.

 

Todo mundo joga o jogo.

Apenas uma questão,

timming.

 

 

 

 

 

 

Dose

 

 

Pequenos vícios em série,

desprezo, um cigarrinho otário.

Apenas viver por perto do perigo,

conforme a dose, veneno,

conforme e em doses,

beija-flor, avestruz.

 

Qualquer botequim e

"Garçon,

overdose, please.

com gelo".

 

Marcar ponto contra, sempre.

Minar relações, aguar o bom do amor, beija-flor,

desmerecer sentimento.

Desperdiçar tempo descobrindo ponto fraco de criança,

sempre a drummondear segredos de polichinelo.

 

Quer saber, deixa pra lá.

Ninguém agüenta tanta tristeza:

Nem eu, nem eu, nem eu.

 

Garçom,

mais um.

Puro.

 

 

 

 

 

 

Low Profile

 

Em estado bruto

transito entre o trágico

e o cômico.

 

Sei bem

o que não sou:

morna.

 

Há dias em que me sei

há dias em que sou

áspera, controversa

fraudulenta, ampla.

 

Quase sempre desafino

não suporto clausura

as fraudes cotidianas

cabresto.

 

Tem outros dias

em que aquieto o facho

e nos amamos tão vagabundamente,

que me deixo levar

e voo longe

pelo abandono do nosso quarto.

 

Então, apaziguada, resto

mulherzinha e plena.

Mas, nem assim

nem assim

consigo fazer parte

desse coro dos contentes.

 

 

 

 

 

 

*

 

Beira de rio
Paraty noturno
Chacal passa.

 

Caminha em direção
drummondeando nas cores da quase noite cais que ilumina a margem.

 

O rio brilha nas margens
e se pinta de azul.
Eu não vi o mar. Eu vi o Rio.

 

 

[Flip, 2010]

 

 

 

 

 

 

Rima fácil

 

Geralmente, quando penso em tudo, e,

ao pensar, eu releio, eu pergunto,

interrogo e silencio, incapaz,

é o amigo quem me responde.

É a voz do amigo que ouço.

Respiração vira consciência, paraliso gestos e observo. É

a voz dele.

A pergunta seguinte, após ouvir sua leitura, sempre é a mesma, a todos,

sempre foi. "Quem é você, Karamázov?"

E sua voz trovoa aos meus ouvidos a única resposta eficaz:

— Todos.

Então me acalmo.

Ouço o amigo, fico em paz.

 

 

 

Easy rhyme

 

Usually, coming to think of everything, and

thinking of it I re-read, ask, wonder and remain silent, unable —

who answers me is a friend. 

It is a friend’s voice I hear

 

Breath converts into consciousness, I paralyse my gestures and observe. It is (...)

his voice.

 

The next question for everyone, after hearing her reading, remains always the same, it always has been. "Who are you, Karamazov?"

And your voice, a thunder in my ears, pronounces the only effective answer:

— Everybody.

I calm down,

Listen to the friend, get have some peace

 

 

 

Einfache Reime

 

Normalerweise, wenn ich an alles denke

und dabei lesen, mich frage, wieder frage und schweige, ahnungslos,

ist es der Freund, der mir antwortet.

 

Es ist die Stimme meines Freundes, die ich höre.

Atmung wird Bewusstsein, ich friere meine Gesten ein, beobachte. Es ist (...)

seine Stimme.

 

Die nächste an alle gestellte Frage nach Anhörung ihrer Lektüre bleibt immer die gleiche,

und war immer so sein: "Wer bist du, Karamazow?"

Und seine Stimme donnert an meine Ohren - die einzig zulässige Antwort:

— Alle!

Ich beruhige mich,

höre meinen Freund und erlange meine Ruhe.

 

 

 

Rima fácil

 

Por lo general, cuando pienso todo, y pensando y releyendo, me pregunto,

me pregunto y callo, incapaz,

es el amigo que me contesta.

 

Es la voz de un amigo que escucho.

 

La respiración se transforma en conciencia, paralizo los gestos y observo.

Es (...) su voz.

 

La siguiente pregunta, después de escuchar su lectura, es siempre la misma, hacia todo el mundo, siempre ha sido. ¿Quién eres, Karamazov?"

Y tu voz truena en mis oídos dándome la única respuesta eficaz:

— Todos.

Entonces sereno a mi mismo,

escucho al amigo, me quedo en paz

 

[Trad. Gláucia Maria de Queiroz] 

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©richard hamilton]

 

 

 

 

Myrian Naves (Belo Horizonte/MG). Poeta. Graduou-se em Letras/Português, pela PUCMINAS, em 1982. Integra a Coletânea de Ouro, do Museu da Poesia, MUNAP, ANOME, em 2012. Em 2013, participa da coletânea O Amor no terceiro milênio: cem poetas brasileiros e publica Própria Lavra, poesia, pela ANOME. Também em 2013, lança Papos de Anjo, infantojuvenil, prêmio Adolfo Aizen, UBE, 2002. Participou do grupo de poesia, #versificados [versificados.blogspot.com.br].