Partilha

 

"Se havia acordo, não me recordo.../

Havia choro atrás da porta"

Ivan Junqueira

 

 

 

Quem haverá de ficar

com o que ficou do homem,

nesta noite incerta, insone,

entre farpas, labaredas?

 

Quem ficará com o pássaro,

o cão, o gato, as feridas?

Ninguém, pois há custo, em vida,

demanda tempo e cansaço.

 

Será mais fácil encontrar

quem aceite, de bom grado,

a casa, o carro, o arado,

a mão, o braço, o antebraço.

 

Sua vara de pescar

não tem qualquer serventia.

Só o peixe, na bacia,

limpo, servil, temperado,

 

 

 

tudo o que venha pescado,

que não cobre sacrifícios.

Não se aceita o ofício;

só o que ele propicia.

 

Que acordo será possível,

no dia da crua partilha?

Sete botões de braguilha,

sete palmos, sete mares?

 

Para chorar os azares

estarão todos unidos:

o que não foi repartido,

não soma, é pó, inexiste.

 

Que o homem não fique triste,

na alma, nenhum remorso.

O peito, vísceras, seus ossos

estarão bem repartidos.

 

 

 

 

 

 

 

Despedida

Para Nelson Pecegueiro do Amaral

 

 

Quando um homem se despede

só leva o que em si é poço.

Às vezes um passo incerto,

difusas biografias.

Um homem não leva impulsos

na hora do último aceno.

Às vezes guarda um remorso,

alguns tijolos na alma,

longa espera, muita calma,

quando o homem vai sem pressa.

O homem que segue em paz,

livre do calor da vida,

não anseia despedida,

nem flor, louvor, nostalgia.

Quando a noite encobre o dia,

do homem que se desnuda,

toda saudade é agonia

no espaço da cena muda.

Se aqui se despede um homem,

não se guarda o que ele abraça

quando embarca em sua esteira.

Tudo o que fica em seu nome,

depois da fria partida,

é o que ele riscou em vida.

O resto é rastro e poeira.

 

 

 

 

 

 

Enigma

 

 

Para onde fogem os pássaros

em sua agonia?

Como enfrentam a morte

quando se anuncia?

 

Será que se escondem,

como os elefantes,

muito além dos montes?

Onde eles se exilam?

 

Onde se desnudam?

Como se aniquilam?

 

Que bater de asas

diz que o pássaro em chamas

tem o bico trêmulo?

Como se despena?

 

Despenca do galho?

Vira luz efêmera?

 

 

 

 

 

 

O pássaro em pânico

não lamenta a sorte,

não celebra a morte,

pois só sabe a vida.

 

 

Que bater de asas

prenuncia o corte?

Qual será o canto

de sua despedida?

 

 

 

 

 

 

Bala perdida

 

 

No alto do morro

o menino contempla o tempo,

abranda o vento,

a mão no queixo

e os olhos no vácuo.

 

O estômago vazio

espera por melhores dias,

anseia a pipa, o pique

e a bola de meia.

 

O menino com a mão no queixo

e o calção branco de algodão

assunta a correria de urubus,

o bater de asas nas gangorras,

sandálias de dedos tamborilando

nas escadarias de cimento.

 

Um galo cisca na areia,

um gato espreita,

um cachorro dispara

e a bala perdida no silêncio.

De onde veio, quem foi?

De onde partiu, que não foi?

 

O corpo menino varre o batente da porta,

as pernas finas pra fora,

o peito ossudo pra dentro,

o calção branco e vermelho

na poça de sangue, vermelha e branca,

vermelha e vermelha, quem foi?

Quem não foi?

Os olhos do menino congelados no vácuo,

a mão no queixo, ainda no queixo parada.

 

 

 

 

 

 

Além dos montes

 

 

Com a cabeça do filho no colo

e os olhos lá longe, entre os montes,

a mãe acaricia um passado

que já não tem entre os dedos,

que jamais teve em suas mãos,

que nunca morou em seus sonhos.

 

Os olhos da mãe retêm

uma tristeza de matar.

Os olhos do filho acompanham a mãe

e sua viagem para além dos montes.

 

Os cabelos são grisalhos,

as rugas são bordados visíveis.

O filho quer fazer um carinho,

mas ainda teme tanto o pranto.

 

O filho não gosta de choro.

 

 

 

 

 

 

Colheita

 

 

"Acredito na floresta e na pradaria e na noite dentro da qual o milho cresce".

H. D. Thoreau

 

 

 

Porque nada é em vão

— a foice, o pão, a bala perdida —

estamos cada dia mais estéreis,

espantalhos no campo, expostos

às bicadas e aos ferrões.

 

Da unha que arrebenta

ao dente amolecido,

nenhum saldo positivo

é creditado aos cabelos

que perderam a cor.

 

Porque a vida é curta, sonsa e cínica

e é incauto o amor,

toda nudez será aproveitada

em benefício impróprio.

 

O estômago seguirá doendo,

a mãe gemendo reminiscências

contra Deus e suas relíquias,

os amigos morrendo distraidamente

como se ainda jogássemos bolas de gude.

 

O patrão, a mulher e o filho,

todos pensando que me têm,

enquanto os sentinelas no hospício

não pensam em nada,

apenas esperam que eu me acalme

para debulharem, grão por grão,

até minha última espiga.

 

 

 

 

 

 

Neblina e mormaço

 

 

O velho está quieto e cansado.

Feito um animal, um burro de carga.

 

Está triste, está só e  mal-amado.

Ninguém lhe redime, nada o absolve.

 

Nos olhos do velho, uma chuva fina.

No peito, neblina. Mormaço nas costas.

 

O velho não deve, não teme, não foge.

Mas identifica o calor nas veias:

 

como um descompasso, uma coisa feia.

O velho já teve a vida no braço.

 

Quando a luz se apaga, sonha dias antigos.

Uma calça curta, uma estrada inteira,

 

um carro de bois, certa pasmaceira,

um pai que era duro, um cão que era meigo,

 

 

um calor-castigo, porcos e galinhas,

enxada no ombro, espinhos na pele,

 

um cabrito enjeitado, que o velho-menino

tratava com zelo — mamadeira e carinho no pelo.

 

 

Quando o dia se acende, vem tudo de novo:

levanta em silêncio, caminha com modos,

 

se lava com métodos, se enxuga com calma,

se arrasta sem júbilos ao café com leite,

 

ao remédio certo, ao jornal sem cura,

ao final da fila, ao sinal da espera.

 

Vai à janela e contempla o céu, ainda o mesmo.

Não faz qualquer pedido, qualquer promessa.

 

 

 

 

[imagens © pejman_parvandi]

 

                                                         

 
 
 
 
Luís Pimentel é jornalista, escritor, roteirista e dramaturgo. Trabalhou em diversas redações de jornais e revistas do Rio de Janeiro (Última Hora, Jornal do Brasil, O Dia, Extra, Bundas, Opasquim21, entre outros) e foi autor-roteirista de programas de televisão. Tem diversos livros publicados, entre contos, poesia, ficção infantojuvenil, textos de humor e sobre personagens ou aspectos da música brasileira. Entre eles destacam-se As miudezas da velha, poesia (Myrrha), O matador de aluguel e outras figuras, crônicas (Melhoramentos), Um cometa cravado em tua coxa, contos (Record), O calcanhar da Memória, poesia (Bertrand), Com esses eu vou, crônicas e perfis da MPB (ZIT), Grande homem mais ou menos, contos (Bertrand), Entre sem bater, o humor na imprensa brasileira (Ediouro), Pau Brasil (Moderna), Plantio e colheita, poesia (Prumo), Dois dedos de poesia (Global), Neguinho aí, infantil (Pallas) e Cenas de cinema — conto em gotas (Myrrha).  Por sua obra literária já recebeu inúmeros prêmios nacionais, entre eles o Prêmio Jorge de Lima de Poesia, da União Brasileira de Escritores; Prêmio Cruz de Souza, da Fundação Catarinense de Cultura; Prêmio Literatura Para Todos (2007 e 2010), do Ministério da Educação e Cultura; e o Prêmio Nacional de Dramaturgia Cidade de Belo Horizonte, com uma peça teatral inspirada na vida e na obra do compositor Assis Valente. É baiano (1953), mora no Rio de Janeiro.