Estação Paraíso

 

 

que o amor

a abrace

antes

que ela

ultrapasse

a faixa

amarela

do metrô

 

 

 

 

 

 

Olho Nu

 

 

proibido bisbilhotar

nossas cabeças não são suas

presas

do aço da guilhotina

medusas escapam

ilesas

 

 

 

 

 

 

Retrô

 

 

Um poema pornô

uma sessão privê

se eu não fosse retrô

faria pra você

 

Se eu não fosse retrô

não iria à matinê

ver um filme de Truffaut

pelo olhar de Depardieu

 

Não faria teatro nô

só para me esconder

não contemplaria Bashô

debaixo de um ipê

 

Não usaria maiô

nem calça saint-tropez

não trançaria um tricô

Penélope recriando o amor

pra quê?

 

 

 

 

 

 

*

 

 

me

aprendo

vendo

tua

língua

soletrar-te

os

monossílabos

do

meu

corpo

 

 

 

 

 

 

Visceral

 

 

te devo um nu frontal

com tarja:

proibido para menores

 

já as maiores dores

cortadas do meu umbigo

exibo

amoral

 

tome meus versos

minhas vísceras

devore-os

com toda libido

 

 

 

 

 

 

A Fina Dor

 

 

adormecer a deprê

que insone mina

deixar-se entreter

 

en     dor     fina

 

 

 

 

 

 

Extrema-Unção

 

 

tem gente que espera

pra tirar retrato sair bem na foto

tem gente esperando uma retratação

tem gente que espera na fila do leite

tem gente esperando atendimento médico

tem gente que espera uma revolução

tem gente esperando ônibus metrô avião

tem gente que espera sair do coma

tem gente esperando extrema-unção

 

tem gente que espera sentada

tem gente esperando calada

gente que não se abala

tem bala que a gente perde

tem nerd que nunca erra

tem gente que engole sapo

gente que engole porra

tem cabrito que não berra

 

tem gente que espera a morte

inteira

por uma vida rasteira

 

 

 

 

 

 

*

 

 

em tua mão destra

meu violino só

vira orquestra

 

 

[do livro Uma Gueixa pra Bashô]

 

 

 

 

 

 

Voo em Vão

 

 

inútil

esse tesão pela eternidade

o amor é uma coisa volátil

inexata liberdade

 

 

[do livro Quase Azul Quanto Blue]

 

 

 

 

 

 

Lareira

 

 

em meu corpo cabe

arte de quem sabe

juntar lenhas

pra queimar mais tarde

 

 

[do livro Batom Vermelho]

 

 

 

 

 

 

*

 

 

entre-me

alma corpo e membro

como primavera namora setembro

 

 

 

 

 

 

Sadomaso

 

 

Todos os dias ele passa por cima

do meu cadáver.

Quando de bom humor,

me presenteia com uma coroa de flores.

Por algumas horas,

meu corpo inerte se enfeita,

ensaia uma revoada.

Como um zumbi taciturno,

meu carrasco descontente nunca sorri

— apenas zomba

de tantas mortes que dormem em mim.

 

 

 

 

 

 

Punk

 

 

fuck it

a vida não é um fake book

comercial de margarina

pose e look

 

mesmo fina

a dita dura da felicidade

só entra com vaselina

 

 

 

 

 

 

All Star

 

 

estar sozinha

é meu exercício diário

de bordo

aeroporto rodoviária

banco de praça

livro de bolso

quarto de hotel

tv a cabo

restaurante a quilo

chocolate a granel

pastel com coca e ressaca

café expresso com letras

e tarja preta

 

sigo

na captura

sem estação sigo

repetindo mantras

pela noite escura

 

eu sou

malas prontas pra viagem

eu vou

minha bagagem tanta

não serve de lição

nem cabe numa única ilusão

básica

 

sigo

single

soul

 

 

[musicado por Kléber Albuquerque]

 

 

 

 

 

 

Afrodite no Espelho

 

 

Narciso por Narciso

eu sou mais eu

você nem porta fogo

como Prometeu

 

 

 

 

 

 

RomA

 

 

cada verso

vindo devagar

chegaremos aonde

temos de estar

 

a dois

passos

 

sem preliminares

nossas bocas não irão a roma

nem a outros lugares

 

 

 

 

 

 

Flauta

 

 

volúpia rouca

da ponta ao talo

teu falo me conta

estrelas no céu

da boca

 

 

 

 

 

 

Irônica Crônica

 

 

minha sátira seria

toda prosa

ao olhar invejoso

se ao invés de glaucomatosa

eu fosse Glauco Mattoso

 

 

 

 

 

 

Doce de Espera

 

 

do fundo do tacho de cobre

desgrudo

o brigadeiro mais rebuçado

 

prazer

estou criança de colher

 

 

 

 

 

 

Tanto

 

 

eu não rezo terço

que não seja bento

eu não peço bênção

a quem não for santo

não faço canção

pra quem não tem tempo

eu só digo verso

ao ouvido atento

 

eu não quero prosa

se não for pra tanto

 

 

[musicado por Pedro Moreno]

 

 

 

 

 

 

Inocência

 

 

A minha criança

já nasceu do avesso

devassa

fora da casinha

fora do contexto

 

A minha criança

cresceu em

descompasso

com a razão

corpo que não pensa

coração ultrapassa

 

A minha criança

morreu nadando

na praia

perto do porto

seguro

que não alcanço

sereia sem canto

e sem graça

 

A minha criança

se perdeu

 

 

 

 

 

 

Certeiro

 

 

no coração

um estampido

quem mandou

dar munição ao bandido?

 

 

 

 

 

 

Lua Nova

 

 

tudo muda

com medo da bala

até a muda fala

 

tudo medra

e volta a ser pedra

no meio da sala

 

tudo míngua

mesmo a lua cheia

se não peco

 

tudo finda

e não acho eco

aqui nesta berlinda

 

tudo estanca

já perdi o jogo

agora estouro a banca

 

 

 

 

 

 

Pêsames

 

 

os poemas de amor que fiz

e travei com outros corpos

são caixões de luxo

onde

com grande pesar

carrego meus mortos

defuntos sem reza

e sem defesa

 

 

 

 

 

[imagens ©sølve sundsbø] 

 

 

Lúcia Santos (Arari/MA, 1964). Publicou três livros de poesia: Quase Azul Quanto Blue, Batom Vermelho e Uma Gueixa pra Bashô. Como letrista, tem parceiras musicais com Zeca Baleiro, Kléber Albuquerque, Cássio Gava, Clarisse Grova, Daffé, Tutuca, Rubens Kurin, Kana Aoki, Adolar Marin, Roberto Sampaio, entre outros. Realizou alguns recitais ao lado de outros poetas, como Celso Borges e Alice Ruiz. Seu trabalho pode ser encontrado também na internet, nos blogues: nufrontalcomtarja.blogspot.com  e atesouradedalila.blogspot.com.