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Com a primeira edição quase esgotada, Os dentes da memória,

de Camila Hungria e Renata D'Elia, deve ganhar nova edição

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Livros recebem atenção especial em seu lançamento. A novidade impele a mídia a divulgá-los no momento da publicação, mas há livros tão vivos que saltam das estantes, das livrarias, dos sebos e voltam a nos provocar a cada vez que são lidos.

Os Dentes da Memória, de Camila Hungria e Renata D'Elia, é um desses livros que subvertem a ordem do lançamento, como um ruído que vem da poesia insone, de uma geração em estado permanente de vigília. Com primeira edição quase esgotada, é provável que tenha em breve uma nova publicação, motivo a mais para resgatá-lo das estantes e debruçar-se sobre a razão de sua eficácia.

Lançada pela Azougue Editorial em 2011, a obra transborda o tempo, ao revelar as memórias de quatro poetas: Roberto Piva, Claudio Willer, Fernando De Franceschi e Roberto Bicelli, que nos dão a impressão de estar ali mesmo, sentados no sofá a conversar com a gente, como protagonistas de histórias cheias de caminhos e descaminhos, como deve ser toda história rebelde, transgressiva, dessas que nos fazem pensar que hoje foi ontem e que, de alguma forma, chegamos atrasados para assinar algum manifesto.

As autoras articulam o livro com a mesma inquietude dos biografados, percorrendo cinco décadas de atividade poética e amizade. Escrito em forma de entrevista, montada a partir de eixos temáticos, Os Dentes da Memória tem velocidade, instigando a leitura num só fôlego. A dinâmica da escrita tem muito a ver com toda uma época  de transformações — a partir dos anos 60 — conduzindo a trajetória dos poetas por uma São Paulo fantástica, em sua forma cosmopolita de absorver e devorar a cultura de outros pontos do planeta, com a ressonância de uma cidade guiada por satélites.

Os satélites, no caso, são os poetas que dão voz à contracultura nos anos de chumbo, trafegando numa avenida paralela que não é a da direita estrábica nem a da esquerda traumatizada. Em anos em que tudo converge para manifestações ideológicas, sua apologia é poética, sob o prisma de uma liberdade individual que também se manifesta em grupo e movimento culturais que traduzem as insatisfações e o desejo de mudar a realidade.

Os ecos da contracultura atravessam  o oceano e ganham ares tropicalistas em São Paulo, temperados por climas políticos e ventos nada hospitaleiros, que clamam por uma rebeldia que desemperre as engrenagens do poder: o poder da família, das instituições, das escolas, da sociedade e, sobretudo, do Estado ditatorial. É contra todos esses poderes que investem os quatro cavaleiros, poetas de um quase Apocalipse.

É com a ânsia do desmantelamento que ainda lemos os textos de Roberto Piva — cuja vida e obra estão entre os principais temas do livro — e seus poemas às vezes sarcásticos, às vezes ritmados por tambores que clamam por uma alma nacional xamânica, uma voz de rio e de floresta que reivindica revoluções. Esta mesma voz fala com as autoras desmitificando as melhores intenções de uma sociedade que, nos anos 60, prima pela moralidade gasta. Ele diz: "Eu era professor de Estudos Sociais, mas dava poesia, dava o que quisesse. Era um curso incrível, maravilhoso, uma viagem estratosférica em cima do livro que é o grande clássico da pornografia sociológica no Brasil: Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre. É um portento. Ele foi a única pessoa que fez essa relação de comida, de erotismo, tudo isso, com a etnia brasileira".

Já Claudio Willer traz a sofisticação da poesia e das ideias plasmadas por um conhecimento de intelectual imantado ao seu tempo, conectando ações que o mantém há décadas como um dos porta-vozes da cultura brasileira a partir de uma tomada universalista, um zoom completo sobre as vanguardas europeias e norte-americanas, onde ele bebe seu gole beat-surrealista de uísque e champanhe.

Nessa geração que se concedia a loucura e o devaneio místico-filosófico, Willer projeta-se como a pessoa preocupada com conceitos que constroem e extrapolam as performances, indo ancorar numa cultura abrangente o pensamento que revelaria a sina de uma geração de poetas marginais que iluminaram a literatura nacional com um archote, que vai além da racionalidade da poesia concreta, feita de cérebro e tijolos. Os beats paulistanos desafiam essa lógica propondo uma ruptura anticerebral, quase delinquente, de uma delinquência que rejuvenesce a poesia solta como eles mesmos: passageiros  de viagens de jipe às praias paulistanas, mistura de acampamentos e happenings literários, oficinas de comportamentos e vidas de manifestos.

Os poetas paulistanos formavam a antítese do comportamento padrão, colocando em jogo vozes dissonantes, provocando com um comportamento híbrido a modernidade envelhecida. No livro, Willer constata: "É impressionante, e pego como exemplo de caretice, que quando líamos aqueles impropérios de Artaud contra os psiquiatras, ou os trechos antipsiquiátricos de Nadja do Breton, sabíamos muito bem do que estávamos falando. É estarrecedor que um sujeito formado em medicina, que fez juramento ético, permita este tipo de coisa. Parece século XIX. Mesmo a psicanálise freudiana que se praticava na época era uma coisa subversiva, quanto mais a reicheana. E a gente lia Wilhelm Reich, era leitura corrente".

Antonio Fernando De Franceschi desponta na geração com sua "poesia refinada", segundo a avaliação de Willer, e uma voz que prima pela sensatez, embora inserido de corpo e alma naquele carnaval de ideias e euforias. Com passagens em órgãos da imprensa e instituições importantes, onde trabalhou com arte e cultura, De Franceschi é autor de poemas sofisticados e cheios de referências como "Fragmento", no qual entabula um diálogo entre Fausto e Mefisto. O poeta destoava de sua geração num quesito, não gostava de apresentações e justifica: "Pois é, eu não participei das leituras. Não gosto de ler poesia porque sou tímido e acho que leio mal. Agora, a poesia do Bicelli tem que ser recitada por ele próprio. Ele é um ótimo leitor de Bicelli, porque não é qualquer um que lê aquilo com graça. Tem que ter sal. Quem põe o sal é ele, ele é quem consegue temperar. O Bicelli tem essa coisa do personagem rigorosamente autoconstruído, que é ele próprio, e é muito fiel a isso".

No livro, são do "personagem" Bicelli  as frases divertidas, o sarro latente sobre as aventuras e comportamentos de quatro escritores inseparáveis, se não na vida, nesta "mitologia contemporânea" de ícones dos anos 60/70, frequentemente resgatados como aconteceu recentemente, no lançamento do filme Na Estrada, de Walter Salles, sobre a geração beat, quando eles foram chamados a tecer comentários para vários veículos da imprensa.  

Suas vozes são evocadas na mídia como protagonistas das transformações embaladas por poesia, música, cinema, artes plásticas, bebedeiras e a mais pura contestação da juventude de ponta dos meados do século XX, cuja inquietude ainda repercute com força na produção atual, como se observa nas redes sociais e na blogosfera pela atuação de poetas jovens ligados à chamada "Geração de 60".

Bicelli é o protagonista de passagens hilárias de Os Dentes da Memória como a do momento em que transa com uma namorada na pia do banheiro, leva choques, e supõe que a corrente elétrica deva-se ao frisson do momento erótico. É dele a "profecia" que encerra as entrevistas do livro, falando sobre a sua produção poética e a de seus pares: "Sabe o que vai acontecer? O interesse das pessoas vai crescer sempre e sempre e cada vez mais na obra desta turma. Eu acredito nisso. Primeiro pela posição existencial e segundo pela eficácia dessa poesia".

A eficácia que Bicelli evoca é, por exemplo, a de Paranoia — livro que traz dezenove poemas de Roberto Piva, lançado em 1963, com ilustrações de Wesley Duke Lee — representativo de uma das mais importantes parcerias artísticas do período. Ou ainda Anotações para um Apocalipse (1964) e Jardins da Provocação (1981), obras fundamentais da produção poética de Claudio Willer, publicadas por Massao Ohno, editor emblemático — falecido em 2010 — que também tem grande participação no livro de Camila Hungria e Renata D'Ellia, resgatando páginas de literatura e vida cultural.

Os Dentes da Memória tem título inspirado num poema de Roberto Piva — "Rangem os dentes da memória / segredos públicos pulverizam-se em algum ponto da América / peixes entravados se sentam conta a noite" — e demandou mais de cem horas de entrevistas para ser escrito, entrevistas feitas com cerca de 40 pessoas, entre as quais os quatro protagonistas, que formam aquela que é considerada a  última geração importante de poetas paulistanos, cuja produção influencia gerações emergentes.

O livro traz em sua parte final uma seção de poemas selecionados  de Roberto Piva, Claudio Willer, Roberto Bicelli e Antonio Fernando De Franceschi. Antes, um capítulo descreve a doença e a morte de Roberto Piva (1937-2010). Nessas páginas, o relato sobre seus últimos dias soma-se a uma dose inevitável de poesia na descrição de seu sepultamento. É neste último momento que um apelo xamânico fecha a cena de sua vida quando as autoras descrevem:

 

"Às 11 da manhã, o cortejo cruzou a cidade rumo à zona leste.

Ao meio-dia, um imenso gavião carregou um pássaro morto no bico e sobrevoou o crematório da Vila Alpina.

Não houve música durante os 10 minutos da cerimônia de corpo presente. Claudio Willer despediu-se do amigo ressaltando seu imenso legado de amizade, poesia e vitalidade.

24 pessoas se despediram de Roberto Piva com uma salva de palmas, às 14h30 do dia 4 de julho de 2010".

 

 O apelo xamânico do "imenso gavião" que cruzou o céu de São Paulo no sepultamento de Piva, evoca a vibração primitiva de seus poemas, com a transposição ilimitada do imaginário para a literatura e da literatura para a vida. Peculiaridades de poeta, de xamã, que compunha com os amigos uma constelação criativa que não separava existência e obra. O desfecho do livro é assim um voo para outra iniciação ainda imantada pela matéria-prima chamada poesia, essa pulsão que não cessa, não morre e ainda chove sobre novas gerações.

 

 

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O livro: Camila Hungria e Renata D'Elia. Os dentes da memória.

Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2011, 255 págs.

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janeiro, 2013

 

 

 

 

Célia Musilli é jornalista, cronista e poeta. Autora de Sensível desafio (Londrina: Atrito Art, 2006) e Todas as mulheres em mim (Londrina: Atrito Art/Kan Editora, 2010), escreve para a Folha de Londrina, faz Mestrado em Literatura na Unicamp. Gosta de livros, mar, viagens, estrelas e gatos, nem sempre nessa ordem.
 
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