Amor

 

 

Por todo o caminho, te levo comigo,

como quem carrega o próprio coração nas mãos, pulsando.

Como quem bebe um vinho precioso,

deixando que o líquido se espalhe e molhe o rosto.

Por todo o caminho, te levo comigo,

como quem arranca um punhado de mato e põe no bolso,

só para sentir a raiz entre os dedos.

Te levo comigo, sobre os ombros,

até o alto da mais alta das montanhas.

 

 

 

 

 

 

Exílio

 

 

Aqui quase não chove.

Quando chove, lembro de meu país.

As terras são brancas,

o Sol se põe depois da meia-noite.

 

Aqui o vento faz a curva

sobre mim e, quando o frio bate,

desejo florestas imensas

ardendo acesas dentro da noite.

 

Aqui o termômetro ficou louco,

como a anatomia para Maiakovski.

Meus dedos doem, enquanto escrevo,

e as palavras saltam da boca congeladas.

 

Aqui as moedas são tão frias

que jogo I Ching com varetas

e o milefólio quase enverga.

 

Cada hexagrama, cada sentença

parece ter um peso histórico.

 

 

 

 

 

 

Malabarismo

 

 

Se eu tivesse nascido no circo,

não me machucaria este siso,

doendo agudo na alma.

Desprezaria a abstrata

necessidade de dar certo

na vida e não faria nada.

 

Aprenderia a domar pulgas, engolir fogo,

adestrar poodles, fazer contorcionismo.

Dependuraria os sonhos no mais alto trapézio,

enfiaria o tédio na jaula dos ursos.

Usaria minhas habilidades

para equilibrar facas na língua

ou entreter o público.

 

Se eu tivesse nascido no circo,

Não teria desejos imediatos ou deveres inadiáveis.

Deixaria cada coisa entregue a seu destino.

 

 

 

 

 

 

De volta à caixa de abelhas

 

 

Com zelo e alguma tristeza, guardo coisas:

cartas antigas, fotos antigas, calendários.

Se me perguntarem a razão, direi que sei, direi que um dia saberei...

Há quase um ano aguardo notícias importantes,

dentro desta caixa de abelhas.

Todas as noites, o carcereiro chega,

põe sua cabeça na pequena grade e ri.

Amanhã mesmo deixo esta coisas, esta caixa.

É algo que assumo cuidadosa, como se soubesse que não vou voltar,

como se conhecesse o rosto que se oculta,

ou como se mentisse, quando sinto que sei.

Ontem mesmo o carcereiro esqueceu-se de vir.

Minhas lembranças zuniram tontas,

entre as paredes desta caixa,

doloridas de saudade.

 

 

 

 

 

 

Pequeno mapa do tempo

 

 

Organizamos um piquenique

dentro do parque da cidade,

toalha xadrez, cesta de vime

— a santa ceia.

Convidamos um Judas

de aspecto meio junkie

e um Pedro afeito a negar

todas as coisas. E, claro,

aquele que faria milagres.

Fazia um sol dos diabos,

Tiago levaria anfetaminas.

Ele subiu as alamedas

com as bolinhas coloridas

apertadas entre os dedos,

assobiando um rock.

Quando chegou, vimos,

espantados, o que os

comprimidos derretidos

haviam deixado:

em suas mãos,

uma tela de Pollock.

 

 

 

 

 

 

Alegoria

 

 

Toco as costas da moça nua,

deitada a meu lado na penumbra,

e sinto a sua pele mansa,

como ovelhas na montanha

da nuca que se insinua.

Sob o lençol macio, um mundo pulsa,

e minha mão desliza, inteira

sobre ela, moça nua, elo perdido

entre o que sou e o que flutua.

Sem dizer nada, sinto que peço

que me devolva a paz da infância,

e que me mostre o mundo, a substância

do que é vida dentro de mim.

Sem dizer nada, sinto que impeço

que ela se abra e me devore

e coma o fruto que ofereço,

em sumo, carne, língua, dedos,

fluido etéreo do amor que teço,

terço que rezo, prenhe de sim,

nu de razões ou de adereços

 

 

 

 

 

 

Alvorada

 

 

"A tarde ardia com cem sóis".

    Maiakovski

 

 

Ela me disse "eu também já tive aves no peito"

e mergulhou entre minhas pernas.

O dia amanhecia, então, estávamos em um deserto,

apertei o seu coração entre meus dedos

e segurei com força cada movimento em minhas mãos.

O Sol pintaria, mais tarde, todas as manhãs do Universo,

e restariam aquelas palavras, asas, e um gozo lento,

ritmado como as horas, a marcarem seu orgasmo na

                                                      [memória,

arrancando cada pena, pele, pelo.

 

 

 

 

 

 

O pequeno Hitler

 

 

Todo mundo traz em si

o menino de Braunau

em um bunker imaginário.

E cada sonho que temos,

seja entrar para a Academia de Artes

ou possuir a espada de Longino,

é o marido de Eva Braun,

o arquiteto do caos,

que queima em nosso peito.

 

Pois ele também sonhou,

na abadia de Lambach,

servir a Deus e ser bom.

E cada sonho que temos,

seja planejar uma cidade

ou comandar um exército,

é o dono do cão Blondi,

o filho de Klara e Alois,

que ruge dentro de nós.

 

Pois ele também sonhou

certa tarde, no Museu de Hofburg,

ter a lâmina da vida nas mãos.

E cada sonho que temos,

seja eternizar-se na memória

ou liderar uma nação,

é o plagiador de Blavatsky,

o falsificador de Nietzsche,

o criador de Treblinka

e de Auschwitz-Birkenau, que grita.

 

 

 

 

 

 

Bandini

 

 

Este mundo não te pertence, Bandini.

O modo rude como afias a faca

nos teclados da velha máquina.

Sente, Arturo, a voz doce da garçonete,

a mexicana de alpercatas sujas.

¿Fumabas unos chinos en Madrid?

Para viver, é sim, para viver assim,

com nada além de palavras.

No hacías otra cosa que escribir.

E sonhar, faca amolada,

ao som da velha máquina,

a cravar letras na folha. Olha,

são como estrelas cadentes.

Ouve como gemem, pálidas

de espanto no branco da página.

 

  

 

 

[imagens ©jane fulton alt]

 

 

 

 

 

Kátia Borges. Escritora e jornalista. Publicou os livros de poesia De volta à caixa de abelhas (Selo As Letras da Bahia, 2002), Uma Balada para Janis (Edições P55, 2010) e Ticket Zen (Escrituras, 2011) e, de prosa, Escorpião Amarelo (Edições P55, 2012).  Seus poemas foram publicados ainda nas coletâneas, Sete Cantares de Amigos, Concerto Lírico para 15 vozes, Roteiro da Poesia Brasileira — Anos 2000 e Traversée d'Océans — Voix poétiques de Bretagne et de Bahia, edição bilíngue, organizada por Dominique Stoenesco. Vive em Salvador/BA.