"Ai, palavras, estranha potência a vossa!"

 

 

As palavras são meu chão, paredes e teto

Obra-prima com a qual

Construo minha casa de cada dia

Alimento na minha mesa

Ou dieta vitaminada por silêncios

Somos gêmeas siamesas

Minhas palavras me falam

Minhas palavras me calam

Modificam, edificam

Missão, pomar

Sal para minhas águas de mar

Por elas, as palavras

Escalo regiões montanhosas

Garimpo gotas nas espumas viscosas

Ai, palavras, ai, palavras

Linha cava de minha vida

Bula e bússola

Movimento interplanetário

Nos céus de meu destino

 

Ai, palavras, ave

Maria, José, João, Francisco

Todos esses, com vossa permissão

Escreveram história nesta mão

Ai, palavras, ai, palavras!

Passaporte para viagens intergaláticas

Poção e porção

Fogo no corpo

Borboleta sem casulo

Rumo às larvas da paixão

 

Palavras distendem, palavras apagam

Deuses já consagrados

Palavras disfarçam, palavras acendem

Luzes em pântanos encharcados

Estranha potência

A vossa energia magnetiza

Ai, palavras, ave!

Livrai-me de todo o mal

 

 

 

 

 

 

Des/caminhos

 

 

O que é que eu faço agora

Com tanta dor existencial?

O que era lar se esvaziou

Ouço fantasmas no varal.

As sementes que plantei

Brotaram todas

E ao mesmo tempo

Meu terreno submerso

Requer novo mapeamento:

(En)focar prioridades

Distinguir adubo de excremento

Escolher entre árvores e florezinhas

Espantar pardais

Destruir ervas daninhas.

O que é que eu faço agora

Com tanta dor existencial?

Separar o joio e o trigo

Nunca foi meu bacanal.

Coração magoado

Comigo-ninguém-pode

Alecrim, onze-horas

Trevo-de-sete-folhas

Tudo deu no meu quintal.

"Ou isto ou aquilo"

É o que ouço ao pé de Cecília

"Calço a luva, visto o anel"

Nem assim fico tranquila.

O que é que eu faço agora

Com tanta dor existencial?

 

 

 

 

 

 

As duas taças

 

 

Eram duas taças na prateleira do supermercado

Eram duas taças numa parede qualquer

Como parecem ser as paredes de Pasárgada.

Eram duas taças que não passariam de

Até que a mão dos amantes as escolheu.

Dali para a frente, em um quarto fuleiro de hotel

Passaram livremente a rainhas do lar.

E como corpos recebendo o espírito

Por elas escorreu o vinho

Tinto de paixão.

Em instantes estavam inebriadas

Tomadas de amor e decisão.

Enfim as taças, a um canto,

Eram as testemunhas ao vivo e em cores

Oculares e osculares

Daqueles corpos suados

Bailando na cama

Trocando calor

Exalando a vida de uma noite qualquer em Pasárgada

Banhada por mar e maresia

Até que o milagre lhes viesse à borda

Em uivos guturais.

Desde então, as taças, a um canto

Transbordam no cenário

Desta história de amor.

 

 

 

 

 

 

Ressuscitanda

 

 

A primeira vez que eu morri

Eu estava com 7 anos

Saí da barra da saia da mãe, na roça

E fui pra cidade aprender as letras.

 

A segunda vez que eu morri

Foi aos 16 anos

Saí da adolescência e caí de cheio

Na vida de mulher adulta, casada.

 

A terceira vez que eu morri

Eu tinha 18 anos

Agora, além de mulher adulta

Eu era mãe.

 

Dos 18 aos 25 anos

Fui mais três vezes sucumbida por ela

O vento da morte agora

Varrendo dentro de casa

Levou meu irmão mais velho

Meu pai e minha mãe

Cada um a seu tempo.

 

A sétima vez que eu morri

Foi aos 26 anos

Como estudante das Letras descobri

A poesia que faltava em minha vida

E quis romper relações.

 

A oitava vez que eu morri

Foi aos 36 anos

Saindo de um casamento de 20

Para uma vida muito diferente.

 

Aos 39 anos

Morri pela nona vez

Ao receber de súbito

A morte de tão querido irmão.

 

A décima vez que eu morri

Foi aos 40 anos

Saindo de um namoro/casamento

Que me rendera mais intimidades que o próprio.

 

A outra vez que eu morri

Aos 41 anos

Foi quando em um porto seguro

Deixei para sempre plantada

Minha professora e amiga Ana.

A última vez que eu morri

Foi em um consultório psicológico

Meus fantasmas me assombravam

Mas eu já não podia mais correr.

 

Revisitando minhas outras mortes

Fui aprendendo um jeito de ser delas

Descobrindo alguns de seus segredos,

Fui virando uma espécie de amiga-irmã.

 

Desde então a morte tem me livrado a cara.

 

 

 

 

 

 

Quero chão

 

 

Um vento forte me soprou adentro

Desarrumando os sentimentos

Esparramando a poeira

Fazendo as folhas outonais

Amareladas pelo desejo do verde

Esquecidas e sobrepostas por paredes decaídas

 

Será que derrubar tudo de vez

É só por algum tempo

Até não chegue a brisa

Que sopra lavando

Espelhando a face interna

Da força lapidada de sensibilidade?

 

Quisera mesmo perder o aço dentro de mim

Senti, por um momento, o chão se abrir

Convidando-me a habitar o subsolo.

Eu era toda chão.

Pelo choro convulsivo, engolida

Desejosa só de chão

Banhada só de lágrimas

O meu único poder de produção.

 

Fecundada só de dor

Esquecida dos delírios de amor

Embebida tão somente de suspiros ofegantes

Que ora me encolhiam no adentro

Ora me lançavam no afora.

 

Nenhum amor pra me segurar no colo

Nenhuma mão pra me tirar dali

Então me levantei sem querer

Foi sem querer que ergui o corpo

Foi sem querer que recuperei

A capacidade de estar viva

Foi sem querer que me surpreendi viva.

 

Não sei se vou colar os cacos

Ou estilhaçar-me de vez

Ser inteira é tarefa para além de mim

Acho que vou me redimir

Acho que vou me eximir

E aceitar os limites da cerca.

Já não vislumbro horizontes

O meu ar parece ter perdido a graça.

 

 

 

 

 

 

Tempo tempo

 

 

Eu queria matar o tempo, que não me espera

Eu queria matar o tempo, que me sufoca

E, sem palavras, conta que está passando,

Está correndo, que tem pressa e não há mais

Eu queria matar o tempo, que grita e silencia

mas não leva minhas inquietações.

Sim, quantas vezes eu queria matar o tempo!

Esse amigo implacável

Que me dá norte e desnorteia

Que me dá cama e tira o sono

Que me dá corpo e tira o fogo

Que me dá beleza e tira a esperança

Que me lança na vida

E tira a coragem de seguir

Que me faz grande

Para diminuir seguidamente.

Ah, como eu queria matar o tempo!

Mas na ânsia de segurá-lo

De prendê-lo aos meus anseios

Vejo-o sutilmente se escorrer

Pela palma das minhas mãos

Eu queria matar o tempo

Quando percebo, sem nem mesmo medirmos forças,

Fui eu que morri um pouco.

Ah, tempo, amigo insaciável

"Eu não tinha este rosto de hoje

Em que espelho ficou perdida a minha face?"

 

 

 

 

 

 

Poema fdp

 

 

Tem um poema cercando nas minhas fuças

Querendo nascer e crescer às minhas custas

Quero cuspi-lo num trago só

Mas ele insiste em me degolar.

Poema filho da puta

Sai da minha vida

Acha outra gente em quem se encostar

Me deixa olhar o mundo

Igual a todo mundo.

Seu caroço empacado

Que me faz besta, travada, trancada sem paredes

Vai habitar outro cerrado.

Poema filho da puta, eu insisto:

Cai fora da minha vida

Eu quero ver o mundo

Igual a todo mundo. 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©istvan sandorfi] 

 

 

Jan Cordeiro é o pseudônimo da poeta, contista e educadora mineira Janeuce Cordeiro Maciel. Vive na cidade de Turmalina, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Ela é autora dos livros Joia de Família (memórias), Olha Turmalina. Vejo sua gente (poemas) e Ave, Poesia!. Os dois últimos escritos em parceria com Gilda Gomes e A. Zarfeg, respectivamente. Membro correspondente da Academia de Letras de Teófilo Otoni (ALTO) e da Academia de Artes de Cabo Frio (ARTPOP). Em 2014, pretende reunir em livro seus contos, crônicas, artigos e textos avulsos. Palavras de Jan Cordeiro: "Tudo em mim fala poesia: sou, enfim, o que a vida tem de mais simples, moro nos interiores, lambendo a terra e tentando me safar dessa lama por palavras. Mas quanto mais me liberto nelas, mais elas tentam me prender".