Lendo outro dia um artigo sobre Sidney Miller, fiquei contente ao vê-lo citar músicas que eu o vi laborar pacientemente no sobrado onde residia com a família da noiva, constituída pela própria, Jane — órfã de pai e mãe — e dois irmãos, além da avó, já bem velhinha. Sidney ocupava um quartinho miúdo e redondo, na parte de cima. Era, praticamente, uma torre de observação. Se fosse maior, bem poderia ser chamado de andar, o que promoveria a habitação a casa de três andares.

Fincado numa pracinha pequena e calma, no bairro do Leblon, no Rio, o antigo sobrado possuía uma arquitetura romântica, de contos de fada. Seu interior era testemunha de histórias bonitas e fatos engraçados. Destes, um atinente à avó. Ela, por não admitir que Sidney e Jane ultrapassassem os limites do que considerava decente para um casal de noivos, estava sempre alerta, a vigiá-los.

Certa ocasião, deu-se o inevitável. A avó diligente surpreendeu os noivos trancados no quarto. Primeiro, bateu fortemente à porta, clamando aos berros por "Janinha!". O casal se manteve em absoluto silêncio. Depois de muito socar a porta, já vencida pelo cansaço proferiu a frase que mais tarde Jane e Sidney repetiriam às gargalhadas ao narrar o acontecido. Ao entregar os pontos, a protetora avó lançou as palavras ameaçadoras que resumiam toda a situação: — "Eu sei o que vocês estão fazendo aí dentro!". E desceu as escadas resmungando sem parar: "Eu sei! Eu sei!".

A parte bonita das coisas que se desenrolavam no deslumbrante sobrado fica por conta do compositor, letrista, poeta e escritor Sidney Miller. Espírito de eterno adolescente, rosto de eterna criança, barba rala, cabelos de um indefinível castanho-alourado tendo sempre uma mecha a desabar teimosamente na testa ― que encimava o rosto de pele muito clara, marcada por cicatrizes de antigas espinhas. A fala tímida e suave era quase uma representação de sua música.

Nada me dava mais prazer do que ser recebido naquele casarão e desfrutar por horas a fio da música e do toque de seu incrível balanço no violão. "Está na hora da escola de samba sair / deixar morrendo no asfalto uma dor que não quis / Quem não soube o que é ter alegria na vida / tem toda a avenida pra ser muito feliz...".

Num programa da televisão mineira no qual artistas são convidados a cantar alguma coisa de um compositor que já partiu, interpretamos essa canção de Sidney. Na verdade, Sá e eu começamos nossas carreiras cantando com ele. Formávamos uma espécie de trio inseparável, fazendo apresentações sempre juntos, embora cada um interpretasse peças de seu próprio repertório. Foi emocionante poder homenagear o amigo.

Mas não gostaria de passar ao leitor uma imagem triste de Sidney Miller. Na realidade, sua faceta divertida e bagunceira era componente forte de sua personalidade e uma verdadeira curtição.

Certa ocasião, quando eu ainda residia no célebre Solar da Fossa (Nota da editora: clique aqui e saiba mais), gravei, com um microfone metido discretamente por debaixo da porta de um quarto vizinho, quarenta minutos de uma noite de amor barulhentíssima proporcionada por um ator (hoje famoso) e sua namorada. Romance rumoroso aquele. Mesmo da portaria, que era distante, conseguia-se ouvir nitidamente os rugidos e o bater da cabeceira da cama na parede. Não raro, o porteiro tinha de, muito sem-jeito e por solicitação dos outros moradores, pedir que diminuíssem o frenesi.

Gravei tudo com ótima fidelidade. Na noite seguinte, levei a fita ao amplo e elegante Café Teatro Casa Grande, ponto de encontro de escritores, maestros e intelectuais, para encontrar Sidney, diretor artístico da casa. Depois de ouvir o conteúdo na cabine de som, quis a qualquer custo que a gravação bizarra fosse reproduzida no sistema de som da casa. Tentei impedir, mas não fui bem-sucedido. Chamou o operador e mentiu dizendo que se tratava de cantos indígenas gravados no Amazonas. No salão, explicou a mesma coisa a Antonio Houaiss, Sérgio Cabral, Guerra Peixe, Nelson Lins e Barros, a pintora Djanira e outros da fina-flor da intelectualidade brasileira, preparando-os para o que estavam prestes a apreciar nos alto-falantes. Depois, levou-me para os bastidores de onde acompanhamos, rindo a valer, os mestres em atitude mais do que reverente ouvindo o baticum e os gritos da orgíaca noite, como se estivessem avaliando uma legítima cerimônia indígena celebrada nas distantes selvas brasileiras. Quando um maestro sacou uma partitura para anotar o ritmo e a possível melodia, Sidney desabou de tanto rir a ponto de deitar-se no chão com as pernas bicicleteando no ar.

Muito se fala da tristeza de Sidney e de sua personalidade reservada. Prefiro, porém, lembrar-me dele como naquela noite alegre. Dessa forma, posso perpetuá-lo em meu coração no lugar reservado às boas recordações. "Vai, levanta a bandeira colorida  / Pede passagem pra viver a vida".

Mesmo hoje sua imagem ainda me inspira ao surgir nítida em minhas lembranças, e ainda posso vê-lo novamente a sorrir e a cantar.

 

 
abril, 2013