Sotero

 

 

Um homem solitário. Nunca o percebi para além dos hábitos. Pela manhã dos gatos cuidava. Ao entardecer o pôr do sol lhe ocupava. Um dia, os gatos morreram. E para se recompor começou a tecer bolsas e tapetes felpudos como os gatos, belos como o olhar deles; agora reinventados no sol que espiava. Outro dia o vi mancando. Numa solidão que excedia a ausência de uma bengala. Pela primeira vez me comovi com sua solidão. Acordei para o que nele era falta. Acordei para os seus imperceptíveis rituais de ausência. Ele me sorriu.

 

 

 

 

 

 

Couto

 

 

não mais o galo

a esculpir com o que resta de escuridão

o barulho inaugural das manhãs

 

não mais o corvo de Poe

a bicar a aorta da noite

com o sonoro desencanto de um Nunca Mais

 

 

 

 

 

Natan

 

 

há qualquer coisa de profundamente triste

quando a criação é náufraga de palavras e dias

 

na antevéspera da primeira angústia

o que houve?

 

 

 

 

 

 

Espectros de uma delicadeza perdida

 

 

Uma palavra, que bem poderia se chamar Catarina. Uma infância, que bem poderia ser a minha e a de Jorgeane: breves, próximas e desencontradas. Uma flor, que me é difícil agora nomear. Uma nudez, que bem poderia ser a de Lis. Um pé na superfície. Outro no subterrâneo. Joyce. Borges. Beckett. Os olhos de Knulp soterrados sob a neve. A noite. Não mais a comum noite dos homens. Mas aquela que teceu na alma a dúvida como exílio. A Finitude e o inútil rastro do eterno. Tudo em colossal abandono. Todos: perdas abismais soletradas com rigor na memória da carne anunciando imperceptíveis rituais de ausência.

 

 

 

 

 

 

Conclusão de um homem de 35 anos

 

 

só as coisas que caminham silenciosamente

sem ostentar o desespero latente

podem explodir na medida da própria fome

à altura da própria dor

 

 

 

 

 

 

Ocaso

 

 

o que repousa na solidão

alta de mim

espia o avanço e recuo da morte

 

atroz canto

para os ouvidos do entardecer

onde acumulo fosso e cansaço

 

e no uso diário

espanto e espelho

bicado por pássaros do nada

 

 

 

 

 

 

Em nome de Deus II

 

 

para Salgado Maranhão

 

assim como "este cego que delira flores"

para o pó do último sorriso

o pai morto dentro do meu passo embolorado

expõe a finitude

alarmada do alto do mineral desalento

 

minhalma implicada de Sísifo a Dante

como natureza amadurecida do nada

tomba para a mesmíssima e desvairada tormenta

de outros versos e carne

na multidão que lhe encerra

 

 

 

 

 

 

Em nome de Deus I

 

 

para Dante Alighieri

 

na sílaba presa

ao estéril ouvido do calvário

a fala necessária é um abismo

como fruto adoecido no perdão

 

não há ressurreição

para a atmosfera de puídas sombras

se o chão aberto à boca do verme

é memória do silêncio ausente

 

 

 

 

 

 

Corre do Vento

 

 

quando menino

corria do vento

insistia que a ponte

era um trapézio que se movia em segredo

não sonhava com bicicletas

nem com mergulhos no mar

pedalava num velho velocípede

que descascava em azul

como espantalho no quintal

o rosto herdado da tataravó

era uma escritura de solidão

para cada lágrima

inventava um cisco de brinquedo

as velhas ruas da cidade

encompridavam a melancolia

enxergava o mundo

através do sapato furado no dedão do pé

silenciosamente desconfiava que se movia

como os brinquedos do parque de diversão

uma alegria dada pelo espaço

não pelo tempo

 

 

 

 

 

 

Aquele caderno sobre a mesa do café

 

 

A mãe tem anotado num caderno

um verso de Jorge Luís Borges. Diz ser

sua a escritura que une em uma única

linha morte e festa. Nunca suspeitara

da existência do bardo dos labirintos,

Shakespeare, espelhos, neblina. E como se

não bastasse a solicitação de um mesmo

ritual para quando do uso das duas mais

altas máscaras de partida e chegada, a mãe

também está ficando cega. Os móveis

da infância há muito não estão no lugar.

A memória não os organiza mais como

lembrança. A presença esculpida como um

cemitério de gestos e o olho que começa

a mancar na escuridão são os dois últimos

legados de uma estrada comprida, vista da

janela pelo filho, cujo silêncio é um ensaio

para outra morte.

 

 

 

 

 

 

O não-dia

 

 

é que no silêncio

há uma casa triste

é que quase já se advinha

o fantasma da mãe na cozinha

e se for domingo nada mais recorrente

há solidão na quina da mesa

as cadeiras continuam no entorno

vazias

e o diálogo surge de repente

como se sempre viesse do abismo das reticências

como um pedaço restante

daqueles poucos encontros em família

é verdade: o tempo apalpa a própria validade vencida

é nas distâncias que habitam os que não têm rosto

nas lonjuras do lugar

quando sempre é domingo

o não-dia

 

 

 

 

 

 

Exercício de fracasso

 

 

descobri que os motivos

da minha poesia levam à óbito

não posso mais pensar na morte

como faço diariamente

sem que a pressão vá às alturasnarrar paisagens submersas

ficou muito arriscado

no mundo diet de quem se angustia

na contemporaneidade de forma light

a grande poesia dos dias

é leve, cotidiana, irônica e não mata

como um vinho num poema maldito

acaricio a roda dentada

dos motivos que me restam

a assinatura enigmática do tempo

carimba o que os modernos não previram

o desencanto contemporâneo

é um fetiche antiantropofágico

 

 

 

 

 

 

Fragmento achado em 2061 nos

subterrâneos da feira da Praia Grande

 

 

pedaço de náufraga coisa

sombra que se contorce

passarela-matadouro do ver

espero pela primeira partida

para sentir tal qual uma perna ausente

o tempo como um aleijume

lis-jorgeane-catarina-gissele-rose-cássia-gilberto-jales-

alexandre-hagamenon-bioque-ailton-ricardo-natan-

josoaldo-couto-paulão-samarone-bruno-geraldo-celso

um único nome

o nome mais comprido do indizível

intranquilos dias do espírito

íntimos ruídos nas fundas águas da voz

caixão-espelho

o mais do mesmo

 

 

 

 

 

 

 

Tempo

 

 

os dias que me alcançam em um nome

como um peixe atropelado na memória

pelo velocípede da infância

como um prego perfurando o caixão das pálpebras

até a última escritura do ridículo

nunca se sentiram narrados ou narrando

a história da materialidade da presença

e agora como um bestial espantalho solitário

se abrem com a delicadeza de um guarda-chuva triste

 

 

 

 

 

 

Entre um copo de cerveja e o olhar

depositado no tempo

 

 

um homem solitário

como um prego enterrado dentro da noite

quando o desejo é uma melancólica

roda gigante em desuso

 

 

 

[Do livro O perdedor de tempo. São Luís: Pitomba, 2012]

 

 

 

[imagem ©jane fulton alt]

 
 
 
 
 
 
 
 
Dyl Pires (São Luís/MA, 1970). Poeta, ator. Publicou dois livros de poesia: O Círculo das Pálpebras (1999) e O Perdedor de Tempo (2012). Publicou ainda no jornal Rascunho de literatura, Revista Literatura em Debate e na Revista Pitomba. Na gaveta, O TorcedorA Menina de Pé Trocado e A Alegria é um Antigo Caderno de Caligrafia. Ator da Cia. de Teatro Os Satyros, participou das seguintes montagens: Roberto Zucco e Satyros Satyricon. Vive em São Paulo.
 
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