um rumor secreto | marcel duchamp
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Não sei se ando de mau humor, não sei se envelheci e não dei por isso, nem sei mesmo se foi esse ano atípico que venho enfrentando e torcendo para que termine depressa, não sei se é por causa da artrose nos joelhos, mas ando impressionada com a verdadeira infestação de pessoas arrogantes, tolas e antipáticas na área artística, especialmente na área literária, que conheço um pouquinho melhor.

Haja paciência! Com algumas exceções (poucas, infelizmente), os colegas escritores não querem mais ouvir, só falar e — o que é mais grave — apenas sobre suas "maravilhosas" obras. Que, em sua maioria, não são tão "maravilhosas" assim. Será que me transformei mesmo numa escritora velha e ranzinza, quiçá até mesmo invejosa? Se for isso, como dizem os argentinos, creio que tenho "pantalón" (acho essa expressão o máximo) suficiente para reconhecer o fato, dar a volta por cima e desencanar de vez.

Mas tentemos decifrar essa história com mais vagar: de uns tempos para cá, tenho reparado, quase que diariamente, por meio de postagens em redes sociais, e-mails e telefonemas, a sedimentação do que poderíamos chamar de "instituto oba-oba", uma espécie de ação entre amigos e conhecidos que se autoelogiam e também o fazem mutuamente, em um contínuo e infinito rasgar de sedas, brocados, veludos e similares. Nesse festival de egos, nessa overdose narcísica, toneladas de lantejoulas vão espalhando seu brilho (falso) e se reproduzindo por milhares de quilômetros, atravessando planaltos, planícies, cerrados, montanhas, rios, riachos, metrópoles, cidades de médio porte, cidadezinhas, povoados, aldeias, acampamentos, que sei eu.

Devo registrar que acho natural, próprio do ser humano, o desejo de prestigiar e realçar parentes e amigos. O contrário é que seria estranho. Contudo, o "instituto oba-oba", ao qual me refiro, vai muito mais longe, seu raio de ação é quase ilimitado. Pessoas antipaticíssimas, metidas e individualistas são alçadas à categoria de "encantadoras", "mágicas", "generosas", quase "sobrenaturais". E — motivo de grande estranheza para mim — são elogiadas justamente em relação àquilo que não possuem, por mais que se queira atribuir-lhes essas qualidades. É como se, inconscientemente (pelo menos assim espero), as pessoas com as quais se relacionam, real ou virtualmente, intuíssem o que lhes falta e insistissem na tarefa inglória de tapar "definitivamente" o sol com a peneira, provavelmente com base na velha declaração de que uma mentira contada exaustivamente transforma-se em verdade.

Editores que mal nos ouvem, que quando muito nos concedem a graça de lançar-nos um olhar rápido, de cima para baixo, por vezes até mesmo enviesado, ou um mero levantar de sobrancelha, que não respondem a e-mails e nem tampouco atendem a telefonemas são saudados como autênticos serafins, caídos do céu por descuido. Chamados de simpáticos? Isso seria pouco. Endeusados, isso sim.  Mas o mesmo ocorre com escritores, criadores de sites literários, agentes, jornalistas, divulgadores etc. As fileiras da hipocrisia vão se tornando cada vez mais grossas e robustas.

O que realmente me intriga é o exotismo da situação: quanto mais antipática, indiferente, grossa e arrogante for a pessoa, maior o volume de incenso e loas recebido. Essa equação invertida, esse paradoxo de base, esse contrassenso, esse avesso do avesso, é algo que tem me feito refletir bastante. Seria o tratamento reverencial uma forma de defesa? Por causa da antipatia que lhes é inerente, esses seres seriam temidos e por isso o tratamento reverencial a eles dirigido representaria apenas uma tentativa de neutralização, uma técnica de sedução simplória, do gênero "faça com os outros, mas não comigo, já que lhe dou um tratamento de príncipe/princesa"? Ou existiria um grave e generalizado problema de percepção que se alastra entre nós e tem passado despercebido?

Lembro-me que, quando esse assunto começou a me incomodar, perguntei-me repetidas vezes se o problema era meu, se por um "defeito de fabricação" ou um acidente de percurso só eu o via dessa maneira, se estaria muito cansada ou desenvolvendo alguma doença mental ou coisa que o valha. Comecei então a conversar com pessoas do meio literário, escolhidas a dedo por sua seriedade e equilíbrio, e fiz uma pequena enquete para uso pessoal, tomando o cuidado de não influir nas impressões alheias. Ao final, constatei que as opiniões coincidiam com as minhas, sem tirar nem pôr.

Tudo isso me levou a crer que os antipáticos são mesmo antipáticos, não temos para onde correr, não há dicionário que possa dar jeito. E, quando terrivelmente antipáticos, não existem loas ou papagaiadas capazes de neutralizar essa antipatia. Em uma próxima encarnação, quem sabe? Aí já não posso responder, por puro desconhecimento do tema.

Tempos bicudos estes, nos quais a hipocrisia torna-se uma arma, um escudo de defesa. É de doer! Mas a questão não é nova. Se servir de consolo, basta reler alguns textos de Ruy Barbosa, nascido há 164 anos, que tanto pelejou contra a falsidade e a hipocrisia. O fato de ser antiga, contudo, não a torna menos importante. Pelo contrário: com o surgimento das mídias instantâneas, ela se avoluma e se agiganta a cada dia, a cada hora, a cada minuto.

 

 

 

 

dezembro, 2013