Conversa para um espelho

Tenho andado resignado.
Meu beluário tem se contentado
com apenas poucas feras.
Há um riso (manco),
um infinito pela janela.

 

Um olhar tão mais breve
Cai sobre as coisas.
É chegado o tempo.
Uma hora.
Vontade.

 

Das aldeias do mundo,
não chegam mais telegramas.
As crianças sabem.
As crianças não sabem.
As crianças são!

 

Tem muitos anos,
o muro de Berlim caiu
(aquela moça do jornal nem é mais moça).

 

Morreu Carlos Drummond de Andrade!
Morreu, inclusive, a Morte.

 

 

 

 

 

 

Solipsismo

 

Um poema se ergue do vácuo —
benditas pernas de outono —
galo que dobra da noite
numa sôfrega luz de poste

Um poema se despe da morte
com olhos cheios de chuva

feito claustro
seiva e bruma
Feito nada
     noite que afunda

Um poema...

Serafins coagulam lembranças
na ignóbil superfície das unhas

A terra sorve dos ombros
a angústia de todos os dias

 

 

 

 

 

 

Giramundo

 


Achar esse verso perdido

com ventura de quem,
estando no telhado,
ergue a telha da casa do sonho

Achar esse verso perdido

vez que lá fora tudo é desterro!
(e rios correm para dentro
das ruínas do sonho —
amarfanhado de raquíticas veias )

Achar esse verso perdido

(ou erguer a velha divindade —
triste, tão mais triste —
de um gesto que deixamos)

: descer outro porão,
porque este é o caminho do poema
a pata do lince no estro da chama

Conspícua tarde de maio
em que todos os nossos medos
são relíquias de outonos desenganos

Achar esse verso perdido

a bruma perdida no elmo das horas
até que ferva o seio sob o chambre
alçando na sombra da morte um parto de rosas

 

 

 

 

 

 

 

 

Urdidura

 

 

Com a rua deslocada dos meus traços
a paz não sabe o meu nome
o instante não veste quem sou

 

Mantenho correnteza e pele
na diáspora das horas —
esta brusca aridez de sombra
que repele o meio dia

 

No orvalho
Ardo a última esfinge
este último fio
apaziguado

nas cinzas da cidade do teu sexo

 

És o tálamo, a voz que se parte
ânima repetida de esquina tortuosa
Coisa desses lares esquecidos
onde todas as pastagens
vão parir o mesmo nada

 

 

 

 

 

Pássaro turvo

 

Uma face de clown te mira do escuro — sem
                                                           sorrir-te, porém
E caminhas com teus passos
E uma paisagem de lodo se desprende da
                                                       brasa dum poste

(cavalos de sombra amputados no tronco,
metamorfoses em mulas-de-fogo e medo infantil)

Povoado de escassos acenos,
o cérebro urgindo nos anfiteatros do tempo
as ilhas de fogo dos amores perdidos,
com o teu caminho num lance de dados,
o céu palafitado de nuvens em ira,
todos os teus desejos são bonecos vodu
                              espetados de estranhas carícias;
intermezzo de solidão compulsiva
                                          e caralhos turgescentes reduzidos a pó

Sobre o pavimento enlouquecido,
                                                     segues com teus passos de coragem

e acendes o teu Cigarro
                                        num gesto impreciso

Segues com teus passos de coragem
                              num gesto impreciso

 

É madrugada!
                   Tua fome de sentido fora enterrada junto a um

cadáver de filho

As adolescentes não rogam mais pela dureza em teu nome,
os pederastas fugiram dos banheiros públicos,

a coriza de tuas narinas noturnas
                                                    vence o roxo limite de teu sonho

E andas com teus passos trêmulos,
                                               num descompasso de ternura
                                             E tuas mãos tateantes mastigam
                                         folhas de absinto

Homem bêbado,
tua chaga é a luz de algum meu verso,
                             teus anseios eu conheço bem ou quase-nada,
         de ter cavado na madrugada, tanta vez, um corpo frio e
                                                                                      sem nome

Quantos conhaques apertados contra o peito,
quantos baques esfolaram-te os joelhos,
                               engendrando dores recebidas com sorriso

Há vestígio de cabeças esmagadas
                 habitando sob a dispéptica paisagem dos bueiros,
          engravatados que se molestam com canetas
                           enquanto noivas desafiam a gravidade,
                                                      há doentes mastigados em espera,
                             genitálias jorrando o pus dos moralistas,
                             papagaios enterrados nos quintais da obediência
enquanto a vida persiste em coroar a natureza
    
Mas tu, pássaro turvo, homem bêbado,
                                             com teu rim transplantado por engano,
                                com tuas tíbias e costelas fraturadas;
 tu, com teus passos de vexame,
                       pouco sabes disso tudo que há no mundo,
belo que tu és —
       com teu fígado poente e
cigarras ruidosas nas pálpebras do sono,

                                         por onde agita a caveira,
desvirginando a praça pública
           com teu mijo soberano:

nenhuma inocência
te pôs menor ou maior que o instante!

Assim como o circuito das pastagens luminosas
                           ocultado por estúpidos acenos esculpidos nas usinas,
                                                 e como epígrafes do ócio suicida
                                          que se atira das manchas de luz
                      dando vida a tudo que existe,                                       
                              imbuída nas horas secretas —
                                                e pelos carrosséis delirantes de neblina —
                                      a tua imagem alucina a mandrágora do tédio

                        Quantos conhaques apertados contra o peito
       Quantas vociferações entregues ao nada  
                                                                  
       Nessa miríade de olhos ausentes,
                                        sob o sumo sombrio de tuas feridas,
                            o sal corrosivo que emana dos ventos
                                           encontra tua hora mais pura.

 

 

 

 

 

 

São Paulo, 27 de janeiro de 2013


Nesta tarde, Flor, guardo-me convulso, broto das partículas sonoras desta cidade. Lentamente sou silêncio (me abro). E como quem leva os olhos ao velho retrato de família enquanto o conhaque possui as moscas de um sonho terminado — ou quando em fora tudo é nuvem na poeira de um cigarro —, trago em mim, e neste gesto, esta vontade alegre e baldia de deitar, cambaleante, este abismo de palavras.

Certamente não há o que ser dito. Mas conservo-me calmo, e olho para cada momento. Estou suspenso na superfície das coisas a que alimento com doses de minha memória sonâmbula, e quero te dizer palavras, nossa escrita emerge de mim antes do tempo e da chuva — paredes se quebram no interior dos meus olhos. Quero que entenda o que nem eu, as tardes passando como sempre passaram, a vida crescendo em espiral para dentro de cada poro, de cada bueiro, de cada silêncio, de cada agrura, cada cisma, de cada angustia, flor, de cada sonho nevoento. E isso que estou fazendo, e isso de te tragar para dentro de uma escrita. Isso que enfim estamos fazendo…

Não haverá outra tarde como esta, quando tudo o que temos é distância e silêncio, corredores acesos na dissonante maquinaria dos passos, luzes encharcadas deste escuro que é olhar o mundo quando já não temos mais esse torpor de sombra, esse fitar ausente de tudo que nos corrói na insondável vertigem de cada vivente. Eu querendo te trazer agora, te ocultando outra vez do sentido exato de tudo isso, de uma carta imóvel, de uma cerveja ou conhaque em que me perco ou refaço estilhaçado de tua ausência. Eu que tenho em mim todos os porres do mundo!, que busco recompor a tua imagem nesta lépida distância com que parto o teu espelho mais bonito. Eu que não tendo o que dizer comovo o silêncio soerguendo o teu nome quando perco o rastro no semblante da chuva. Quando a minha pele tinge o aço narcótico da paulicéia arrancada das nuvens em longos respingos de sorriso ideal. Diante dos meus olhos a tarde cresce, estende suas raízes por cada recanto da minh'alma, bondes ungidos de lembranças desenham uma bússola para fora do tempo, e logo tenho os teus olhos, teu jeito perdido neste lençol tão breve onde as estrelas sufocam sua última dança. Ah, flor, a vida segue, lá fora os astros se confundem com a garoa, a minha saudade uma ilha pairando sobre o céu de São Paulo… há pouco, éramos almas perdidas entre os olhares da cidade.

 

 

 

[imagens ©eikoh hosoe]

 

 

 

 

 

 

Caio Resende. Poeta e roteirista.