O Homem Amarelo

 

 

Eu ando num cenário de urina,

de tempo esmaecido como num filme épico,

de âmbar celofane, de acetato azedo e verniz.

 

Os pássaros que assobiam minhas manhãs

cantam por sobre as horas amolecidas e lentas,

por sobre os arvoredos antigos que farfalham,

por sobre as coisas do passado que carrego.

 

Na mão direita guardo a vida toda,

na esquerda, as lacunas e os suspiros.

Eu ando em amarelos e sem espetáculos

porque à minha volta tudo me parece antigo:

A realidade é um castelo velho

em que a aparência faz o instituído.

Já a essência do verdadeiramente belo,

está guardada num estojo aflito,

estagnada no fundo de um abismo,

inalcançável dentre muitos perigos.

 

Mesmo assim meu ópio é o amarelo

de uma verdade endurecida,

de uma vaidade iludida, de um sono anestésico.

Eu ando em amarelo, tangido pela trilha,

mugindo na paisagem,

acomodado em meu castelo velho.

 

 

 

 

 

 

Poética

 

 

Ao querer compreender as coisas miúdas,

eu me ponho a catar agulhas,

vasculhando o chão de Vasco da Gama

e minha armada, inflada de vento,

antes de partir, reveste-se de miçangas

na parte de dentro

para navegar triunfante para as costas

e trocar falsos diamantes por novas rotas.

 

Eu quero caminhos fáceis para alcançar a beleza

sem que os dedos ágeis na mesa

não escondam o ouro, nem a glória

de uma expedição vitoriosa.

Assim, abro a boca e navego vogal afora,

chamando a chuva criadeira de visgo,

para fabricar em minha porta

um outro mundo desconhecido.

 

E o esmero com o qual trabalho

este mundo verdadeiro e sagrado

é um ofício de joalheiro

na busca de um brilho encantado.

Só então, a realidade rasgada ao meio,

mostrará um pedaço de cena rara.

Aí, feliz, minha armada

resumirá este mundo num verso —

mas não é um mundo qualquer.

É o verso de um mundo em excesso

e em que a ordem requer

a novidade de um processo:

 

Fazer a decomposição do antigo

em novas reelaborações;

desmontar as partes do brinquedo velho

e fabricar novas conexões

em nostalgias cujas cosmogonias

descortinem o teatro cego.

Por isso, a novidade é sempre velha

numa ordem que versa

mas, nem por isso, a velha realidade

deixará de ser bela.

 

 

 

 

 

 

Meu Amor

 

 

A roupa do meu amor é industrial:

polietileno de esperança, plástico verde

embrulhando torres de flores e,

na manga, o valete de copas.

 

Faz o meu amor viagens de comércio

à Via-Láctea e depois, na volta,

imposta-se em seu escritório

revirando coragem e desfiando

polígonos de sentimentos inexplorados.

 

Ama o meu amor a caneta do minuto manco

alçando voo para dentro de outra visão.

 

O seu dia-a-dia é misterioso,

metros de gosto exposto onde há mudez,

cidades coloridas, cadeiras mancas de teorias.

 

Porque a imagem de rio é algo belo

formando uma televisão, meu amor canoeiro

é todo cinema, movimento e estrada

de caráter pulsante formando engenho e coração.

 

 

 

 

 

 

Esmeralda

 

 

Ah! Agora sim, arranjaste uma Esmeralda.

Mas, cuidado! Ela está se tornando uma segunda-feira.

É preciso mais colorido, mesmo que seja de vidro.

É preciso mais segredo, mesmo que seja de fingimento.

É preciso mais predicado, mesmo que tudo esteja aparente.

Tua Esmeralda não será troféu, não será escrava,

não será vitrine, não será inigualável em virtudes

pois em tudo há rutilâncias e ruídos,

em tudo há a elaboração vulcânica das forjas

que alimentam as horas. Há, acima de tudo, o processo,

a bem-aventurança que nos concede a liberdade do erro.

 

Anda com tua Esmeralda, mas não te iludas.

Para tudo há tempo de existir.

Para tudo, o tempo maturo concederá a vez do luto.

Então, tua Esmeralda terá sido deveras verde

apesar das falhas e frestas,

deveras valiosa, apesar das asperezas,

deveras Esmeralda, apesar dos amarelos.

 

 

 

 

 

 

Circo

 

 

A palavra se esconde

numa pele de pomada

(tê-la é imprescindível)

Sua pausa se confunde

com o silêncio

(ponte-pênsil para o nada).

Mas o nada é nada mais

que a própria palavra

encerada.

 

 

 

 

 

 

Março

 

 

Em março desaguou a mágoa

apertada no mormaço

e o canoeiro que leva o sal para longe —

lá para onde as andorinhas

e as estrelas imitam as abelhas

e todas as tristezas viram mel —,

ressurgiu do céu.

Agora, a vítima foi embora.

Emagreceu-se das cachoeiras

e das tempestades de engorda.

A vítima, que apesar da onda,

havia cravado o seu ferro de âncora

e se recusara a boiar com as flores,

livrou-se do gozo que chora

e foi embora.

Foi no vento chorar

as mágoas em outro canto,

bater no peito em lamento

e se rastejar amargando

feito melão-de-são-Caetano.

 

 

 

 

 

 

Estória de bairro

 

 

ponte, serpente:

céu da boca beijado

amor apressado

 

esteve ausente

o sargento fardado

do antigo sobrado

 

e aí, de repente,

ao chegar de viagem

à noite, cansado

 

tirou da sua frente

a densa folhagem

que havia plantado

 

sacou do revólver

fazendo uma poça

com um só disparo

 

matou a esposa

e também o amante

que estava deitado.

 

 

 

 

 

 

Maquiavélico

 

 

Ser distante a ofensas

numa paisagem

de azul amolecido.

Guardar desaforos

numa caixinha de fósforos e,

sem decoro, tornar-se

grão de trigo.

Entorpecer o tigre

ferocíssimo e,

em silêncio,

vigiar o vão onde

cabem rugidos

mas, acima de tudo,

não enfartar-se de raiva,

não entornar-se de mágoa,

não alvejar-se de tiros.

Eis o fino trato

para o cordial inimigo.

 

 

 

 

 

 

Oração ao Quebra-Queixo

 

 

Salva-me,

Oh, tabuleiro de quebra-queixo!

Como a bexiga se salva no mictório,

Como a bicicleta se salva na roda

Como o glóbulo se salva na esfera

Como eu me espero

E me salvo nesta espera.

 

Mas eu sei o caminho,

Eu sempre soube

A paisagem do caminho decorado.

O rio entrecortando de espelhos os bairros

Salvava-se na prata de seu maço em sol,

O açúcar da cana:

Na garapa de seu colmo,

O velho dos balaios: nos bambus macios,

O coqueiro das casas:

No domingo de ramos,

As chuvas da montanha:

Nas cores do arco-íris,

A bola de couro:

No jogo dos vizinhos,

A sede da escola:

No picolé de abacate,

O gosto de batom:

No primeiro beijo.

E a felicidade

Era tão grande por tão

Poucas razões

Que ela andava de ônibus

Cismando o tempo todo

Na paisagem da Rio-Bahia.

 

Depois vieram outras felicidades,

Tantas foram que se dividiram

Sinalizando várias ruas:

Um rio se arvorando pelo vale.

 

Hoje tenho muitos números

Mas meu nome de batismo

É José Bispo Ferreira Filho,

Descoberto em 22 de abril,

Uma quarta-feira estrelada de 1964,

E preciso ser salvo

 

Da ausência de janela,

Do perigo turvo,

Do asfalto liso,

Do sopro mudo,

Da ausência de mato,

Da pedra-escudo,

Do olhar em cisco,

Do sangue-suco,

Da ausência de Vera,

Do roxo em luto,

Do obtuso vidro,

Do amor escuro.

Porque vos digo a minha estória,

Meus amigos e inimigos,

E não escondo o que sinto

E, às vezes, me sinto

Soldado sem solda

Num barco sem âncora,

Relevo plasmado

De espanto e Gôngora,

Ponte sem grampo,

Graveto de escombro,

Xarope sem santo,

Noite de assombro,

Guerreiro inerme,

Isqueiro sem chama,

Lago profundo

Com fundo de lama.

 

Valei-me, tabuleiros de moleques,

Porque minha a força reside em inventar

O mundo com sabor de quebra-queixo

Que não quebra o queixo,

Que não quebra o dente,

Que não quebra a alma,

Que surte semente,

Que encoraja o homem,

Que move o seu barco,

No mar ou no rio sempre para frente.

 

 

 

 

 

 

O Passeio

 

 

Homem e cachorro passeiam

ao sabor do vento.

Passeiam encarnados e pulsando odores

que entram por suas narinas,

percorrem-lhes o corpo

e desatam-se ao final da tarde.

O vento é liso, a calçada é dura, a paisagem é curva.

Passam carros, outros homens, casas e figuras.

Longe está o que ficou para trás,

À frente um alvo, ponto-final em aguarrás.

Quantas horas são? Inexiste o tempo.

O espaço é espesso e de textura

aveludada como um pelo.

Os sons dos carros entram-lhes aos ouvidos.

O bronze retine e eles escutam-se

andando com passos firmes.

O homem olha o volume das coisas,

pensa e calcula. O cachorro late.

Ambos misturam seus corpos à tarde.

Há um fluxo que não se assusta porque não sente.

Há um impulso a cada passo à frente.

Os obstáculos formam o espetáculo.

Quantas horas são? Apenas uma brevidade

inundando a intercorporeidade.

Homem e cachorro transitam tranquilos

na tarde fugaz dissolvendo-se em aguarrás.

 

 

 

 

 

 

Pequena Roda

 

 

Amor por dentro,

Saudade que chora.

Campo e tempo em carta:

 

As lojas do rio em flor.

O motor da pedra

Girando a folhagem nobre.

 

Morreu um menino n'água.

Foi banhar-se depois da escola,

Foi reinar na água barrenta.

 

Noites longas. Soluço de mãe.

O menino sumiu num chupão.

Ao terceiro dia ressurgiu dos peixes.

 

Subiu ao céu num roxo balão

E, de uniforme azul e branco,

Pousou-se anjo nas mãos de Deus.

Cá na terra, os olhos dele viraram abóbora

no cemitério Santa Rita.

 

Trança rama, trança flor

rodeando cerca e se espraiando.

Na feira, procuram os olhos do menino o paladar

De outros meninos — em flor.

 

 

 

 

 

 

Lírica

 

 

Para Líria Porto

 

Ai, menina, recolho-me à tua janela

nas tardes de hemoglobina,

em noite chuviscosa,

na manhã da estrela d'alva.

Ai, poesia, tua madeira inventa

na beira do vento na eira das casas

um só movimento:

o passarinho macio voluteia,

a lua sussurra um segredo,

e tu, amiga, gotejas inteira.

 

Ai, mas que linda! Por um momento

hospedei-me em tua casa fiquei

impregnado de palavras.

 

Ai de mim! Elevei-me te observando de cima

e, da altura plausível, toda possibilidade

guardou-se unificada assim:

um poema feito palma de praia e da mão,

bacia de rio, corpo de estrela, tronco de árvore,

encontro de rodovia.

 

Então, amiga, cumprimento

o enigma volumoso em meu mar de lira

e deduzo: um poema é igual a um problema,

mas um problema bom que só ele.

 

 

[imagens ©david agenjo]

 
 
 
 
 
 
 
Bispo Filho nasceu em Governador Valadares/MG, no dia 22 de abril de 1964, no Hospital São Lucas, pouco menos de um mês após a não-revolução. Cresceu numa casa de músicos e professoras e começou a escrever poemas e compor canções ainda menino. Como compositor, venceu vários festivais de música por todo o Brasil. Publicou seu primeiro livro aos 17 anos (Colosso Ciclone, com Roberto Lima) e Povoado (São Paulo: Scortecci, 2006). Viveu durante quase uma década nos Estados Unidos, onde trabalhou como jornalista e educador. Foi professor de Matemática e Biologia no Framingham High School, em Massachusetts e, atualmente, leciona Filosofia e Semiótica na Universidade do Vale do Rio Doce. Em Governador Valadares, viveu sempre do outro lado do rio. Mais em Fumegação e Tertúlia Pão de Queijo.