sem título | elisa bracher | escultura | madeira | 612x160x89 cm
instalação no estacionamento do parque villa-lobos | são paulo  | brasil | 1998

 

 
 
 
 
 


 

A crônica  

 

In memoriam de Evelyn e Jorge, meus pais

 

 

— Rosa, hoje vou sair mais cedo. Meu velho não está nada bem, a pressão subiu de novo.

Dona Ana, casada há quase cinquenta anos com Seu Suarez, não disfarça a preocupação com o parceiro, eterno companheiro.

Meu convívio com esse casal é quase diário. Prestam serviços no colégio em que trabalho.

Seu Suarez aparece sempre no final da tarde, com uns sonhos fresquinhos, paixão de dona Ana:

— Cadê minha patroa? Fiquei esperando sair. Estão no ponto — ele fala para nós, com um brilho bonito no olhar, vendo-a de longe... Perto.

Fico apreciando esse relacionamento e imaginando o curso da vida deles. São pessoas deliciosamente simples, que não têm vergonha de demonstrar felicidade. Quando vão se apresentar para terceiros, falam com orgulho:

— Meu esposo.

— Minha senhora.

Ela traz vestígios de uma grande beleza na juventude. Ainda vaidosa, usa ruge e um batonzinho leve na boca. Os eternos brinquinhos de pequenas pérolas nas orelhas, certamente já nasceram nelas. É sabido que foi cerzideira de mão cheia, antes de a lycra dominar o mercado têxtil.

Ele, sempre com uma camisa limpíssima, cheirando a talco de neném, faz questão de pentear com capricho os ralos cabelos brancos. Traz sempre um pente no bolso da camisa e um lenço no bolso da calça. O lenço? Pronto para forrar a cadeira em que sua patroa vai sentar. Nesse casal, o amor é ostensivo, sem machismo, sem farsas, sem ar teatral, sem coxias.

Queria ter vivido um amor assim, em que se percebe que todas as etapas da vida foram superadas com dignidade. Ter "o meu velho" para controlar o sal da comida dele e a certeza do seu controle sobre o meu açúcar. Saber que existiria um lenço estendido para eu me sentar ou para enxugar minhas lágrimas. Assistir TV ao final de cada dia, com uma camisola de algodão perfumada em alfazema, ao ladinho dele com seu pijama xadrez, e meias de lã para aquecer nossos pés.

Perceber que nossos netos não falariam de sexo na nossa frente, pois sequer imaginariam que já tínhamos confundido tanto as "nossas pernas nas noites eternas". Ficar com meu velho ao sol, passar férias em estações de água, fazer seu prato predileto, receber em troca seu sorriso aberto.

Juntos, nosso adeus ao vigor, chorar e sorrir por amigos que foram morar no arco-íris, mas sempre com nossas mãos enrugadas, unidas! Só pediria a Deus uma coisa: que o levasse primeiro, para poupá-lo da dor da perda desse amor. Depois da partida de meu velho, meu coração se encarregaria de levar-me. É certo que iria reencontrá-lo. Brevemente.

 

(2004)

 

 

 

Razão

 

Escrever é o melhor método de descobrir-me. É minha psicanálise, minha tarja preta, melhor... Azul! Quando minha mãe faleceu minha voz se esvaneceu. O alfabeto foi o meu porta-voz. Sempre rascunhei sentimentos em pedaços de papel. Anotar é a sonda que perfura minha alma, o lugar que procuro para me ajustar ao tempo. As letras fazem parte da minha epiderme. Um poema, uma prosa, uma crônica é o que mais se aproxima de minha tradução humana. Essa crônica (escrita no ano da partida de mamãe) é a voz muda que grita a minha imensa admiração e amor por meus pais. Foi publicada em meu primeiro livro (PreTextos).

 

 

abril, 2013
 
 
 

Rosa Pena (Rio de Janeiro/RJ). Escritora, professora especialista em recursos audiovisuais e artes cênicas, administradora de empresas. Trabalhou na Divisão de Multimeios da Educação, da Secretaria de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, com projetos ligados a cinema, teatro, música e literatura. Compulsiva para ler e escrever, considera a Internet a grande biblioteca contemporânea. Possui diversos e-books, participou de oito antologias de grupos e do Livro da Tribo. Publicou PreTextos, onde reúne mais de cem crônicas de sua autoria (All Print, 2004); Ui!, de contos e prosas poéticas (Bagatelas, 2007) e Tarja Branca, de crônicas, contos e poemas (All Print, 2010). Seu site: www.rosapena.com.

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