CICATRIZ
 
Uma ferida fala
o doloroso e lento
idioma das esperas.

Na noite azul de oferendas
o corte no sorriso
cansado de só...

A solidão é uma cicatriz
que anda pelo corpo.
 
 
 
 
 
 
TEMPO DESCARRILHADO

 

Ao poeta Mário Gomes

 

Esses olhos que a terra não deseja

hão de comer a vastidão da terra

plantar no solo o sêmen de seus rastros

cravar na pedra o seu punhal de febre,

sonho pleno de pedra.

As algemas de sangue, solidão e medo;

o luminoso terror noturno...

Há tragédia em cada ato

no tempo descarrilhado

e um gosto de eternidade.

 

 

 

 

 

 

ASAS PERDIDAS

 

De onde vem esse conluio de pássaros?

Volúpia de vozes se arrastando em transe

a febre em delirium tremens

salão sem chão da loucura;

rumor que escorre entre as dobras,

fendas de ventos e búzios;

os espaços devorados pelos incêndios do verbo

que encurta os passos da culpa;

o medo que nunca adestra sua matilha de gritos

vociferando latidos às escâncaras da noite...

Para onde vão essas asas?

 

 

 

 

 

 

MÚSICA

 

A pele é chão onde o desejo

evola-se canção...

Piano é pássaro em repouso.

 

 

 

 

 

INVENTÁRIO

 

O brasão está posto nas cãs da matriarca.

As chaves da terra

penduradas no peso dos anos

lhe enferrujam a voz.

 

Sete línguas mastigam as léguas do tempo

sete reses ruminam as vozes dos mortos.

 

E meu filho dorme, alheio a tudo isso.

Inocente ainda e derradeiro herdeiro

apenas deseja palmilhar um sonho

nas léguas do seu chão

de berço.

 

 

 

 

 

 

SOMBRA DE SAL E SILÊNCIO

 

Não dizer palavra...

Deixar o silêncio plantar sua nódoa

na cinza dos olhos.

E uma sombra há de vir,

insustentável,

e despojada de dor e remorso e cansaço

trará numa das mãos linho novo,

alfazema;

na outra, conchas de praia deserta,

frutos da estação,

e ainda sem dizer palavra

acenderá os cílios com o sal das águas

de uma outra concha,

essa mão que rasgará silêncios,

tatuando na pele uma palavra gasta.

 

 

 

 

 

 

ABANDONO

 
Os pássaros migram de uma mão à outra
e repousam no arbusto do peito.
Sob as raízes,
de braços abertos,
um homem enterra seus mortos.
 
 
 
 
 
 
MEA CULPA ou Profissão de fé

 

Ao poeta Francisco Carvalho

 

Semear poeiras e andrajos de esperas

dissecar os ossos das metáforas

acender espantalhos no amarelo das espigas.

 

Decantar o silêncio que sustenta o cais

ostentar um colar de metonímias

despir a voz da louca, cuja febre anuncia

um evangelho apócrifo.

 

Caminhar sob pedras como por milagre

ouvir a foz rouca dos rios da infância

borrifar no azul as flores do arco-íris.

 

Pintar um verão vazio de andorinhas

se encharcar de sol e devaneios

hastear um lenço sujo de saudade

ajustar os ponteiros na cópula dos pardais.

 

 

 

 

 

 

PERDÃO

 

Era de sol seu abraço.

Colo de nuvens

onde a dor serena.

 

 
 
 

POEMA-FOGO PARA HERBERTO HELDER

 

Impossível ver seu rosto de homem

pentecostes na voz em meio à sarça ardente

seiva bruta na saliva que irriga lavouras

de poemas e ostras e algas

do mar da Madeira. Ilha de mistérios

onda a levedar no pão de cada lua

ofício cantante em harpa de ouro e trigo

louros ressequidos pelo sol selvagem

de seu autoexílio.

 

Impossível ver seu rosto em bronze

diamante polido pela mão de um anjo

a gritar: – Ó zona de baixeza humana!

Mítico maldito em estado selvagem

o olhar varado pela flecha de prata

do menino-bardo;

cordão umbilical atado a tudo

que o tempo lavrou em vil caligrafia:

fogueira e monturo no buço da noite

cabelos de plantas descendo os adobes

ressaibos de dores nos poros do amor

explosão do átimo de Deus

lavas de dragão incinerando a pátina

vulcão regurgitando a própria entranha

escarrando pro céu o cuspe de sua alma.

 

Impossível não ler Herberto em chamas

 

 

 

 

 

 

TECIDO DE ESPERAS

 

O olhar colhe asperezas...

Nenhuma alma de regresso às mãos

cansadas de tecer esperas;

nenhuma nau singra a saudade

e a tessitura é desfeita

pela ausência de abraços.

 

 

 

 

 

 

POEMINHA COLHIDO DE UM SONHO DE ADÉLIA

 

O sono me acorda para dentro

onde os gerânios florescem

acendendo as manhãs

nos olhos da menina de vestido florido

e flores no sorriso.

 

O teu cabelo limpo, Adélia,

refletia vermelhos

mas um vermelho assim, possível apenas

nas veias de um poema

e nos sonhos em chamas.

 

Eu sangrei uma cor, Adélia;

eu sonhei.

 

 

 

[imagens ©margarita georgiadis]

 

 
 
Wender Montenegro (Trairi/CE, 1980). Poeta e professor de História. Em 2008, publicou seu primeiro livro de poemas, Arestas, pela All Print Editora/SP, com o qual foi indicado ao Codex de Ouro 2011, na categoria poesia. Tem a publicar, ainda em 2012, os inéditos Livro-arbítrio, pela Rubra Cartoneira Editorial, e Casca de nós, ainda sem editora definida. Tem poemas publicados em algumas revistas e espaços literários como TriploV (Portugal), Macondo, Blecaute, dEsEnrEdoS, Diversos Afins, Portal Interpoética e Sobrecapa Literal, e é um dos integrantes da Poemantologia dos novíssimos da literatura brasileira, numa coedição Cronópios/Arraia PajéurBR, a ser lançada em 2012. Bloga em wendermontenegro.wordpress.com e poesiawm.arteblog.com.br.