DESTINO DE PABLO

 

A noite chamara a graça da amizade sobre Pablo

que se sentia um santo menor

para o pecado que escorria de suas veias.

Tinha aprendido rezas da sina

nas manhãs rastreadas de relâmpagos

entoadas pelas carpideiras da seca

do chão deixado desde a infância.

 

Não poderia fugir ao chamado da graça

— castigo venal derrubando o destino.

 

Pablo se desfez do paletó de nuvem

carregado de música e retalhos de terra

símbolo de sua missão no mundo

— peregrino do canto rouco das serras.

Vestiu-se de algodão e prata

ornou a fronte com a tiara ruiva das caatingas

pendurou nos dedos sua mais nova composição

e afiou a viola de sete cordas sobre a amada.

 

 

 

 

 

 

DAMA DE CASCALHO

 

Quando a madrugada sonhava ela acordava

pintava o rosto com melões-de-são-caetano

cruzava os dedos e pedia à senhora das dores

que a livrasse da maldição do papa-mel.

Borrego enjeitado pelos terreiros

enchia-se de requebros e sorria abusada

para assustar os netos da fazenda em férias.

 

Aprendemos a amar madalena no tacho de queijo-quente

e quando o medo de suas caretas passou

já tinha deixado a mata e o cheiro de coentro

existia apenas nas hortas da lembrança.

Para encontrar as léguas de seus terreiros

mergulhava o sonho nas águas engarrafadas

das mercearias de cada esquina da cidade-prisão

sentindo-se a mais bela messalina da diocese.

 

Madalena esqueceu filhos e o marido de olhos azuis

e nas arruaças eternas escutava só a minha voz

e eu me encantava na sua história.

Numa manhã vadia vestiu-se de branco-luz

pintou mais forte os olhos e braços de mel

e foi plantar seu corpo no vermelho das estradas

onde damas-da-noite cobrem de perfume

as serras guardiãs do chão de cascalho.

 

 

 

 

 

 

ELEGIA

 

A deusa negra amansava os grãos de café

com a mão de pilão em seu destino

e desfiava nos dedos trovas da memória.

Poucos paravam para escutar seu lamento

e muitos queriam o encanto do seu dorso escravo.

Nos retalhos da saia rodada mostrava

recantos pisados pelos parentes do eito

e enxugava os olhos de banzo.

 

Serviu de repasto à linhagem dos coronéis

que ciscavam sua cama de gravetos verdes

e levavam nas esporas estrelas do gozo negro.

As iaiás e senhorinhas a repreendiam

por amarrar as tranças com fitas de tafetá

e colorir o rosto-brejeiro nas penteadeiras

dos quartos de camas largas e baús de couro

santuários e botijas escondidas em tijolos falsos.

 

Restam hoje manchas dos seus chinelos de rabicho

tatuadas como tisna na cozinha de fogo-de-lenha

que ainda queima manso o estribilho do seu canto.

E nos olhos de quem a viu ficou um ponto de luz

(argueiro negro). Negro lamento do seu corpo

como grãos amansados pelas suas mãos

— as mãos de fé da deusa alexandrina.

 

 

 

 

 

 

A LOUCA

 

Portões abriu

desafiando o lacre das ogivas

que ornavam a ruína dos casarões.

E em seu banho de fogo

da estrada afivelou o vento

no cano das botas curtas

estendendo seus tremores

às janelas dos prostíbulos.

 

Desfila hoje

como um rio sem batismo

desviando-se dos antepassados

a recriar castelos que encontrou.

Possui a ausência dos véus

velando sua noite sem fim

e parece mais mesa sempre posta

nas infinitas ruas sem casa.

 

 

 

 

 

 

A FAZENDA SEM CHICA

 

Telhas vãs feito conta-gotas

deixavam vazar a neblina da manhã

que abanava bicheiras do sonho.

Sobre o arrozal o dia

abocanhava sardas da holandesa

amante do zebu cobiçado dos currais.

Chica vestida de chita graúda

acendia o barro da chaleira

com o fogo do sono nas mãos

e abria o sorriso nos juás das serras.

 

 

 

 

 

 

LITURGIA DAS TEMPESTADES

 

Aprendi a caminhar no semicírculo do amor

pintar favos de luz nos seus eclipses

ser deus com a sabedoria carnal do homem

porque o homem é deus quando sobe ao ringue.

 

Aprendi a rasgar os linhos à luz-mormaço

porque o dia queima a carne exposta.

Não mais que isto — que é dor dobrada

e atirada nas curvas da manhã seguinte.

 

Aprendi a fazer dos olhos marcador do tempo

acusando ensaios e saídas de cada gesto.

Espalhar no vento terminal sementes parcas

à liturgia do gozo necessárias.

 

Sou no espaço destes versos um deus febril

atravessando amantes com as tempestades

que se contorcem nas vigas dos meus braços.

 

 

 
 
 

AO AMOR QUE FINDA

 

Lembro dos cachos anelando as tardes

do riso antecipando verde nos outeiros

da menina lúdica acordando paqueviras.

Vejo-a agora escrevendo versos sem viço

negando visto nas canções de outrora

querendo abrir clareiras em manhãs desertas.

 

Se pudesse lhe daria minha dor vivida

(dor de amor que já partiu em junho)

para não perder a fé que desabrocha

espalhando óleos no seu rosto ensombrado.

O amor que finda nos definha em mágoa

para explodir petúnias na paixão que chega.

 

 

 

 

 

 

O QUE RESTA

 

Não possuímos o xadrez das auroras

nem o colírio da purpurina cósmica

possuímos veredas sem acostamento

o medo dos lançadores sem casta

e queimaduras em nossas mãos de aço.

 

Nos restam os tesouros das histórias

ioiôs encantando o vento nas cores

cegonhas parideiras de bebês-irmãos

e canoas acordando os arrozais

que ainda gemem sem perder o verde.

 

 

 

 

 

 

SORTILÉGIO DA MADRUGADA

 

Recuso a poeira dos jasmins-laranja

que o fogo da memória teima em trazer

porque meu tempo é de fascínio e vida.

 

Quero soltar demônios cavalgando o brilho

das mágoas silenciosas de sábado.

Falae de amor que parece banal

para os que buscam um saber de cinzas.

 

Quero a volúpia que mãos congestionadas gritam

deixar os seios deitados em toalhas secas

à espera do riomel na procura de asilo.

 

Marcar na voz um sol grave e um mi bemol

os dedos afiados como violas em dia cheio

de papagaios soltos nas ribanceiras de agosto.

 

As pernas semiacordadas para acordar talvez

quando o sortilégio da madrugada passar

os olhos relampejando como cascavel em cio

pronta para o golpe que agoniza.

 

Meu tempo é de fascínio e vida.

 

 

[Do livro Litorgia ou: Poemas com rimas vermelhas.

João Pessoa: Editora União, 1987]

 

 

 

 

 

 

RESPEITO AOS QUE VOLTAM

 

Voltar,

quando o portão é rosto amigo

as avencas um tempo que cresceu

ou quando mangas já fizeram

visgo na rosa que ficou.

 

Voltar,

sempre poder voltar,

por mais que esta distância

seja um sol de muitas léguas

ou alfinetes que brotaram.

 

Voltar,

voltar e nunca mais ter medo

da velhice encostada nos birôs

ou que as saídas de vidro hoje

sejam grades quase foscas.

 

Voltar,

presa apenas no mormaço

das árvores desfeitas em leque

e desentulhar as prateleiras

com o brilho que se trouxe.

 

 

 

 

 

 

ÀS MENINAS DE RUA

 

De vocês,

roubei a alma exposta às chuvas,

não porque o granizo

perfurasse minha casa e telhados,

mas por imitar espantalhos,

afugentando canários nas sobre manhãs.

 

Tudo isso foi pouco

para enrijecer minha face de palácio,

assim lhes trago nesses versos

o azul do meu vestido de fustão,

pastéis de todos os Natais,

os carrocéis e seus cavalos brancos

 

Tudo isso foi pouco

para enrijecer minha face de palácio

assim lhes trago o filho que perdi

e os braços de niná-lo

o hímem adolescente

e a verdade aprendida com as fadas.

 

 

[Poemas inéditos] 

 

(imagens ©alfarman)
 

Vernaide Wanderley. Escritora, sertaneja da cidade de Patos/PB, vive em Recife desde meados da década de 1960. Formou-se em Biologia, pela Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE). Tem Mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Doutorado em Geografia (com aporte na Literatura), pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro/SP. Foi integrante do grupo de base das Edições Pirata, Recife/PE. Atuou na União dos Escritores de Pernambuco/Secção PE desde sua reabertura, em 1985, fazendo parte de sua diretoria por três anos consecutivos. Publicou seu primeiro livro em 1981 e tem participação em várias antologias brasileiras e estrangeiras. Principais obras em livro: Tatuagem (poesia, Edições Pirata, 1981); Litorgia ou: poemas com rimas vermelhas (poesia, João Pessoa: Editora União, 1987 | Prêmio Othon Bezerra de Melo/1985, da Academia Pernambucana de Letras/PE e Prêmio Guararapes/1986, da União Brasileira de Escritores/RJ); Duas histórias de guia (literatura infantil, Companhia Editora de Pernambuco/CEPE, 1.ed., 1990 e Edições Bagaço, 2.ed., 1982 | Prêmio Luis Jardim de Literatura Infantil/1990 - FUNDARPE/PE); Rota dos inocentes (conto-poema, Fundação de Cultura da cidade do Recife/CEPE, 1992); As raízes que invadiram a casa (romance | Menção Honrosa do Prêmio Lucilo Varejão, 1995, Cidade do Recife - Secretaria de Educação e Cultura do Recife, publicado em 2012); Viagem ao sertão brasileiro — leitura geo-sócio-antropológica de Ariano Suassuna, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa (ensaio, em coautoria, CEPE/FINDARPE - Governo do Estado de Pernambuco, 1997 | Menção Honrosa do Prêmio Casa Grande e Senzala/1998 - FUNDAJ).