A doença do mundo

 

 

Úrsula mudou repentinamente. Pintou as frases pessimistas da parede do quarto. Emudeceu a voz de Carlos Gardel. Cancelou as compras semanais das caixas de copos. Até a vassoura de nossa casa deixou de varrer os cacos de vidro. No início fiquei feliz, embora julgasse elegante sua terapia: cantar o tango cambalache e quebrar copos de vidro contra a parede. Tudo isso para amenizar o inimaginável sofrimento de suas extintas crises. 

Ela sofria de desânimo. Dizia ser a doença do Mundo. Para o psicanalista era neurose depressiva. Ele utilizou uma abordagem incomum para fazer o diagnóstico. Analisou o nosso quarto, o qual na parede frontal da cama onde era o antigo alvo dos copos, liam-se duas inscrições de Úrsula. As frases resumiam seu sentimento e crença sobre a humanidade:

 

O Homem é uma máquina de sinistros.

Quem dentro do vazio dessa esponja azul criadora de lírios patéticos não sentiria uma puta saudade do nada?

 

Passaram-se anos para desaparecer o desânimo. Por causa da beleza, eu havia me acostumado facilmente a vê-la com o tango e os copos. E a esperança cansada desistira de nos visitar. Até que um dia subitamente Úrsula virou ânimo. Achei estranho. Mas, mesmo assim, conservei a ideia da causa ter sido a psicanálise.

Para celebrarmos, fomos ao bar. Tudo era motivo para frequentá-lo. Alegrias e tristezas. Ao sentarmos à mesa, lembrei-me do nosso primeiro encontro. Eu havia suspirado minha alma num só fôlego quando me aproximei dela:

— Com licença senhorita, qual o seu diretor de cinema favorito?

— Stanley Kubrick — ela respondeu estampando sutilmente um sorriso.

— Que ironia! Só falta o seu filme predileto ser o que dá nome ao bar — eu disse elegantemente.

— É... gosto da ultraviolência — ela respondeu dessa vez com um sorriso malicioso e irônico.

— Posso lhe pagar um leite? — perguntei ansioso.

— Não bebo leite... Mas aceito um chá.

— Como pode não beber leite? Se seu filme preferido é... — ela interrompeu-me com um rubor taciturno e disse:

— Tenho intolerância à lactose. — após um silêncio desajeitado fizemos o pedido: um chá de cidreira e um leite.

Apesar de estranha foi uma noite memorável.

O bar Laranja Mecânica serve leite e chás variados aos clientes. Alguns ficam embriagados ouvindo tango com samba. Outros jogando xadrez e go enquanto discutem literatura, filosofia e cinema. Pedimos do garçom o de sempre: um copo de leite e um chá de cidreira. Úrsula nunca se consolou de não poder beber leite. Não podia tomar nem o sem lactose. Apesar dos pesares procurava substituí-lo com os chás. Conversamos com ânimo. Porém estranhamente ela suava frio toda vez que fitava com olhos fugidios o meu copo. Nunca, em todos os anos, havia visto aquela expressão em seu rosto. Era natural ela me ver tomando leite. Seja em casa ou no bar. Parecia uma espécie de abstinência. Como a noite estava ótima preferi não perguntar nada sobre sua agonia. Saímos do bar cambaleando alegrias fortuitas.

Com o fim do desânimo, Úrsula mudou também sua rotina. Começou a frequentar uma clínica médica particular duas vezes por semana. Voltava sempre com uma sacola térmica grande e colocava algo para gelar no frigobar-cofre que acabara de comprar para o quarto. Comecei a ficar curioso, mas respeitei sua privacidade. Hoje me deparei com uma situação insólita na refeição matinal. Úrsula animada saboreava um líquido branco semelhante ao leite. O que seria? Sentei-me à mesa sem falar nada. Olhei-a desconfiado. Então ela falou com ternura:

— Bom dia, amor! Vou colocar seu leite para esquentar.

— Bom dia, meu bem — tentei responder com naturalidade.

— Como vão as coisas? Tudo bem?  — perguntei esperando uma novidade.

— Sim, não poderia estar melhor! — ela respondeu com brilhos nos olhos. Depois de beber mais um gole do líquido esbranquiçado. Sem comentar nada sobre ele. O café da manhã correu com aparente tranquilidade.

O líquido virou sua bebida principal. Bebia todo dia. Ela tomava-o naturalmente como se fosse leite. Sempre animada. Passou até a levar sua garrafa térmica para o bar. Não tomava mais chá. Por algum motivo não me informou que bebida era aquela. Também não quis perguntar, pois havia ficado evidente sua responsabilidade pela cura da doença do mundo de Úrsula. Para que saber o conteúdo de uma alegria? São sempre fúteis. O que importa é a indispensabilidade de sua forma. Além do mais, pela frequência na clínica, talvez a medicina tivesse encontrado a cura da intolerância a lactose e o líquido fosse leite mesmo. Ou então os especialistas haviam fabricado um laticínio especial.

Assistimos pela décima vez ao filme preferido dela. Lógico, bebendo leite. Úrsula com o dela, eu com o meu. No final tiramos par ou ímpar e eu perdi. Ela foi para o quarto dormir. O perdedor ficou com a missão de arrumar tudo e lavar a louça. Aceitei com resignação. Nada pagava ter visto a felicidade dela ao assistir Laranja Mecânica tomando leite. Um acontecimento surreal. Comecei pela cozinha. Lavei toda a louça. Depois fui para a sala. Catei as pipocas do chão. Arrumei as almofadas do sofá. Voltei à cozinha. Quando fui recolher o lixo, encontrei o rótulo da garrafa de leite da Úrsula. Fixei os olhos nele. Apesar de não estar mais tão curioso. Mesmo assim quis confirmar minha hipótese. Ele estava meio amassado, mas de imediato consegui ler as letras em maiúsculas: CLÍNICA OSWALDO CRUZ. Minha suspeita parecia se confirmar. Peguei o rótulo e comecei a desamassá-lo para continuar a ler as miudezas: CLÍNICA OSWALDO CRUZ / Banco de sêmen / 300 ml. Subitamente levantei-me assustado e pus a ler novamente: CLÍNICA OSWALDO CRUZ / Banco de sêmen / 300 ml. Não acreditei. Porra o leite dela era sêmen! Fiquei rodando pela cozinha meia hora. Caralho, Úrsula bebia sêmen! Fui atordoado para o quarto. Ela estava dormindo. Que merda! Úrsula bebia sêmen! Como poderia? Não dava para acreditar. Senti náusea e nojo. Fui ao banheiro. Comecei a escovar os dentes com um apreço incomum. O branco do creme dental me enjoou. Meu estômago se embrulhou todo. Cuspi o creme e vomitei. Úrsula bebia sêmen! Tomei um banho rápido tentando compreender aquilo. Fui para cama. Deitei o máximo afastado dela. Não conseguia dormir. Porra, Úrsula bebia sêmen!  Repetia-se incessantemente na minha cabeça. Até que o cansaço me dominou e dormi.

Passaram-se vários dias. Não comentei nada. Fui ficando taciturno. Conforme o tempo corria, eu lembrava cada vez mais as antigas frases de Úrsula no quarto. Não tinha vontade de fazer nada. Talvez tenha contraído a doença do mundo. (Às vezes acredito sermos todos nós acometidos por ela. Porém alguns possuem a capacidade de incubação) Até que um dia acordei cedo e antes de Úrsula. Fui imediatamente em direção à cozinha. Senti uma estranheza no meu corpo. Certo desequilíbrio. Abri a geladeira. Procurei logo a caixa de leite. Foi reconfortante a encontrar no seu lugar. No entanto, após colocá-lo no copo, senti um profundo esvaecimento. Pensei em desistir. Mas quando olhei para o reflexo do sol na nossa sede, soube de alguma maneira que aquele desânimo um dia cessaria com uma nova ilusão.

 

 

 

 

 

 

O tabelião dela

 

 

Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: fulano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino. E novamente, Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: Sicrano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino...

Há vinte anos sempre a mesma rotina. Todo dia após o expediente da repartição eu chego em casa, leio o jornal e coloco Mahler no toca-discos. De certa forma, recuso a modernidade. Estou quase sempre com uma alegria típica. Por vezes, também bebo alguns copos de uísque escocês para tragar infortúnios de cunhos práticos ou metafísicos. Nesses dias, sempre coloco o adágio da sinfonia número dez para acompanhar a melancolia. Porém, naturalmente, a teimosia do dia resiste e de novo ele nasce. Nas manhãs, dois momentos são primorosos para mim: encontrar o café no armário e depois tomá-lo. Assim preparo-me para ir ao cartório enfrentar o turbilhão. Talvez daí surja a fé que eu deposito diariamente em nome do Estado.

Demorei alguns anos para conseguir quitar meu imóvel. Foi necessário milhares de carimbadas e fés. Possuo também um automóvel. Ambos de minha exclusiva propriedade. Alguns familiares, que me visitam esporadicamente, gostam bastante deles. Sempre elogiam a decoração da casa ou a limpeza e destreza do carro.  Às vezes eu apresso o tempo da visita com a intenção de ficar sozinho. Certamente algumas pessoas me aborrecem. Só as aguento (ou as acho interessantes) quando fico ébrio. Por isso as garrafas sempre disponíveis. A bebida tem a capacidade de poetizar tudo. Mesmo que no outro dia ela dissolva em ressaca.

Sozinho, sigo o regulamento de minhas próprias ordens. Nos finais de semana não possuo tanta regularidade. Aprecio por vezes uma ópera no teatro, um filme do Scorsese, um bordel ou um passeio banal no parque. De certo, sempre vou à igreja aos domingos. Adoro a arquitetura sacra, nunca vi coisa mais bela. A perfeição seria ouvir Mahler na capela sistina bebendo um uísque escocês vinte e um anos com uma freira profana ao lado. No entanto, fico satisfeito com as belezas ais quais tenho acesso.

Mais um dia,

Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: fulano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino. E novamente, Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: Sicrano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino...

E mais um dia, (...) outro dia (...) e outro (...) até que chega hoje.

Chegando em casa, fico sabendo dos acontecimentos do Brasil e do mundo. A sinfonia toca. A crise econômica aprofunda-se. Plano de cortes. Austeridade. Leio notícias dos novos filmes. Tarantino. Lynch. Busco o leite depois o café. Mexo o branco com o preto. Espirais infinitas formam-se na minha xícara. Lembro-me da sequência de Fibonacci. Conhecimentos matemáticos adquiridos nos tempos vagos. E olhando para aquele abismo sinto abruptamente uma inércia. Tento com força pegar o café, mas não consigo. Minha mão não se mexia. Não acredito e tento novamente. Nada. Será que ela se foi? Acho que estou perdendo-a. Não a mão, mas ela. Dizem que dia ou outro vai embora. Sem avisar ninguém. Precisava de ajuda. Levantei-me com esforço. Fui ao telefone tentar ligar para Clara. Mesmo sem o movimento do braço direito, consigo com o esquerdo, ainda que pesado, fazer pequenos movimentos e em fim falar com ela. Clara era minha acompanhante preferida do bordel. Uma espécie de amiga incondicional.  Quando chegou, eu já estava completamente sem movimentos nos dois braços. Para ela entrar, tive que empurrar a chave com o pé para debaixo da porta. De imediato ela abraçou-me e perguntou:

Ela se foi? Não acredito Adolfo. Como ela pode te abandonar? Logo tu?

— E ela tem algum critério de escolha Clara?

— Não sei. Mas certamente tu não te encaixas em nenhum perfil dela.

Clara abaixou a cabeça como forma de reprovação. Levantou e foi até o armário onde eu guardo os uísques. Profeticamente trouxe uma dose no copo e colocou na minha boca:

— Toma Adolfo. Beba em um trago só. Ela pode ter ido embora, mas ainda te resta a bebida.

Mahler ainda estava tocando. Só percebi porque Clara foi até o som aumentar o volume. Chamei-a para vir morar comigo. Não conseguiria viver sozinho sem os movimentos do braço e sem ela.

No outro dia não consegui mais carimbar e assinar o: Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: fulano. Tabelião de Ofícios. Pois tinha perdido ela. Fui demitido do cartório. Voltei para casa. Pedi para Clara colocar o adágio da décima de Mahler. Depois Bach.  Eu sentia que ela não havia ido embora completamente. Tentei distrair-me com o jornal. E novamente as mesmas notícias: Crise econômica; Demissões; Greves; Filmes; Peças etc.

Deixei de sair de casa. Nem à igreja fui mais. Meu dinheiro estava acabando. Sentia que ela ainda fazia-se presente, mas também se esvaía. Tive que vender o carro e hipotecar a casa. Da onde surgia ela para sustentar a mim e a todos daquela forma? E sem aviso prévio deixar-nos? Com o tempo deixei até de ouvir música e tomar tragos. Ficava o dia todo imóvel na frente da televisão que Clara havia trazido para mim na esperança de ela retornar. Mas parece que piorava.

Hoje senti que sua última gota caminhava dentro de mim querendo sair por algum orifício. Passei a manhã inteira com contrações involuntárias pelo corpo. Até que de repente senti uma enorme dor na bexiga. Era ela. Seu último vestígio. Tinha certeza. Pedi a Clara que pegasse um vasilhame. Fomos ao banheiro. Estávamos ansiosos. Com muita dor consigo urinar a gota dela que faltava. Uma única gota. Cristalina. Voltamos para a sala e sentamos no sofá. A televisão noticiava uma greve geral. Ficamos olhando a gota no vasilhame transparente. Eu tinha certeza, agora ela havia ido embora de vez. Praticamente desfalecido, olhando o resto dela e a televisão, digo minhas últimas palavras à Clara:

— Sabe o que no fundo reivindicam nessa greve geral?

— Não. O quê?

Ela, mas uma outra!

 

 

 

 

 

 

O estouro da artéria de um cavalo húngaro

 

 

Balões dançavam tontos sob a longa lona azul e amarela. Narizes vermelhos provocavam risos. O cheiro forte de margarina misturava-se com o odor do calor. Os milhos pulavam angustiados na pipoqueira. Uma menina patética dizia ao namorado que trocaria seu saco de pipocas por ele. O desengonçado sorria e pedia-me um saco das doces. Não aguentei toda aquela insuportável alegria.

— Parei de trabalhar por hoje — respondi guardando os sacos e fechando a pipoqueira.

— Como?! Se acabou de abrir? — o garoto pergunta assustado.

— Acabou meu saco!

Para tentar melhorar meu dia fui até o sebo do Barbosa procurar uns livros de contos húngaros. Mas antes de ir à secção de literatura, o senhor B resolve puxar uma conversa:

— Haverá contos de amor no seu livro, Lino? — o sarcasmo dele demonstrava sua descrença na publicação de minha obra. Respondi convicto:

— O amor é um desintegrador da substância coletiva. Tema dos poetas menores.

— Porra Lino! O amor é o tema universal dos grandes autores mundiais.

— B. você está equivocado, os maiores quando o utilizavam era para falar da tragédia. Veja Shakespeare. — ele olhou-me curvado e, como todo velho, fez uns tiques. Continuei:

— Além do mais, basta-me a patética cena diária de um casal comprando pipoca para o filho entre um sol escaldante e uma felicidade postiça. Não, não escreverei sobre esse entorpecimento.

— Algum conto então sobre pipocas e palhaços?

— Obviamente não! Quem leria um pipoqueiro que escreve sobre amor, pipocas e palhaços?

— Por isso não consegue publicar nada! — ele disse com desprezo.

— Meu livro é um mar de incompreensões! Minha literatura será o estouro da artéria de um cavalo húngaro jorrando sangue com vodca russa na cara dos meus contemporâneos. — respondi para terminar a conversa como se fosse a descrição na orelha do livro.

Chegando até a prateleira reservada para contos, deparei-me com aquele ser aparentemente miserável.  A primeira vista fitei-a com cólera e certo nojo, pois era raquítica e medíocre. Embora conservasse tais características, inexplicavelmente minutos depois, comecei a encantar-me por ela. Feminina de uma vida insignificante. Além disso, como não gostar de um primeiro encontro desses? Resolvi levar para casa uma antologia dos contos e convidá-la para um café. Que clichê miserável. Estaria entorpecido? Logo eu que não acreditava no amor? Parecia ironia.

Os acontecimentos revelaram não ser apenas sexo. Tendo em vista que nem sequer transamos. Mas já estávamos apaixonados. Lutei com uma força descomunal contra essa idiotice. Mas fui vencido em nocaute. Cada dia pesava mais a sincronia entre ela e eu. Quando percebi thysanura já estava morando em casa. Ela tornara-se minha primeira e única leitora até então. Todo dia, quando regressava à noite, encontrava-a debruçada no rascunho do meu primeiro livro. Seu silêncio por sobre meus contos era maravilhoso. Depois ficávamos conversando sobre livros, vírgulas e pontos. Ela tinha preferência pelo ponto e vírgula, uma pausa mais longa e forte. Comecei a perceber a distinção de nosso amor. Fiquei até paranoico com aquele entorpecimento.

Compreendíamos-nos no silêncio. E foi nele que escutei seu pedido. Poderia parecer estranho, mas achei fabuloso. Preparei-me para executar o plano. Minha excitação às vezes atrapalhava a primeira etapa: escrever sobre nossa história.  Sempre quis revelar um conto na realidade ou vice-versa. A segunda etapa seria mais difícil. Não por causa do ato, mas pela saudade, essa maldita, que sentirei dela. Conforta-me que poderei matá-la nas últimas páginas de meu livro. Esta última etapa do pedido mostrou-me um caráter do amor até então desconhecido. Um ponto sublime. Fizera mudar meu conceito. Havia uma profundidade nesse abismo. Mas como sempre ligada à tragédia.

Escrevi o conto e mostrei para ela. Deitada por sobre os papéis, queria comê-los de alegria. Enfim, estava em um livro. Dizia estar cansada de ler os mesmos personagens de sempre. Ela era a personagem que faltava no mundo editorial. Falou que meu livro iria estourar. Olhando para thysanura compreendia tudo aquilo. Eu realizara seu sonho. Agora, como no final do conto, terei que executar a segunda parte e última do plano.  Antes, porém, deixei-a ler seu nome novamente no conto. Andou letra por letra. t-h-y-s-a-n-u-r-a. E chegando ao ponto e vírgula; comecei a socá-la na cabeça com o exemplar da antologia de contos húngaros, conforme pedido, até sua morte. Aquele momento valeu por toda minha débil existência. Uma morte esteticamente perfeita. Em transe e sem dor.

Com o livro pronto, enviei-o para as editoras. No mês seguinte, recebi várias propostas. E com apenas três meses de publicação, fiquei em primeiro lugar em vendas do gênero em todo o país. Putaquepariu. thysanura estava certa. Agora poderia viver da literatura. 

O senhor B. estava surpreendido com meu sucesso. Mas uma coisa o agoniava:

— Tu falaste que não escreveria sobre pipocas, palhaços e amor. Que porra essa? E esse conto fabuloso sobre essa tal de thysanura? Que mulher maravilhosamente louca você inventara.

— Preciso te falar uma coisa — respondi.

Contei a ele que a história era verídica. Não havia inventado. Tudo acontecera. Inclusive a livraria do conto era realmente a sua. E eu a conhecera aqui. Ele me olhou assustado. Falou que eu estava louco. Ainda disse que contaria tudo à polícia caso fosse verdade. Não acreditei no velho B.. Além do mais quem não aceitaria o nosso distinto amor nesse mundo melado de amores fáceis?

No outro dia, a polícia bateu em minha casa com um mandado de prisão e uma gravação da conversa com o senhor B. Perguntaram-me onde havia escondido o corpo dela. A princípio não quis responder. Queria mantê-lo comigo. No entanto, na delegacia, fiz um depoimento revelando toda a verdade. Imediatamente trouxeram-me para cá. Onde estou agora, por sinal feliz. Encontrei o meu lugar nesta Casa de Saúde Psiquiátrica. Nunca me adaptei mesmo ao mundo. Aqui não se vê mediocridade, nem desintegração coletiva e muito menos alegria fugaz. Compartilhamos um amor sublime e histórias surpreendentes. Ganhei tudo isso graças à thysanura. Seu pedido foi memorável. Conheci outras aqui, mas não como ela.

Hoje, meus contos continuam sendo os mais vendidos. O que releva uma miséria nos homens. Uma vez que todos clamavam minha prisão em um primeiro momento. Agora que estou aqui me chamam de louco. Mas continuam freneticamente lendo meu livro.  Não, não compreendo. Se não for uma indigência de espírito, o que é? Por que não aceitam na realidade, o que admiram na ficção? Ou seria o contrário?... Na verdade o que querem ocultar é seu total desconhecimento sobre o amor. Só conhecem o desintegrador. Por isso, nunca aceitarão que um fudido pipoqueiro, como eu, tenha-o encontrado. Ainda por cima em uma mera traça de livro, pertencente à ordem Thysanura.

 

 

[ imagem ©cirox ]

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Thiago R. Formado em Matemática pela UFAM. Escritor da cena literária alternativa de Manaus/AM. Cofundador e colaborador da Revista Claraboia. Autor do livro de contos O estouro da artéria de um cavalo húngaro. Por fim, como o próprio diz, ganha a vida com números e com a literatura tenta entender o que é ganhar a vida. Tece seus textos e contos no blogue Cores da Acidez.