COLATERAL

 

ruas
convidam ao estrondo
de uma fome sem saída

 

palavras secas
olhar embotado
e a mão
que vacila sintomas

 

aqui dentro
o exílio

 

paredes
sem promessas

 

toda quinta
adio presságios —
com a nova dosagem

 

 

 

 

 

 

SARGAÇO

 

de tua mão esquerda
em espelho gesto —
surpreende uma concha

 

a direita
guarda
um aparato de marés

 

em ambas
âncoras
cravadas num velho mar

 

contrapondo tudo
teu rosto

 

escora o silêncio
e faz-se pedra

 

 

 

 

 

 

LIMIAR

 

de tempos em textos

uma saudade

crivada de guizos

 

feito esse morro

e seus entraves

 

entre o sim e o não

de perdas

nessas pedras

:

em longa mudez

 

 

 

 

 

 

CANTO CALADO

 

essa voz

voz

revestida de sal

lixando lento

a concha de meu ouvido

essa voz

 

sabe das manhãs

suas derrotas

pilhagens

que eu esqueci

essa voz

 

soa no que eu sou

desmontando as noites antes

antes de meus pesadelos

essa voz

 

adia o canto

guardado dentro

dessa ode

dessa noite

dessa voz

 

 

 

 

 

 

ZONA DE SOMBRA

 

arfa em dilúvio

sob a matilha de pneus

ao ruir da aurora

insinuando-se em margem

e destroços

 

do chorume

em fel aberto

 

lambe vias

masca nuvens

 

e reflete em bronze

uns quantos

sorrisos

 

cadentes

 

 

 

 

 

 

ARRANJO

 

uma cantiga
salpica entre os dedos
açúcar e chocolate

 

melodia de entraves
com pausa
de sol em sal

 

na fieira de teclas
assenta uma dor
que imola

 

até tornar
lâmina lua

 

adormece o acorde —
no desmantelo da noite

 

 

 

 

 

 

LEGADO

 

trigal de entraves

nas mãos amanhecidas

 

maresia que transtorna porões

e paredes caiadas

 

mar

cais

saudade

 

lembrar

: de esquecer tudo

 

 

 

[imagem ©lets

 

 

A CASA

a tarde em cheiros

vasculha o quintal

onde silêncio se avaranda

 

sol intacto

tateia cada folha

 

vem beber desse silêncio

 

de uma janela em falso

um vulto

vocaliza a sombra

 

ofende a tarde

 

vento desinteressante põe
chumbo nas nuvens
e atenção nos varais

 

pernas avultam

 

 

 

 

 

 

BISPO

 

na avessa espera
a palavra perecível

 

grunhido esgarço
em desligado objeto

 

no sumo do caos
a mão utilitária
fia o azul

 

transgride a sombra
com olho baldio
e entreaberta

 

a voz
contamina luz
na escuridão

 

 

 

 

 

 

LADY DAY

 

onde pousa teu lamento

flagra a lua

em pétala de magnólia

 

mastigando em branco

paredes e cômodos

 

os escombros da infância

 

noite nula

em que azeitas a voz ao granizo

e comove à sombra

 

o zombar

de estranhos frutos

 

 

 

 

 

 

O RIO DA MINHA IDEIA

TEJO

das paixões contidas

no arrastar de rostos

reflexos e casas

que o vão bebendo

 

TEJO

das embarcações antigas

no arrastar de rezas

e o aceno diminuto

que a espuma apaga

 

TEJO

das canções perdidas

no arrastar de restos

de poemas e poetas

que o transbordam

 

 

 

 

 

 

SENHORA DO CAOS

da palavra e seu arpejo
sou corda —
      vibrando
no ardor de sua carne

movediça promessa
me quer solo —
aragem de dor e adubo

intermitente —
suas raízes em minhas rezas
subsolam gemidos
      dissolvendo a luz

dos dicionários

 

 

[Poemas do livro Inventário Afetivo. São Paulo: Dobra Editorial, 2012] 

 

  

 

 

 

 

 

Silvio Pedro (São Paulo/SP, 1965). Poeta. É design gráfico, e vive na cidade de São Bernardo do Campo. Participou da oficina Tantas Letras!, com os escritores Tarso de Melo, Reynaldo Damazio e Tiago Novaes Lima e de outra, em 2009, com o escritor Jorge Miguel Marinho. Atualmente, faz pós-graduação no curso Formação de Escritores do ISE Vera Cruz. Inventário Afetivo é sua obra de estreia. O livro de poemas tem orelha do poeta Tarso de Melo e foi lançado na Casa das Rosas/SP, em novembro de 2012, pelo selo Dobra Editorial. Participou das antologias II Prêmio Literário Canon de Poesia 2009 (Grupo Editorial Scortecci) e Revista Tantas Letras!, 2009 e 2010 (editadas pela Prefeitura de São Bernardo do Campo), organizadas por Tarso de Melo. Para o autor, a poesia surgiu no contato com os poemas de Fernando Pessoa, por meio de um amigo, que o apresentou ao poeta português.