GALERIA FRACASSO

 

 

Cercado pelos quadros

o pintor aderna,

incapaz de modificar litorais,

entre fósseis de vernissage e uísque nacional.

Mais fácil vender a alma

que uma de suas telas figurativas:

o diabo bem poderia

investir em arte como negócio.

 

Pensa: estou devendo ao veterinário

que há uma semana levou minha gata

e amanhã

também ao fornecedor da bebida.

 

 

 

 

 

 

LISBOA EM MAIO

 

 

Um céu que anoitece tarde

sobre colinas e telhados

ao longo do rio largo

costurado à terra por pontes.

Uma língua reconhecível

na boca dos passantes

sem a pressa das metrópoles.

Um vento que lambe como lobo esfomeado

à espreita nas esquinas

e no topo das escadarias.

A marcha dos eléctricos

quase em câmera lenta:

burricos de tempos aldeões

que ainda empacassem nas ladeiras.

 

 

 

 

 

 

À MARGEM DA CENA

 

 

Na decoração comportada do quarto,

a máscara da commedia dell’arte é descabida,

entre um cabideiro com bonés de grife,

a estante cheia de best-sellers,

um armário sóbrio,

a cama clássica coberta

por um lençol paquistanês,

onde se estira um corpo sem nada

de especial ou raro,

sendo a única distorção

dentro desse ambiente comum

a máscara negra pendurada

por um prego ou um gancho (não se vê),

com o nariz curvilíneo e longo

farejando o depois.

 

 

 

 

 

 

MÚSICA DE FUNDO

 

 

Por crer na arte como matéria viva,

apadrinhou a mesma banda de garagem

que inferniza sua oficina poética.

 

Metal pesado para sonorizar um poema,

cada verso estremecido pela percussão,

o baixo e a guitarra zunindo em metáforas.

 

Bons garotos, o poeta pensa:

a realidade ainda não contaminou

sua juventude movida a som e sonho.

 

 

 

 

 

 

JANTAR A TRÊS

 

 

Jantar assim

sem porcelanas finas,

o silêncio como terceiro

convidado à mesa,

o peixe medianamente bom,

o impróprio vinho adocicado,

com a sobremesa

o desejo tardio

de que Jean Michel Jarre

musicasse a noite.

 

 

 

 

 

 

FICÇÃO EM TRÂNSITO

 

 

Um livro lido no metrô

entre estações,

um mês inteiro,

o cérebro comendo ficção

que a carne do papel produz

a cada letra mastigada.

 

Um livro apenas,

sem geniais narrativas

de autor ainda não canonizado.

 

Em qualquer livraria

comprará outros livros

para os anos de trem.

 

Outra literatura

escolhida por preço

para devorar.

 

 

 

 

 

 

MÚSICA RESTAURADA

 

 

Na sala o toca-discos

é relíquia prematura: abdica

do seu silêncio imposto

quando ouvidos nostálgicos

resgatam nele essa arte

atemporal

que hiberna nas bolachas escuras.

No corpo cúbico ele guarda

histórias de vinil

na memória da agulha.

 

 

 

 

 

 

CONFITEOR

 

 

A gratuidade das desculpas

servida fria com a sopa,

o olhar blasé de quem simula

arrepender-se

sem outra alternativa,

mea culpa rascunhado às pressas

em chão de argila.

 

 

 
 

 

VIGÍLIA DOS GATOS

 

 

Uma ânsia furtiva, um segredo
quando um gato se perde dentro da noite,
alheio à tutoria humana.
Ele cruza a altura dos telhados
com a silhueta flexível recortada
contra o círculo da Lua.

 

Pode ser que volte pela manhã ou nunca volte.

 

É livre a psyché felina em terreno de sombras.

 

 

 

 

 

 

ALFABETO DO VERDE

 

 

Um lagarto carrega os desusos da tarde

ao sol

sobre as pedras do muro.

 

O pensamento navega entre as fendas,

sob as folhas das trepadeiras,

com sede de entender o alfabeto do verde.

 

Se o jardineiro hoje vier com a foice

para arrancar as folhagens que dão significado à muralha,

ensinarei a ele:

não se matam essas pequenas paisagens individuais

que emprestam vida aos olhos

na leitura das coisas.

 

 

 

 

 

 

CONDOMÍNIO AGORA

 

O monstruoso edifício,

a pressa nos elevadores

engole gentilezas diárias.

O bom-dia se perde

esmagado pelos decibéis

dentro de ouvidos adolescentes.

O esfregão do zelador

trafega entre a urina dos cães

e a terra solta por sapatos.

Ninguém desacelera os passos

para admirar um vaso com violetas

que a mulher do síndico trouxe de uma festa.

Mora-se ali:

viver seria uma outra coisa.

 

 

 

 

 

 

ENXAMES

 

O bisturi do metrô cortando

a entranha da cidade

ao parar na estação

despeja do buraco com escadas

formigas com mochila, paletó, salto alto,

ao longo da avenida onde os carros

como besouros suicidas

trafegam sua urgência

movida a gasolina e automatismo,

enquanto sobre a urbe helicópteros

riscam o ar

com o varejeiro voo

de moscas sanguinárias

que se alimentam do substrato

de outros insetos pisoteados sem culpa.

 

 

[ imagens ©jérôme ]

 

 

 
 
 
Sérgio Bernardo [Correa] nasceu no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. É poeta e também se dedica ao conto e à crônica. Recebeu prêmios em muitos estados do Brasil, algumas cidades de Portugal e na Argentina. Tem textos em antologias no Brasil, Uruguai e Portugal. Publicou, em 2005, Caverna dos signos, a convite da Secretaria de Cultura de Nova Friburgo, cidade onde mora. Em 2010, lançou Asfalto, pelo Selo Off Flip, em Paraty. Trabalhou em jornal por 10 anos e atualmente está envolvido com produção cultural, além da literatura.