Andrea Mantegna, 1497
 
 
 
 
 
 

O cômico já está disposto na narrativa, embora ainda um tanto sisudo, desde a Ilíada. Tome-se como exemplo o papel cumprido por Vulcano, ilustre artífice do Olimpo, cuja característica drolática, impressa por Homero, estabelece-se desde a aparência desse curioso personagem, exageradamente dotado de fealdade, pois disforme e coxo.

Homero introduzia sutilmente o risível em meio a um rol de graves ações realizadas por gravíssimos e portentosos heróis, a partir da (des) figuração de um antípoda da beleza.

É pela antítese, melhor: é pela ironia que Homero faz com que seus leitores esbocem jocosos sorrisos.

A passagem que traz essa revelação é aquela em que Vulcano intervém ardilosamente em favor de Juno (sua mãe), na contenda provocada por ela contra o Júpiter (seu pai), por conta de sua intromissão em questões humanas, condizentes tão-somente às inquestionáveis decisões do deus maior do Olimpo.

A ironia homérica, aqui disposta, está no fato de Vulcano protagonizar o risível, não por sua desastrosa aparência, mas por seus artificiosos dotes. E nem nos referimos aqui à sua engenhosidade no manuseio da forja e do martelo em densa fornalha ("Ora com sopro lento, ora apressado,/Segundo o que há na mente e quer o artista./Cobre o indômito ao fogo e estanho e prata/E ouro pôs fino, ao cepo vasta incude,/A tenaz numa mão, noutra o martelo."), mas de sua astúcia no trato com as palavras.

Para amainar a ira de Júpiter em relação às intromissões de Juno em seus desígnios, Vulcano exorta a mãe, em primeiro lugar, a prescindir em opinar sobre os desatinos das ações dos humanos ("É praga intolerável que aos Supremos/Questões humanas alvoroto excitem;"). Para tanto, alerta para o preço alto a pagar por esse tipo de atitude: a perda dos prazerosos benefícios advindos do habitar os altos céus ("Se o mal grassa, os festins seu preço perdem."; "Não nos turbe as delícias do banquete./Pois, se tal se lhe antoja, o Omnipotente/Destes assentos nos derriba a todos."). Na sequência, sugere à iracunda genitora, femininas manhas para aplacar a raiva paterna ("À mãe discreta aviso a que amacie/Meu pai dileto;"; "Sim, com ternos obséquios o acarinhes; Plácido ele nos seja.").

Já com uma taça de vinho à mão pelo filho ofertada, Juno recolhe suas mágoas, e se une a Júpiter em novas núpcias.

Toda essa ação não ocorre no recôndito íntimo de um aposento individual, mas à vista de todos os demais deuses que a presenciam em estrépitas gargalhadas ("Os beatos celícolas romperam/Numa infinita cachinada, quando/Vulcano a escancear se azafamava."). É Homero que faz deslizar suavemente a épica para a comédia, migrando a trama narrativa em risível cena teatral. Eis o germinar da comicidade na épica, o riso provindo de um enfeixar de gêneros.

 

 

Referência

 

HOMERO. Ilíada. [trad. Manuel Odorico Mendes]. São Paulo: Martin Claret, 2004.

 

 

 

 

 

 

maio, 2012