Nem tudo tem de dar certo. É a vida. Comecei a me dar conta disso quando me convocaram para organizar uma feijoada com o intuito de criar um clima legal para um encontro entre Milton Nascimento e a moça que mais tarde ele pediria em casamento. Não poderia convidar meus amigos. O almoço seria exclusivo dos noivos e seus convidados. Para o evento, tratei de encontrar a melhor cozinheira, ao mesmo tempo em que procurava reunir os inúmeros ingredientes. Pesquisando aqui e ali, descobri a santa-mão-divina de tempero trabalhando na casa de uma socialite, em Ipanema. Pedi permissão à patroa, amiga de uma amiga, e a contratei para o sábado, dia do encontro. Às 11 da manhã, estava pronta a obra-prima. Às duas da tarde, ninguém havia chegado ainda. Às três, recebi a notícia de que tudo dera errado e que não viriam mais. Nem liguei. É a vida.

         A situação, porém, foi reparada no dia seguinte simplesmente devido ao anúncio de minha morte, creditado por uma estação de rádio. Acorreu tanta gente para minha casa que o fiasco acabou se transformando num êxito feliz, malgrado meu amigo, Augusto Pinheiro, o primeiro a ouvir a notícia e o primeiro a chegar, ter me sapecado um murro de desabafo ao deparar comigo são e salvo. À medida que os outros amigos chegavam e encontravam, em lugar de um cadáver, um sujeito satisfeitíssimo, o banquete ― a feijoada do dia anterior, agora descansada no tempero e ainda mais saborosa ― foi ficando cada vez mais animado. Acabou em absoluto sucesso. Por ironia, uma das músicas que mais agitou o acontecimento chamava-se Sentinela, interpretada pelo próprio Milton Nascimento, que finalmente apareceu para compartilhar do repasto que, afinal, havia sido preparado em sua homenagem.

         Isso reafirma que nem tudo tem de dar certo em nosso viver cotidiano. Deixe acontecer que pode ser melhor. A prova está no fato de que até mesmo  um velório pode acabar num tremendo feijão com carne-seca festejado amplamente numa festa de amigos.

         No entanto, às vezes a gente brinca muito com o destino. Vejam, por exemplo, os casamentos. A maioria é marcada para a hora do rush. Não duvido nada que, por causa desse descuido, diversos deles permaneçam engarrafados, com consequentes situações de estresse, brigas e trombadas pelo resto da vida. Não daria para aliançar as vidas numa hora mais favorável? O próprio Milton Nascimento e eu mesmo realizamos nossos casamentos em horários de rush. Sem dúvida, o que ocorreu com eles depois, bem que poderia ser atribuído à hora profética e maligna em que foram celebrados.  O de Milton, ocorrido na Tijuca, com a mesma noiva que no começo do namoro me havia feito preparar aquela feijoada, é um bom exemplo do que digo.

         A igreja da Conde de Bonfim estava lotada. Um batalhão de fotógrafos ocupava os degraus do altar. O noivo, circunspecto, suava aos 40 graus do Rio de Janeiro. Trocávamos olhares. Eu estava na fila de padrinhos do noivo que, meses antes, também havia desempenhado semelhante posto em meu casamento. Se fosse outra a situação, já teríamos pedido umas cervejas para amenizar o calor. Mas ali não dava. E nada de chegar a noiva. Da rua, vinha apenas o barulho infernal do trânsito congestionado naquele horário. Experimentando uma estranha sensação de mau agouro, saí de meu lugar e fui dar uma voltinha no solitário e escuro pátio dos fundos da igreja, a fim de tomar um ar ― embora querendo mesmo tomar uma cerveja. De lá, pude observar que, se saltasse uma pequena mureta e seguisse pela lateral do templo, atravessando o vizinho terreno baldio, daria para alcançar a rua sem ser notado pela multidão que abarrotava o interior da imensa matriz.

         Nisso, ouço passos atrás de mim. A escuridão não permitiu que identificasse o noivo. Assim que falou, o reconheci pela voz. Também havia se cansado de ficar no altar. Mostrei-lhe o que havia descoberto e expus-lhe um plano. Sairíamos por ali, tomaríamos uma cerveja e voltaríamos rapidamente. O noivo não pensou duas vezes. Abriu os olhos enormes e, sem discutir, saltou o pequeno muro para as trevas do terreno baldio. Imediatamente o segui. Não posso descrever a felicidade que sentimos quando, dentro de um boteco de onde dava para ver a entrada da igreja e monitorar a chegada da noiva, sorvemos o primeiro gole gelado. Fantástico. Ali, pudemos conversar à vontade e aplacar a alta temperatura que insistia em nos castigar. Com o atraso cada vez maior da noiva, pedimos também uísque, conhaque e, já entusiasmados e esquecidos das consequências terríveis que a atitude poderia acarretar, concluímos que casar não estava com nada. E que deveríamos ir embora imediatamente.

         Entretanto, havia o tráfego daquela hora infausta. Pagamos a despesa e nos lançamos no engarrafamento em busca de um táxi. Atravessávamos a rua entre os carros. Cada táxi que aparecia era percebido como uma barca que poderia nos transportar para longe de Alcatraz. Mas, como num pesadelo, estavam todos ocupados. Cheguei a negociar com um motorista e seu passageiro a possibilidade de nos levar apenas até o final da rua, de mão única, quando já teríamos ultrapassado a frente da igreja povoada de gente. Nada feito. De repente, ouvimos o berro: "Bituca!!!" ― que é o apelido de Milton. Olhamos assustados na direção de onde vinham os gritos e vimos, na calçada, perplexas com o que presenciavam, a mãe do noivo e a futura sogra. A noiva havia chegado sem que a gente percebesse, e estavam todos à nossa procura. Maldita hora. Não falei?

         Antes de voltar para o altar, o noivo recuperou a distinção e a elegância. Ajeitou-se e, fitando-me bem nos olhos, proferiu a frase inesquecível: "Puro jazz, bicho". Também achei que havíamos composto em parceria o mais surpreendente jazz que havia testemunhado em toda a minha existência.

         Mas nem tudo é o fim do mundo. A feijoada, por exemplo, saltou de um macabro anúncio de óbito para uma bem-aventurada reunião de regozijo. E embora nossos casamentos tivessem seguido suas predições de trânsito paralisado, poucos meses depois circulávamos livremente pelas vias expressas das madrugadas de Copacabana, muito mais vividos e cientes de que nem tudo tem de dar certo. E com a convicção de que ainda chegará o dia em que nenhum casamento será mais celebrado em hora de trânsito, noivos e padrinhos engarrafados.

 

 

 
julho, 2012