"Quantos elementos amam aquela mulher"

  [Frevo Mulher, composição de Zé Ramalho]

 

 

        Não lembra do nome dele. Terá sido esquecimento voluntário, excesso de drogas, alucinações? Gorda, este era o apelido de batismo dela, era como ele a chamava, de modo displicente, o Comprido. Gorda? Nem tanto. Solteira, cor branca, cabelo preto e cacheado de picumã, idade entre 35 e 50 anos, signo conhecido, Touro, ascendente desconhecido, moradora de rua, 171, frequentadora contumaz desse artigo penal. Tida por louquinha. Mas o carimbo com o qual se marca uma rês também gravava as expressões: viciada, desgarrada, desregrada, degredada. Profissão? Mentir com convicção, sem arrastar poeiras de desconfiança. As vítimas, quando tinham aquele estalo, não davam parte na polícia, o prejuízo era uma bagatela comparado ao trabalho de ir à delegacia, todos pareciam raciocinar assim, pragmaticamente. Um dia, no entanto, foi detida por não portar documento. A mulher se viu num cubículo com grades (e desde os tempos imemoriais outras grades — as do berço pobre — conspiravam para lhe tirar a liberdade), e ela poderia ter previsto, desde a primeira estada no xilindró, que o cotidiano de golpes acabaria em aventuras galantes, mas de finalização inconsequente, e, o último dos desfechos, infeliz.

        O que não fazia sentido era culpar o Comprido. Com corpo anguloso e uma doença que lhe descamava a pele, ela tinha tara pelo Comprido, pelas conchamblanças que juntos cometiam. A mulher o escolheu como companheiro de transgressões, amante debochado, amigo para o que desse e viesse: era dele a mão quente que massageava-lhe o dedão, o dedão que perfurava suas meias emplastradas de suor e o joanete. Era dele a alegria milongueira que fazia do mundo uma brincadeira e um triunfo, foi o que Gorda contou-me, bonachona, durante a entrevista que selou nossa amizade para sempre.

    Diversão, paga de aventureiros. Eles viviam felizes, assim, descompromissados e puramente extasiados dos expedientes nas ruas, aventureiros. Até acontecer o que ela chamou de "traição".

    Ideia insuportável, a traição. Foi enganada do mesmo jeitinho que eles tapeavam os estranhos. A traição fez voragem na sua cabeça e ela não pensou duas vezes, perdeu o controle, ficou cega na emoção.

    Conheceu o tal companheiro quando vendia flores. Comprido detectou logo de primeira sua habilidade extraordinária para o tipo de negócio em que se meteram depois. No começo, tudo poesia.

    Gorda era a preciosidade, a comprovada joia das ruas, uma mulher mesclada à lenda, conhecida como a dona da praça, a dona do pequeno jardim, a que passeia com flores — "Hortênsias para hoje, minha senhora?" —, a dona do pedaço que pisa no chão realçando o peso da argamassa, denso. A mulher que pisa forte como a dona do pedaço. Em surdina ou com girândolas, está lá, a mulher gorda, vendendo ramalhetes, vasinhos de minicactos. E se congratula com cavaleiros exilados em máscaras de papel — definiu-me seu ofício assim.

    Armazenou um anelo: suor e sangue, crime e amor. Rodopios, precipícios. Às vezes a vida gira numa valsa, noutras, pagode. O cravo é erótico. A margarida, solar. Os miosótis-não-me-esqueças são o mar. Azaleias, dadeiras, se apanham por acaso, vivem se oferecendo. Lambem braços e pernas de quem anda por perto, roçam a gente com uma imensa língua de veludo. As onze-horas são tímidas. As rosas vermelhas, majestáticas.

    "Me dá quinze... estou na dúvida: você gosta das rosas amarelas?"

    A mulher respondeu com sorrisos: "Depende. Ocasião especial?", e o homem, esperto como a juventude, disse: "São para você! A ocasião é muito especial. Vou noivar, hoje, e levo flores para o meu amor. O problema é que tenho vontade demais de presentear todas as belas mulheres que encontro pela frente!".

    Ela puxou da orelha um penacho de índio, por descuido, no lugar de uma caneta. No lugar de uma caneta mesmo: fez as contas com o penacho, calcando-o no papel-embrulho pardo, e somou mais dezenas do que deveria, como se vendesse todo o estoque para o noivo feliz. Quem interferiu foi o menino com o tabuleiro de doces. Falou qualquer coisa sobre monges que estavam à praça — a praça refulgia no âmbar da tarde, onde monges apresentavam cantos gregorianos, remelentos e ensonados como a eternidade. O moleque: "Tia, não tem vergonha de enganar o moço? Olhe aí os monges, na praça. Estão aqui perto, que pecado. Vai vender tudo para o senhor pelo dobro, tio. Na frente de todo mundo! Abre o olho com essa mulher aí".

    "Descaceta, moleque. Está querendo o quê? Vá vender os doces da mamãe em outra freguesia".

    O homem fez um bah, expulsando ar de cachaça pela boca. Usava terno branco, surrado. Parecia um bicheiro. O noivo-bicheiro falou: "Então, as rosas, não tenho esse dinheiro todo...". Rápida, Gorda virou-se para o ator de televisão que passou à frente da barraca. Disfarçado de celebridade com telões de óculos escuros largados pelo rosto, ia assistir aos cantos com entrada franca no Mosteiro.

    "Ah! Cristiano Carvalho, da novela! Leve duas dúzias pra Marialice. Um beijo nas crianças!"

    O ator se voltou a ela: "Você é ótima vendedora, sabia?!". Levou todas as flores, pagou com nota alta, dispensou o troco. Gorda respondeu: "Ora, ora. Você nem me viu pelada, ainda. Rá, rá, rá. Cris, meu querido, dá um autógrafo pra esse moleque. Ô moleque, toma o autógrafo, vá-se embora. Desinfeta daqui".

    O primeiro homem, o que pediu as flores amarelas e fez um bah — não o ator, mas o noivo-bicheiro — permanecera por perto, de olho no método da Gorda. Sugeriu que se sentassem para conversar longe dali. Gorda aquiesceu e ele fez a proposta. Saltou depois na vida dela, provocando muito riso quando disse seu apelido, "Comprido".

    Ela o amou. Comprido desfez seu noivado naquele dia mesmo e passaram a viver juntos. É necessário amar alguma coisa: uma planta, vê-la verdear, conversar com ela. Uma criança, que parece sempre um santinho, mesmo quando arteira. Amar um cavalo manco! Amar o Comprido, quase indigente como ela. A mulher gordinha tem o olhar que cura, que ama. O tipo alerta e sorridente quando derrama cerveja ou bebe laquê. Um olhar que alardeia coitadinho!, coitadinha!, e para quem comoção não é regalia. E ele, o Comprido — do jeito dele — parecia amaciar um nicho no coração... Ela desejava o espaço puro. No peito dele, oásis, onde brota o azul, as formas de vida não áridas e peixes — símbolos dos perseguidos. Alguém que não abotoasse as respectivas casas da camisa lhe servia. Certificava-se dos nomes dos parentes, procurava os mais sofredores, e Gorda realizava sua representação. Formavam um par que dava muito certo. Ela se aproximava pé ante pé, algumas vezes tocando violão. Tudo à volta entrava na composição da arte do drama. O ajuste sinfônico de pássaros, numa revoada, lembrando à claridade das manhãs do mundo, que este seguirá, cruel. Virão outros pássaros e dias felizes?, quem sabe... como diria Manuel Bandeira ou Tom Jobim.

    Tocava violão e a música ficou sendo um pretexto para se realizar a aproximação aos fracos. O mais importante de tudo era o tempo, o timing. Tinha de ser rápida, não permitir brechas para qualquer reação. Quando levava o violão, a Instrumentista tocava uma valsa sonâmbula — no velório, a vida era uma valsa. Com o Comprido, um pagode.

    Ela me confessou seu modo de operar. Ei, chega mais, irmão. Entendo tua perda... teu pai? Aceite esta flor. Um tio, um tio que foi o segundo pai? Muito bem. Sei... também eu, meu irmão, perdi. Perdi meu irmão. Chore algumas lágrimas de cebola. Foi ontem. Estou com os cinco sobrinhos, digo sete, com os dois bebês... aceita esta flor. Posso te compreender. Se puder oportunizar um trocado, agradeço. Senão, tudo bem. Continuo a minha missão de levar consolo a desconsolados. Só terei forças para cuidar dos sobrinhos se puder ajudar no sofrimento de todos os nossos irmãos. A única coisa de valor na vida são os vivos! Vamos cuidar de nossos vivinhos-da-silva! Mas existe... o amor existe. E ele percorre tudo, até a morte. Pense no amor que tu devotaste a teu tio, Marcelinho. Menino, ainda ontem, teu tio te chamava de Marcelinho... Viu só como sei o teu nome, isto é, como sei teu nome pra ele?, e agora o tio só te pede calma, ele está em paz, viu?, mandou que eu dissesse a você para fazer o bem e que lá de onde está velará por ti...

    Mais tarde, Gorda, cheirando a clorofórmio, entrava num bar menor do que uma garagem para caber uma moto. Era o famoso "Pé na Cova". A luz vermelha, tremeluzindo, desenhava o pé, colado feito uma anomalia na porta da entrada. Um pé de gigante na curva dos fundos do cemitério. Gorda capinou cinco notas de dez reais e atravessou sem cumprimentar aquelas figuras voláteis, os suspeitos de sempre: dois policiais comendo coxinhas gordurosas, alguns adolescentes góticos, bebendo rum com o zelador de um prédio não longe dali.

    "Podem ver um misto-quente na chapa? Presunto e queijo, saindo!".

    O balconista replicou: "Xi. Gorda, tá feliz? Chupou cupuaçu ou deu a bundinha?".

    "Seu puto!", a mulher abanou o braço com energia, dando o assunto por encerrado. Ficou quieta, mascando ali o seu tostex, meio emburrada: "On'cô to? On'cô vô?", caminhando em direção a um homem embriagado. "Comprido!", a mulher o saudou.

    O homem perseguiu o som daquele chamado até se bater com a mulher, agindo com destreza: todo dedos longos e unhas oleosas, escorregou-se pelo bolso da saia. O tecido fino rasgou. Pelo furo ele apalpou as notas do bolso interno da Gorda.

    "Sai, Comprido. Não te dou a grana!", ela esbravejou. A mulher conseguiu introduzir um facalhão colhido das mesas por debaixo da jaqueta de couro dele, rezando para que a fria lâmina domasse um delírio tão obstinado.

"Cadê, vamos. Dá, índia velha!", Comprido se virou como contorcionista e com a mão ossuda, deu na cara dela, foi um pega pra capar. Os policiais suspeitos de sempre nada fizeram. Um deles exclamou: "Darwinismo social!". E parece que foi um guarda aleatório, um que passava na rua indo ao ponto de ônibus, que de repente lhe tomou as dores e imobilizou Comprido. Imóvel, Gorda pensou i-m-ó-v-e-l e enterrou nele a lâmina acima da virilha. Comprido se agarrou ao balcão, tentou fazer um torniquete com guardanapos. O cheiro da madrugada era de queijo coalhado, por causa das feridas e do sangue. "Uh, uh! Urra!", os góticos se excitaram com a lâmina. "Urra! Urra!".

    Um dos policiais lamentava o incidente, chovendo no molhado: "A bebida torna os homens bêbados". Comprido estava trançando as pernas bêbadas, todo ensanguentado. As palavrinhas do guarda entraram pelos tímpanos dos skinheads e góticos como um contágio. Ficaram violentos, mas não porque Comprido estivesse bêbado, que de resto eles estavam também, deveria ser, isso sim, porque ele era um quase mendigo e atacaram-lhe com chutes. "Viva a desinfecção!", os skinheads bradavam. Queriam surrá-lo, sem explicação, e tentaram acertar Gorda. Alguém chamou uma ambulância. Desceram uns homens sérios da van e, como numa cena de filme, envolveram Gorda num pano do tipo camisa de força para transportá-la. "Putos, seus putos, seus putos!", ela berrava. Levaram Comprido.

    O grupo de amotinados se desfez. Mais tarde, Gorda mal abria os olhos. Foi dopada. Seus braços foram furados com agulhas, deixaram-lhe bolas roxas, veias mal puncionadas.

    Os quartos ficavam individuais no ambulatório com o puxão de uma cortina, que, aberta, não dava nenhuma privacidade. Os pacientes podiam se entreolhar e até se relacionar. Ao seu lado, por exemplo, um homem gostava de ouvir televisão muito alta, fixando-se no seriado médico de maior sucesso internacional. À frente, uma senhora conversava com sua mão, sinalizava a todos, gestos coadjuvantes da vozinha que mal saía pela boca, enquanto ela fazia hemodiálise. O homem de trás era um senhor de barba branca, pele muito branca e olhos violetas: pensava que era Jesus Cristo.

    A ela disseram: "É proibido levantar!", "Proibido revistas, palavras-cruzadas!", "Andar, jamais; locomover-se, só de cadeira de rodas!". Até banho lhe davam na cama, as toalhas pareciam lixas. Passaram-se dias, semanas, meses. Ninguém comentava com Gorda sobre sua doença, e o médico que aparecia todos os dias percorria os doentes um a um, mas quando chegava próximo dela, negava-lhe alta.

    Tinha de fugir: não conseguia enxergar nada nítido, mas mesmo assim tentou fugir da casa de saúde que estava acabando com seu bem-estar e seu bem-bom.

    "Ê. Eguada!"

    Tirou o camisão. Acelerou na saída: passos paranóicos. A saia indiana da Gorda, guardada numa sacolinha, foi vestida e estava com a barra desfeita. Tomou por base um pássaro grande ou talvez um avião, uma vez que não enxergava direito, com tantos remédios sua vista foi a primeira a fraquear. O pássaro ou o pequeno avião esburacava as nuvens. Olhando o tempo todo para cima, Gorda pisou numa das pontas da saia, caiu. Os joelhos se esfolaram. Uma raspinha de madeira misturou-se ao líquido cinabrino, enquanto ela xingava sem parar: "Seus putos!".

    Olhou para trás e mediu a direção já trilhada. Cuspiu na própria mão e limpou na roupa, tornou a cuspir e, como se usasse uma pomada analgésica, massageou-se com a saliva. No joelho, o talho. Gritou: "Vão embora, estafilococos. Sei que não enxergo vocês, mas se puser um microscópio, verei monstros. S'embora, estafilococos!". Não fosse esse escândalo, Gorda teria escapado.

    Seus gritos foram chamativos demais, foi recapturada à casa de saúde. Quando morreu Comprido, em outra ala, por hemorragia no fígado e baço, Gorda respondeu a inquérito. Foi encaminhada à Penitenciária Feminina do Estado, onde a conheci, realizando uma matéria para o jornal.

    Toda semana eu a visito. Apalpei o cheque polpudo de melhor reportagem investigativa do ano graças a Gorda. "Será que você e essa moça serão tão famosos como Sting e o caiapó Raoni, como Truman Capote e Perry Smith, João Salles e Marcinho VP?", me perguntou uma colega. "Pode ser", retruquei.

A praça do Mosteiro hoje pela manhã estava vazia como num domingo de luto cívico ou de greve geral, mas ao redor do cemitério havia o vagido de passantes incógnitos: trabalhadores, mulheres, músicos, moleques, matemáticos, alfaiates, professores, financistas, advogados, homens ocupados e desocupados, bufões. Os cavaleiros exilados, de que me falou Gorda. A louquinha não batia mais cartão naquela praça onde seu nome se tornara lenda. Estava jogada na prisão, delirante, talvez mais delirante por causa dos achaques e remédios fortes. Era como se ouvisse a música dos passos, o valsar dos gestos. Falava na prisão que sua vida, desta vez, tinha virado pagode. Berrava por entre as grades: "Comprido! Comprido!".

    Eu tinha levado para ela anúncios: precisa-se de bordadeiras de alta qualidade para bordados em lycra ou com pedrarias, de preferência com experiência em biquínis ou crochezeiras que façam blusas, casaquinhos, toucas, almofadas, luvas, jogos americanos para bandeja. Ela gostou.

    Levava-lhe o material e retirava depois, abri uma poupança com a venda das peças à nova modista, para quando Gorda saísse, para ter por onde começar, na conta dela já tinha depositado o dinheiro do prêmio jornalístico. Ela me disse: se não fosse eu, iria enlouquecer. Não quero me gabar, mas se não fossem minhas visitas, de fato, ela iria se matar, mais dia menos dia.

Mas nada aconteceu. Ela saiu, cumpriu toda a pena e em seguida abrimos, eu e ela, um ateliê de costura na Domingos de Moraes, fechado depois de três meses. Gorda pegou o restante de suas economias e foi para o litoral da Bahia. Ela passou a vender saídas de praia de crochê numa barraquinha eclética que servia milho-verde e caipirinhas além das cangas coloridas aos turistas. Disse-me, feliz, que tinha se aposentado dos velórios e da noite, agora ia apreciar a vida matutina do litoral, até que foi descoberta pelo Mineiro e passou a trabalhar numa barraca de restaurante.

    Gorda se lembrava do prato preferido dos clientes e do nome deles, virou lenda turística da praia.

 

 

 

 

 

Para Donizete Galvão

 

 

Embora não se saiba o que pode ocasionar o ZUMBIDO, muitos pacientes com histórico de exposição ao barulho intermitente ou contínuo apresentam os sintomas. O ZUMBIDO impede a frequência a locais públicos como concertos musicais de qualquer espécie, danças, festas e eventos esportivos. Os pacientes não podem usar motocicletas, cortadores de grama, serras elétricas, aspiradores de pó, processadores de comida, armas de fogo e tampouco ousam viajar de ônibus, aviões, barcos, caminhões. A pressão arterial requer cuidados. Conversar com outras pessoas que têm ZUMBIDO é valioso. Participe de um grupo. A diminuição do sofrimento, muitas vezes, decorre de experiências compartilhadas. É infernal no meio da noite apertar os tímpanos com dois dedos. É proibido encostar o ouvido no travesseiro. Deitado de costas fica como mil buzinas desgovernadas, sirenes. Tente não se concentrar nos aspectos puramente estressantes do ZUMBIDO e se dormir for um problema, seria útil ler um pouco, ou utilizar mascaradores de cabeceira. Muitos afirmam: um lanche rápido antes de recolher-se pode ajudar a adormecer. [Retalho de jornal, 31 de dezembro]

 

 

      Carminha:

 

    Minha querida irmã. Espero que esta carta cumpra seu destino perseverante de chegar ao outro lado do mundo antes dos fachos e faíscas do 31 de dezembro. Não repare na dança das linhas ¾ não enxergo direito. Acompanho o miolo das coisas e pessoas, mas o contorno fica duplo. Disseram-me ser normal após o tratamento, e como acabei os remédios somente ontem, persistem os efeitos colaterais. Seja como for, não me deram nenhuma receita azul, um motivo e tanto para comemoração.

    Depois de um mês no hospital a gente aprende a valorizar cada minuto, cada hora longe de lá, fica-se bestamente feliz em ultrapassar as etapas, uma a uma. Veja bem, na minha idade. A confusão que é cada pílula numa hora diferente e, às vezes, tem também a dificuldade adicional de decompor ao meio uma fatia da pílula (maciça), não prescrita por inteiro. Imagine esse controle sem a dona Sílvia, que era enfermeira-chefe do meu andar. Ela cumpriu todos os horários, comprimidos e mingaus, com pontualidade britânica. As pílulas vinham numa cartela multicolorida: esta, verde mentolado, para aliviar dores crônicas, uma azul-calcinha para cefaleia pós-ráqueo, uma outra amarelada para tirar gases. Uma coringa, lá no meio delas, para combater infecções gerais de amplo espectro.

    Vou lhe dizer: bolos sem nenhuma lembrança de açúcar. Salgados, sem sal. O chá igual à água suja. Dona Sílvia trazia bandejas com a bagulhada toda, um sorriso eficiente. Meu acompanhante de quarto foi apenas o crucifixo de parede, então, nessas circunstâncias, eu precisava desculpar sua sem-cerimônia — dona Sílvia gostava de estalar a luz na minha cara e de bater a porta; tudo bem, até aí. Mas como eu odiava o seu braço gelado peneirando o meu pulso e aquela giradinha, cheia de estilo, na manopla do soro, sem dó! O mês inteiro no hospital confinou todas as minhas esperanças. Por isso eu digo que foi um milagre, Carminha, um trunfo ter vivido até então sem o peso de um decreto médico e o de tentar sem heroísmo seguir o seu lema atlético, minha querida, de atacar o cume de montanhas ou o de correr vários quilômetros, enfim, praticar ginástica. Transpor caminhos, testar limites. Ou, mais realisticamente, tocar a vida para a frente sentado no sofá, com o controle remoto na mão.

    O doutor Turíbio não deu alta total, ainda, mas está bastante, digamos assim, esperançoso. Predicou sobre maravilhas do esporte tanto quanto você e mandou que eu caminhasse feito penitente. Eu, claro, ocultei o problema da vista turva, esperando que a coisa se ajeite sozinha.

    Não me acostumei direito com a bengala. Tenho a impressão que o apoio mais atrapalha do que ajuda. Dizem que a gente acaba se habituando. Mas os outros estranham, um homem velho polui a paisagem, percebi hoje, pela manhã.

    Você precisava ver o rapaz da padaria. Foi pela reação de descaro dele que tive certeza da piora do meu quadro: nossa decadência se reflete nas atitudes alheias; meu estado, Carminha, talvez se equiparasse à cena do santo milagreiro perto da gargalhada final... agora me foge o título daquele filme que gostávamos em que o santo põe em xeque o passado de sua via-sacra, era dos irmãos Taviani? O dramático da cena era o andar manco dele, o olhar de delírio sensível à claridade, um olho esbugalhado de quem sofre visões e nota até as partículas dançantes da poeira do ar. Belo filme. Sua figura, assustadiça. Porque se arrastava... Grande filme. Por que diabos a memória retém certas imagens que nunca julgamos importantes e depois viram um emblema da nossa existência, e nos amolam e nos perseguem?

    Foi o modo como o rapaz da padaria falou: Senhor Eleno? Vai passear? Certa inflexão, compreende? Uma discrepância inconciliável a maneira de ele falar e o fato de eu estar ali com minha angústia e a doença entaladas no peito, oferecendo-me como espetáculo. Ajudou-me a esquadrinhar o chão sem saber direito se esticava minha perna ou se desempenava a bengala. Posso ser alvo de punguistas, melhor não sair de casa, melhor... concordo. A preocupação ¾  evidente por trás de palavras gentis ¾ irritou-me. Afastei os cantos de incelências ou simpatias hipócritas. Quase dei uma fubecada naquele rapazinho, mas furei o ar com a bengala. Pode ter parecido cômico a quem assistiu — só que meu coração saltava pela garganta. Ele começou a rir e matei a conversa domingueira: Rindo de que ou de quem, hein, companheiro?

    Fiquei exaltado. O rapaz pediu calma, lembrando que era "dia de confraternização". Dia de festa?, pensei. Foi o que faltava: o que é o dia 31 de dezembro, cores se estapeando no céu, foguetório de bombas, busca-pés, globos de luz de dancing, repiques... a procissão de barcos de janeiro e toda esta agitação para alguém de 85 anos?

    Saí, e ganhei as ruas de calor suarento, com multidões estáticas de carros. Carreguei os pães no embrulho, baguetinhas dormidas e albinas. Fez trinado nos meus dentes o naco do pão da vida. Miserável! Vendeu-me essa merda! Acontece por todo lugar, Carminha. Na padaria, no banco, na casa lotérica, na banca. Tratam-me como vira-lata pedinte de pires de leite, depois tentam me passar a perna. Enganam-se de propósito no troco, todos uns miseráveis. Isso sim, aborrece. Mas no geral sei que não posso me queixar da velhice, safra de solidão. Estou preparado? Na verdade, fiquei indiferente.

    Não sou desses chatos que gemem "ais" e "uis" enquanto descrevem dores aos vizinhos no cruzamento do elevador, só me lastimo dos zumbidos, o maior incômodo de todos. É permanente, compreende? Fica uma zoeira de oficina mecânica ou é como se irradiassem partidas de futebol. Só consigo dormir com o rádio ligado em alto volume para neutralizar esses ruídos mentais. Mas não reclamo: aceito o fado. Aceito-o, sabendo.

    Sei que o próximo estágio é dar o nó no saco de tripa, como dizia nosso pai (vestir o paletó de madeira, como diz o povo). Sou dos últimos da família, não mereço ficar nesta pose de sentinela para secar o óleo do caixão dos outros. Não há escapatória, essa é a verdade. Então, por que a revolta? Aceito o maldito mistério, mais que tudo, a contradança com o mistério, que me guia no ritmo da incongruência geral. Ninguém é livre na hora de nascer ou na de morrer e se no entremeio temos um gostinho de livre-arbítrio, é em decorrência do Deus piadista que assopra para depois morder. Dizem que foi Deus. Aliás, você não soube, está tão longe.

    Não poderá jamais visualizar nossa cidade. A orla bem cuidada, flores repolhudas saindo pelos canteiros. Acabou-se. Virou charco. Temporais de verão.

    A região do cemitério perto do córrego transbordou. Atente para o grotesco: houve enxurrada de tíbias e fêmures. Está sentada? Os ossos subiram pelo ralo das casas. Um osso de gente, credo! As pessoas saíam às ruas, gritando. Depois do pânico, investigações tardias descobriram que quando as famílias eram pobres, enterravam-se os mortos sem cacimbar de cimento as gavetas das covas. Simplesmente abriam uma camada na terra — muito superficial, diga-se — e desovavam ali os cadáveres frescos. São excelentes os nossos serviços municipais. Continuam fantásticos, esses mesmos serviços: há meses, a área foi isolada. Homens continuam trabalhando, mergulhados em lama e leptospirose, e ninguém conseguiu conter os ossos escapando pelo vasos sanitários das casas ou a mina de nechrochorume, brotando com força pelos bueiros.

    Mas alguém rompeu o cerco das autoridades e começou a pregar ladainhas. Esse alguém, marionetista, compôs, apanhando uma mandíbula aqui com o crânio que boiava ali, um descaveirado completo. Adivinhe quem? O lunático. Lembra quem vivia atrás do luminoso da padaria Pão de Ló e berrava para todo mundo Shishiu! Abaixem-se! Eles vão chegar!, quantas vezes não levamos um prato de sopa ao homem, para que não se batesse de fome? Tenho certeza que você já se lembrou dele: lunático sim, paranóico sim, porém com senso de oportunidade incrível. Guia místicos de todas as místicas pelo cemitério e sua glória já desbordou a região. Tornou-se rei com o cetro empunhado, o boneco-caveira. Escondeu-se numa das grutas de mármore com esculturas art nouveau de ferro. Na ala norte do cemitério recita o Apocalipse de João para uma plateia cativa de turistas empacotados para o reveillon, que vieram testemunhar essas estranhezas na nossa ex-pacata terra natal. Realmente espetacular. Tudo como nas descrições do fim do mundo, uma chuva quase metálica. No dia seguinte, escuridão. Acredite, Carminha: não nasceu a luz, tivemos dois dias de apagão. Não é de estranhar romeiros em frente ao cemitério e o reizinho com seu descaveirado, todo mundo alucinado com a chegada do novo milênio...

    A simpatia geral prendeu todo tipo de gente ao lunático. Temos de admitir: sabe agradar, o homem. O círculo de curiosos foi crescendo, aumentaram até as vendas de passagens de ônibus para cá. Ou foi o medo, que nos forçou às suas pregações e o lunático foi ganhando audiência, lentamente. Seja como for, por causa dele entramos no guia Quatro Rodas, com uma fotografia dele e um letreiro — O Profeta.

    Quem presenciou os fatos naquela noite única não pode esquecer nunca. Ninguém pôde deixar de sentir vestígios de um terror maior se entranhando naqueles acontecimentos.

    Eu trago duas noites de memória.

    Uma em que ouvíamos o pianista do bairro. Pianista amador. Os acordes dissonantes cresciam pelas ruas, lembra? Chamavam à conversa íntima e só dormíamos de exaustão com a sensação de não haver fronteiras ao desejo proibido. Como uma chama minúscula, bicando o pavio, escavamos um sulco na noite. Depois disso o mar que tínhamos eleito passou a servir de cura ao reumatismo ou a velhos desencorajados de exibir o corpo, que passeiam com camisas em mangas compridas, chapéus.

    Durante a meninice até o tempo da maturação, o de sair pela vida, a gente se banhou nas águas lamacentas daqui, mas nem por isso inventariamos nossa condição de órfãos, não é Carminha? Tampouco reclamamos da falta do carinho da mãe, de quem já não nos lembrávamos direito, ou do regime que nosso pai impunha. Pelo contrário, com o papai dava gosto em driblar ordens terminantes, especialmente, porque ele se queixava de ser um escravo dos filhos, vivia para nos sustentar. Mas nos prendeu (nós é que éramos escravos dele!) nos limites do bairro e vetou, mesquinho, as nossas viagens de veraneio. Com muito espanto, Carminha, olhávamos um para o outro, como se perguntássemos: quem vai bater o oceano e chegar à cidade de pedras? A cidade da nossa imaginação não passava de um banco de areia onde um dia encontramos um ossário de pássaro, talvez de gaivota. O oceano, trinta braçadas. E batizamos decididos a nossa faixa de pedras, onde pedras não havia, que foi nomeada assim porque éramos os responsáveis para devolver o absurdo ao absurdo. Era nossa ilha particular, aquele areião, mas ela também sumiu com as chuvas, acredita?

    Entende, agora, o que digo? O que me preocupa não é a sensação de ruína, faz-se de um tudo, dá-se um jeito. As autoridades constituídas vão cuidar destas avarias, mais dia menos dia, tudo voltará ao normal. Ou a população vai dar cabo desse caos, acreditando no porvir e no esforço comunitário. Mas o muro do portão daqui de casa virou uma passarela de ratos, e nem por isso eu podei o jardim, como deveria fazer. Ah, perdi meus interesses.

    Há muito que sonho que estou na cama com aquela mulher — você sabe, ela — e em vez de meu pênis golpeá-la, meu corpo inteiro entra pela vagina. Sufoco com mormaço, vem a sensação de que não é mais aquela mulher e que é você que, num espasmo, tenta me expulsar desse lugar-nenhum. Muito tempo após acordar, guardo a angústia do pesadelo. 

    A segunda noite é a do velório do pai.

    Estive presente durante o vai não vai. Escutei: ele está por horas. Achei justo o reconhecimento dele. Minha querida irmã, digo querida, com sinceridade. Cadê o seu senso de família? Depois do enterro, você e o José Fernando se hospedaram lá em casa, tive de dividir com aquele canalha o mesmo ambiente! Porque as palavras comem para sempre.

    Os talos de rosas se abriram no púbis da madrugada. Nosso pai velado com o Zé Fernando, que não suporto, espalhando anedotas de mau gosto. Você ainda me chamará de irmão, depois das baixarias? Vocês apontaram para mim, julgaram-se no direito, e trouxeram a público a briga pela casinha de serra. Acusaram-me de ladrão, na frente de todos! Entende?

    Não é difícil suportar a câimbra, o desmoronamento. Insuportáveis são as vozes que ficam rodando no meu pensamento, querendo me pôr louco. Muitas vezes eu disse B quando bastava ter dito A para me alinhar, de novo, com você. Mas acontece que não.

    Sua figura me inspirava.

    Carminha, estou trazendo o passado, mas não quero recomeçar nova guerra. A mesma de que tenho vontade de fugir, mas quando percebo já comecei a falar, deságuo, verto as palavras como quem se esquece da própria bondade e vê neste flagelo a libertação. Vamos mudar de rumo. O que preciso lhe contar é o seguinte: decidi ir ao cemitério.

    Não sei se vou, pensei. Não aguento. São oito quarteirões povoados por turistas-gafanhotos, bicicletas, patins, avenidas, uma loucura. Quando dei por mim tinha caído no chão. Precisa de ajuda? As pessoas não se afastavam para abrir sangria de ar. Na agonia do papai tive igual ímpeto, eu quase o sufoquei com meu hálito ¾ quis diminuir a distância. Ajeitaram-me num degrau, deram umas batidas no meu rosto, aos poucos comecei a distinguir pessoas, as árvores do outro lado da rua. Cristais no asfalto... Uma senhora gorda como vaca leiteira me ajudou a ficar em pé, sentou-me num táxi, e me carregou como se eu fosse uma imagem rara de altar. Um anjo, Carminha, e eu nem agradeci. Perdi-a de vista, tão ocupado estava em me refestelar na cadência da primeira marcha e do ponto morto, ao olhar pela janela o último dia do ano.

    Incomodava o estofamento de couro, quente, o calor de fora, a cidade correndo além.

    O que não perdoo, Carminha, é a sua ausência. É ter saído de fininho. Tinha de ter ficado conosco na doença! Você não sabe o que é ver uma pessoa agonizando, você não sabe como é o seu próprio pai agonizante. A voz um fiapo, uns chamados no meio da noite para ajeitar o travesseiro às costas, sabendo que elas vão doer sempre, não importa o movimento que se faça. Às vezes, releio a sua carta e meu estômago se contrai: "...Não trato de temas delicados com titica na ponta dos dedos. Você disse aquela besteira de que eu como filha mulher deveria ter me tornado uma automática Madre Teresa de Calcutá, ou enfermeira, e que deveria ter ficado no Brasil durante as crises do papai...".

    Você estragou tudo! Nossa juventude tinha sido uma eclusa aberta, conversávamos sem artimanhas, de peito nu. Pela corrente, gravetos de pequena vaidade suportável. Depois, o fluxo caudaloso secando, fio de água e terra ao fim.

    Palavras comendo palavras.

    A você sinceramente pareceu injusto que eu ficasse com a casa da serra? Depois de tudo?

    Minhas economias vinham dos aluguéis, depois vendemos — por sua vontade — os dois apartamentos que rendiam em conta-gotas mensais o meu supermercado, o restante foi se acabando... Ora, você sabe disso muito bem. As coisas tendem ao seu fim.

    Chegando ao cemitério, notei que a rua se chamava Rua da Boa Morte. Li várias mensagens otimistas. A da placa de bronze da entrada: "Não fostes vós que me escolhestes, eu vos escolhi". Uma banda puída onde pombos se empoleiravam hitchcockianamente: "Restaurante do Xavier, novo milênio, nova administração". Outra faixa: "Pipou's", um bar, me pôs a rir. E a tabuleta na mesa dos funcionários da administração: "Toque a campainha e um de nossos funcionários virá atendê-lo". Toquei. Bati palmas; ô de casa? Não havia ninguém. Parece que todos já tinham ido procurar o melhor camarote para a queima de fogos.

    Um vendedor expunha na calçada rosas vermelhas, acrílicas, iguais à pintura de carro novo, e várias rosas brancas maculadas no papel de jornal. Outro visitante armava oferendas. E só. Não havia mais ninguém, nada. Procurei pelo lunático e sua roupa de chita, a bata branca "engole-ele", os cabelões à Jesus: sumiu. Andei, voejei alamedas. A perna fisgava, escutava o médico hitlerista e halterofilista, soprando mentalmente nos meus ouvidos... Andar, andar e andar! Minha mente se fixara também nessas palavras: boa morte, novo milênio, eu vos escolhi.

    Havia uma parte interditada. Caía a tarde. Fui para o túmulo de nossa família que ficava na parte de cima, e não foi atingido. Foi bom que a chuva não nos afogou e, ao mesmo tempo, não, porque a água lava. Retirei do saquinho de pão o dinheiro amarfanhado, joguei. Eu ia dizer: Aqui está, enfie onde bem entender!, e dar as costas. Não disse. Mas agora estamos quites. Depois roubei lírios-da-paz do morto vizinho, cobri a lápide do nosso pai com eles. Cumpri o rito, fechei ponta com ponta da linha emaranhada. Quis caminhar na volta pela orla.

    Sandálias no meio-fio, meninas correndo na areia terapêutica. Mais garotas aniversariavam, completavam quinze anos neste fim de tarde, faziam footing enquanto rapazes exibiam o pomo-de-adão, cocuruto de galo de briga. E eu a esta altura já pensando em comprar dos ambulantes uma cerveja quente ou um espumante ordinário, como ocorria a todo mundo. Mas lá me vinha de novo o doutor Turíbio, taxativo na imaginação. Celebrei a  embriaguez alheia, no seco.

    Estes festejos de fim de mundo, programei passá-los no refúgio do escritório. Posso observar fotografias, que é meu hobby atual, arrumar todos os documentos desorganizados, escrever cartas. Principalmente escrever para amigos que já morreram, esta é uma maneira meio arrevesada de se ligar a mim próprio quando mais jovem. Vão para a lareira, depois de escritas. Mas escolho a tessitura do envelope como se não fossem queimar nunca: papel reciclado, pólen soft, cuchê, cartão, bíblia, vegetal, japonês e papel de seda. (Não uso notebooks, só cadernos de anotação — os molesquines, como dizem hoje).

    Olhe só o álbum que encontrei dentro do maleiro, na estante. Nas fotos você saía vesga e contrariada — ficava estrábica, se contestada — e dizia que tinha me saído ao pai, ao gênio dele, por gostar de distribuir ordens. Atenção: façam pose ou fiquem agachados, feito time de futebol!

    Para as pessoas ficarem do modo como eu determinasse, mais naturais e definitivamente sem pose, o enquadramento perfeito me inspirava.

    Fiz da perfeição minha profissão de fé, é verdade. Onipotente, dirigi todos os passos alheios, todas as marcações. Isso não me levou a qualquer satisfação pessoal. Vida toda corri numa maratona sem linha de chegada, competindo. Talvez tudo se acabe nas próximas horas.

    Não gosto do fim do ano. O bom é que essa época passa rápido, para sobrevivência de todos. A minha, em particular. Logo a rotina virá balsâmica, esquecerei pensamentos que deveriam habitar as noites do passado e que transbordaram com a enchente.

    A morte, o que é?

    Não é palpável. Não é nada, está lá fora, no cogumelo do jardim. Posso tocar a excrescência da madeira e pisar seu chapéu-de-sol curvado mais à metade do lodo. Se eu tiver sorte, hoje à noite, poderei ver os fogos de artifício. Contarei sobre isso, amanhã, numa nova carta, com a ressaca da festa grandiosa explodindo na minha cabeça. Não é fácil, não, embriagar-se aos 85 anos apenas de inútil euforia.

    Eternamente seu,

Eleno.

 

 

 

 

[imagens ©peha + tina modotti]

 

 

 

 

Fernanda Benevides de Carvalho. Paulistana, signo de Touro, nascida em 1970, faz parte das antologias 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (org. Luiz Ruffato), Putas (org. Valter Hugo Mae e Marcelino Freire) e integra o Dicionário crítico de escritoras brasileiras (Nelly Novaes Coelho).