DESMEMORIADO

 

Contornando os lapsos cerebrais,

Anotei na palma da mão:

— A tempestade vem com horário marcado!

 

Enquanto caminho distraído,

Tento ordenar

A profusão de ideias.

 

1 – Não sei o que significa "restrugir".

Talvez seja algum método

Para castigar criança birrenta.

 

2 – Quem inventou a vergonha

Deve ser o mesmo sujeito

Criador das roupas.

 

3 – Por que relutamos

Em aceitar

A finitude da matéria?

 

Estou esquecendo-me de algo?

Ah, sim! Taí o motivo

Pelo qual os óculos embaçam:

 

...

...

...

 

Dessa vez,

Até o pensamento molhou!

 

 

 

 

 

 

POLEGAR ABAIXADO

 

CA BE ÇA

NO LU GAR

GUI LHO TI NA

SA GRA DA

 

 

SAN GUE

RE VOL TO SO

LA VA A PRA ÇA

SE

OU SAR PEN SAR

 

 

ELE OU SOU

E TER MI NOU

AS SIM:

 

 

MO TI VO

DE OR GU LHO

IN FI NI...

 

TUM!

 

 

 

 

 

 

TERCEIRA VIA

 

ela tomou viagra

ele tem enxaqueca

 

ela abriu a compota

ele passou esmalte

 

ela fez exame de próstata

ele fez o pré-natal

 

ela é muito machista

ele usa absorvente

 

ela mantém casos extraconjugais

ele começou uma nova dieta

 

ela troca pneu

ele urinou sentado

 

ela palitou os dentes

ele ousa no decote

 

ela se chama Arlindo

ele se chama Benedita

 

 

 

 

 

 

QUARTA-FEIRA DE CINZAS

 

No Carnaval

Dos politicamente corretos,

O nosso Pierrô

É pitboy marombado.

Vivendo para puxar ferro

E injetar anabolizantes.

 

Eleita

Rainha de bateria,

A nossa Colombina

É vegetariana.

Possui turbina siliconada,

Esculpida por cirurgião.

 

Afetado

Por uma crise existencial,

Eis o que fez

O destemido Pierrô:

Trocou a sua Colombina

Pelo colorido Arlequim!

 

Durante o desfile

Da escola de samba,

A Colombina traiçoeira

Com um golpe se vingou...

Cravando o punhal que trazia

No coração do Pierrô.

 

A fantasia dos foliões

Ficou manchada de vermelho

(Tudo era sangue, confete e serpentina).

O cadáver foi cremado

Naquela mesma

Quarta-feira de cinzas.

 

 

 

 

 

 

MIRA

 

No banco da praça,

pombos em volta

do senhor encurvado.

Os transeuntes

aceleram o passo

sem vislumbrar a cena:

migalhas de pão atiradas

aos ratos com asas.

 

O bando multiplica-se.

A sujeira e as doenças

também.

 

Deixe estar.

Nenhuma das aves

com tendência para engordar

passará incólume

à mira do meu

estilingue.

 

E na tarefa

de exterminar a praga,

arrumei uma importante aliada:

a língua da Jussara.

 

Um elogio seu

às flores do jardim

é suficiente

para murchar

as rosas admiradas.

 

Quando enfim

direcionou

os comentários

às criaturas em revoada

aconteceu o que

eu previra:

choveu pombo morto

nos quintais da vila.

 

 

 

 

 

 

CONSTATAÇÃO

 

Tentei passar uma nota antiga,

de cinquenta cruzados novos,

no supermercado da esquina.

O atendente retrucou:

— Drummond não vale nada!

 

Voltei a passar uma nota antiga,

de cem cruzados novos,

no coletivo que seguia lotado.

O cobrador não gostou:

— Cecília Meireles não vale nada!

 

Levei minha nota antiga,

de quinhentos cruzados,

no entra-e-sai da bocada.

O traficante aprovou:

— Essa daí vai virar canudinho!

 

Acima de nossas cabeças,

os pássaros esvoaçam

ao som das Bachianas.
 
 
 
 

 

 

 

 

 
 
 
 

O ENTREMEZISTA DO REAL

 

A leveza

da atriz em cena

impressionava

 

Sua fala

era

entrecortada

pela tosse

do personagem

masculino

[refastelado

na poltrona

ao centro do

palco]

 

Mais um pouco

e ele fica só

no diminuto

cenário

 

Canhão de luz

direcionado

para o ator,

que levanta

e observa a plateia

num silêncio

abissal

 

O rosto vermelho

 

As veias do pescoço

sobressaltadas

 

O giro das órbitas

 

A queda 

 

[Uma

ambulância

é solicitada]

 

Após o

incidente,

deram

ao teatro

o nome do artista

cujo reconhecimento

não veio em

vida

 

 

 

 

 

 

O PELEGO

 

De tanto bajular cretinos

aplaudir poderosos

maldizer opositores

acobertar falcatruas

 

 

defender canalhas

rogar pragas

escarnecer das leis

repetir os métodos

 

O cérebro virou purê

Papinha de neném

 

 

 

 

 

 

APEGO (não só) MATERIAL

 

Quando

Fecharam a tampa

Do caixão

Só levou rancores

Sonhos não realizados

Ao mausoléu

 

O tormento existencial

Impingiu rugas

Tão profundas na face

Que mais pareciam

Cicatrizes

 

Protagonista

Da farsa escrita

Para celerados

A mente foi tomada

Por inimigos invisíveis

E aliados de ocasião

 

Valendo-se

Do poder aquisitivo

Acumulou tesouros

No bunker onde permaneceu

Encastelada

 

Teve calafrios

Quando entreviu

O destino

Do patrimônio usurpado

Com extrema ganância

Por anos a fio

 

Nada disso coube

Na sepultura

 

 

 

 

 

 

"NÃO ACEITA O TERROR PORQUE O TERROR É VOCÊ!"

 

Um filme cujo roteiro

Provoca nojo e mal-estar

No espectador pagante.

Estômagos sensíveis

Reclamam

Dos experimentos

Desumanos

(Muito embora ficção).

 

Na mesa do bar,

Opiniões convergentes

Sobre as imagens

Projetadas:

 

"Entretenimento

Para sádicos".

"Coisa de filho da puta".

"Sanguinário e cruel".

"Fascista".

 

Com as garrafas

Devidamente esvaziadas,

Voltam para casa

Os assassinos puritanos

Que são amedrontados

Pela concorrência.

 

 

 

 

 

 

SOBRE BOLINHAS DE SABÃO

 

o rádio à válvula

não captura tais

ondas

mas estabelecida

uma conexão direta

com o outro lado

nosso poema

sobre bolinhas de sabão

vai descer

como o caboclo

incorporado

pelo pai-de-santo

 

[é só psicografar]

 

uma vez

sintonizada

na frequência

exata

teremos a mensagem

decodificada

ela também

desliza no ar

ansiando

uma pena

um tinteiro

alguém que preste

atenção

 

o segredo é

escrever

sob encomenda

e entregar

amenidades

para tímpanos

frágeis

 

essa vela

acessa

auxiliará

na transmissão

da reprodução

 

enquanto o mundo

explode

a mediunidade

transcendental

vai revelar

a natureza

sobrenatural

das bolinhas de sabão

 

[é só sentar e esperar]

 

 

 

 

 

 

SEM TÍTULO

 

contesta, honesta

aqui ninguém presta

não seja tão modesta

 

avia, excreta

um gozo no meio da fresta

libido manifesta

 

mastiga, com pressa

o patrão vocifera

à sua espera

 

salário? protesta

fala o que não sente

sente o que não fala

 

escapa espia escarra aperta

um tiro no meio da testa

a turba, em volta, atesta
 
 
 
 
 
[imagens ©edenbeast]
 
 
 
 
 
 

Fábio Ramos (São Paulo/SP). Poeta. Graduado em Letras (Português/Inglês). Sintetiza pensamentos por meio da poesia. Vive, observa, silencia, reflete e escreve. Publica nos blogues Fake Portrait e Texto de Garagem (às quartas-feiras). Twitter: @f_ramos_oficial.