A
exagerada demonstração de afeto por meio de frases, desenhos, pinturas e
exclamações é algo que vem se tornando tão habitual entre nós, que chego
a duvidar que o sentimento tão decantado, que parece ter tomado de
assalto o país inteiro, seja real e verdadeiramente
consistente.
Vejo
expressões de afeto, abraços e beijos por toda parte: nas escolas,
shoppings, estacionamentos, cinemas, lojas, restaurantes, bares, enfim,
é como se uma gigantesca onda sentimental tivesse varrido todos os
lugares. Nada contra abraços e beijos, mas quando o público não deixa
nenhum lugar para o privado, dá uma sensação de estranheza danada. E
quem não quiser ver os detalhes que se vire, pois parece existir uma
vitrine geral, onde todos estão em exposição. Encontrar um cantinho mais
opaco? Impossível, a ribalta é globalizante.
Nas
redes sociais, blogs e sites, é um verdadeiro festival. Os beijos, antes
dados no rosto, testa, boca, que sei eu, atravessam agora os limites da
pele e da mucosa, e vencendo todos os obstáculos da anatomia humana,
dirigem-se diretamente ao coração. Sim, todos os beijos agora são
encaminhados para esse maravilhoso e sofrido órgão, que, além de cumprir
as importantíssimas e complexas tarefas que lhe foram destinadas, ainda
tem de receber, quer queira quer não, uma overdose quase que infinita de
beijos. Assim, sem mais nem menos, sem cirurgia nem nada.
Pesado
de beijos, quase aos pedaços, o pobre coração ainda é desenhado por toda
parte. Antes, ficava inscrito em cascas de árvores, entalhado a canivete
pelos apaixonados. No máximo, era enfeite de anel. Agora passou a
enfeitar roupas, colares, brincos, bichinhos de pelúcia, bolos, doces,
chocolates, chaveiros, uma imensa quantidade de objetos.
O
amor, considerado em todas as épocas o mais nobre dos sentimentos, anda
perdendo a nobreza, banalizado em frases toscas, desenhos ruins, na boca
de personagens mal alinhavados, ou compondo frases cheias de erros,
inclusive de ortografia. Só se fala em amor. Será que é amor
mesmo?
Gritada
e não mais confessada em sussurros à meia-luz, a expressão "eu te amo"
vai perdendo o seu conteúdo, a sua significação original, para se
transformar quase que em cumprimento, um enfeite, um jeito de dizer
"quero te agradar falando isso". Se a expressão se transformasse em
verdade cada vez que é repetida, não precisaríamos de mais nada, pois
faríamos parte de um mundo pleno, autêntico nirvana, extensão do paraíso
na terra.
Os
elogios também agora são ditos o tempo todo, com ou sem base real. As
redes sociais estampam fotos de filhos, netos, sobrinhos, com o
obrigatório comentário do autor da postagem, decantando a beleza dos
fotografados. Belos ou não, isso parece não ter a menor importância.
"Lindo" passou a ser sinônimo de "meu" (filho, neto ou sobrinho). Todo
mundo agora é lindo e não se sabe mais o que isso significa. Lindo não é
mais lindo, virou outra coisa.
O
mais grave de tudo é a infantilização generalizada que vem ocorrendo.
Adultos mandam fotos com flores, estrelas, coraçõezinhos e laços a
outros adultos, de preferência cor-de-rosa ou de bolinhas. Tudo me leva
a pensar que uma segunda infância anda se instalando por aqui. Todos
querem ser crianças, e para isso não se importam de forçar a barra,
adotar gostos infantis, falar de ursinhos e
assemelhados.
Por
falar em animais, é importante registrar um outro fenômeno,
provavelmente tão sério quanto o da infantilização das pessoas, que é a
"humanização" dos animais domésticos. Se fossem apenas idolatrados, até
aí tudo bem, tem gosto pra tudo, mas o que vem ocorrendo parece-me
bastante grave, a começar por aqueles que postam nas redes, praticamente
todos os dias, fotos de seus cães e gatos de estimação, como se fossem
únicos, vindos de outro mundo, os reis da cocada preta. O problema é
que, além dos brinquedos que já ganhavam, os cães, sejam machos ou
fêmeas, agora vestem roupinhas, capinhas, casaquinhos, xales e não sei
mais o quê. Não bastassem as roupas, as cadelas levam laços de fita no
pelo e algumas usam até correntes de ouro. Sem contar, é claro, os anéis
nas patas.
Além
de festas de aniversário, geralmente bastante dispendiosas, os cães
costumam ganhar também festas de "casamento", em que a "noiva" é
adornada com véu e grinalda. As festas são praticamente idênticas às
festas tradicionais de casamento, com direito a música, bolo,
bem-casados, champanhe e lembrancinhas para os
convidados.
Causa-me
espanto ver com que orgulho os donos contabilizam os gastos com essas
festas de "casamento". Parece que, quanto maior o custo, maior é o amor
que sentem por seus cães. É evidente que cada um gasta o próprio
dinheiro como quiser e minha função não é dar lição de moral, longe de
mim tal ideia. O que me espanta é ver a inserção de uma cerimônia humana
por excelência, inclusive definida pelo Código Civil Brasileiro, no
universo dos bichos de estimação.
Um
amigo meu, escritor muito perspicaz, me disse que fica morto de vergonha
de São Francisco de Assis. Segundo ele, que é devoto do santo, se São
Francisco viesse nos fazer uma visita, ficaria estupefato com a maneira
como os animais estão sendo tratados. Ou melhor, digo eu, destratados e
ridicularizados, pois, ao serem considerados pessoas, são destituídos do
que os define, que é sua natureza de bicho. São Francisco protegia os
animais e os respeitava como animais, nem sequer lhe passava pela cabeça
mudar algo tão elementar.
Mas,
para os donos que insistem em agregar complementos usados pelos humanos
aos seus animais, ainda que estes sejam supérfluos, como roupas,
adereços e festas, os bichos deixam de ser considerados bichos, mudam de
status, pois passam a ser "extensões" de quem os cria, espelhos nos
quais estes se veem. Quem não tem filho, cria cachorro ou gato como
gente. Quem tem, por vezes cria também. E estamos
conversados.
Os
casos da banalização dos sentimentos, da infantilização das pessoas e da
"humanização" dos animais domésticos foram escolhidos por serem
emblemáticos da sociedade em que vivemos. Aparentar sentir tornou-se
mais importante do que sentir de verdade, fingir que é criança é
preferível a assumir-se como adulto, e brincar de casinha com animais,
como se estes fossem amiguinhos humanos ou meros bonecos, completa o
quadro "paradisíaco" da falta de compromisso e da breguice. Aí sim, fica
tudo azul, azul até demais, como na canção popular. E, claro, com as
indispensáveis e pavorosas bolinhas cor-de-rosa.