viver

 

Claro, mãe, claro que vai dar tudo certo

Não importa essa floresta, hoje, deserto

Nem essa pressa de conquistar o mundo

Tudo que eu sei, mãe, é que vou fundo

E essas asas de anjo, verdadeira herança,

Você me deu quando eu ainda era criança

E achava que voar era só um exercício;

Viver, o que havia entre o cume e o precipício

 

 

 

 

 

 

enquanto é tempo

 

                   para Paulo Leminski

 

ninguém foi ver se eu estava na esquina

ou se, pelo menos, minha palavra estava

e dizia a que veio

batendo de frente

de perfil

de quina

 

a poesia é um escândalo

atrás do outro

o poeta, um bando

movido à cicatriz

e perdigoto

 

misto de mártir e meretriz

um poço

um passo

carne de pescoço

alma que foi pro espaço

 

todo santo dia

morre um de tanto beber

outro de atrofia

poucos de tanto escrever

muitos que ainda iriam ser

e não foram nem sombra

do que poderiam ter sido

 

ah! não farei um último pedido

a vida é um não sei

e a gente sabe

que é de lei

usar antes que acabe

 

antes que o peito

como um pneu furado

se esvazie, de tal jeito,

que o coração

ainda vivo

seja prensado, paralisado

sem emoção

sem motivo

sem ar

sem ter conjugado

na primeira pessoa

o verbo amar

 

 

 

 

 

 

saudosismo futurista

 

poetas de outrora

quem me dera poder cantar

a vossa aurora

 

rimar amores com flores

sentir tantas dores

que ainda sofro agora ao folhear

 

hoje o amor é artigo de shopping

descartável como um fralda

doce de fruta sem calda

como se fosse só ping

sem pong

 

os mal amados já tem até uma ONG

para tratar das escoriações

e recolher o que sobrar de seus corações

 

 

 

 

 

 

agora que já é depois

 

para Douglas Diegues

 

ontem à noite fiquei comovido

um poema de Manoel de Barros tem esse poder

me jogar pra cima e fazer

voltar a emoção que havia sumido

 

perdi as medidas

já não sei quanto é pouco

quando muito

enquanto mais ou menos

mulheres encheram meus olhos de delicadezas

e poetas, de visões

 

nada a fazer agora que já é depois

meu coração é grande mas não é dois

 

 

 

 

 

 

passo a passo

 

passos de alguém que eu conheço

só não sei se chegam ou se partem

se trazem ou levam, não reconheço,

se querem só pra si ou se repartem

 

serão vestígios de quem viveu antes?

sinais que na memória ganham vida

e estimulam os neurônios vigilantes

a darem aos passos a atenção devida?

 

se eles vem cedo ou já vão tarde

não sei, tapo os ouvidos pra não ouvir,

sei que alguém caminha e faz alarde

e o resto é conversa pra boi dormir

 

 

 

 

 

 

como é bom ser eu

 

poeta, é como todos me chamam

e como isso é bonito de se ouvir

be or be not an option, shakespeare

a alma solitária que todos amam

 

sento-me numa estrela e sinto-me

olfato das palavras navalhadas

paladar ácido da garrafa de absinto me

puxando pela língua a dentadas

 

se eu fosse o Fernando, pessoa,

seria uma piada de português

não que a sua poesia não seja boa

é que tenho no peito o erro da vez

 

água na boca dá gosto de delícia

meu verso, livre, foge do lugar comum

e não goza com a cópia subreptícia

minha puta poesia não dá pra qualquer um!

 

 

 

 

 

 

poema para um dia cinco de janeiro qualquer

 

agora que estou te deixando meio de lado

não me venha com o diabo carregado

minha solidão era o paraíso perdido

que um dia deixei num canto esquecido

 

o dia é longo e o tempo passa devagar

o silêncio também é jeito de dialogar

hoje é um bom dia como outro qualquer

não me traga semanas quando você vier

 

estou velho demais pra minha idade

séculos, milênios me deixaram à vontade

restou esse poema de ossos aquecidos

onde sonham de volta amores perdidos

 

escrever até o corpo inteiro sangrar

e descobrir que a mão não consegue parar

morrer — este é o único e definitivo texto

viver — o que eu arrumava de pretexto

 

 

 

o poema como eu quero

 

eu gosto da coisa real

centrada em si mesma

rica em efeito especial

lixa sob o fluir da lesma

 

uma puta poesia pura

água que pedra fura

alegria de mulher nua

lente no olho da rua

 

coisa de quem acha

e não de quem procura

 

 

 

 

 

 

inteligência artificial

 

mal oral

moral vagau

cara de pau

 

o normal

altos e baixos

em pleno carnaval

 

natural

cachorro au-au

gato miau

 

imoral

eu meto a ripa

e mostro o pau

 

animal

a vida é doce

a morte é sal

 

genial

racional

amor é cálculo total

 

 

 

 

 

 

celebração

 

Celebro a farta porradaria da boa

A alegria dos socos e dos palavrões

A camaçada de paus na cara e na coroa,

Sangue, dentes quebrados e escoriações

 

Celebro a guerra total dos mundos

A rara arte do contista do vigário

O calote dos cheques sem fundos

A marcha fúnebre do farrista mercenário

 

Celebro a marginália, a tribo e o forte

O urro retumbante e o chacoalhar de ferros

O silêncio ensurdecedor da morte

A eloqüência do chumbo entortando os berros

 

Celebro a vida e a coragem de mudar

Celebro a morte e a vontade de lutar

 

 

 

 

 

 

eu

 

Que que eu fiz da minha vida, meu deus do céu?

Não sendo em verso, esse universo não é meu.

O que que eu faço do meu corpo de Thadeu?

Não seria meu, Poesia, se não fosse só teu.

 

O que já foi meu, Musa, minhas pernas, braços,

bigode, nariz, olhos, nem de perto lembra

aquele que viveu no silêncio de espaços…

Pausas de um velho outubro que ainda setembra?

 

Eu lembro vagamente… Era poeta dos bons,

fazia versos cagando e andando de lá

pra cá, de cá pra lá da vila dos merdões.

 

Fumava como um sapo índio até estourar,

bebia muitas, dormia em pé e, quando ria,

ele escrevia-se todo e, sem querer, morria?

 

 

 

 

 

 

ordem nesse universo!

 

nada dentro deste coração

nada do lado de fora

senhoras e senhores,

por favor, mandem esse poema embora!

 

 

[ imagens ©old sarge ]                 

 

 

         

 

Antonio Thadeu Wojciechowski (Curitiba, PR). Poeta, compositor, romancista, professor de literatura, tradutor e publicitário. Tem 30 livros publicados entre versos e prosas. Recebeu a distinção Dante Alighieri pela adaptação do Inferno, da Divina Comédia. E prêmios por serviços prestados à cultura polonesa e alemã. Suas principais obras são: Assim até eu; Koan do como onde; O corvo; Tao, o livro; Um fausto dois; O dia em que matei o Wilson Martins; A vingança do povão; OSS; Os catalépticos; Sala 17; Reis Magros; Feiticeiro Inventor; 69; Thadeu 1 e 2; Um grito na cidade cinzenta; Não temos nada a perder; Issa e seus aquilos; Coração de abutre. Tem mais de uma centena de músicas gravadas. Bloga no Polaco da Barreirinha [polacodabarreirinha.wordpress.com].