fita branca

 

Alda tem uma coisa

encardida na pele sem

viço, sem cheiro. É

tão inexpressiva que

não sustento seu

olhar, por isso, olho

pra testa quando

fala. E por isso

ninguém olha pra ela.

 

Alda: menos

de cinquenta quilos,

cabelos sem brilho,

não conta quarenta de

idade nem alegria.

Pisa feito mastodonte

carregando fatos mortos.

 

Alda contou sua

história, tremi e não

saí de casa por uns

dias. Ela nem chorou.

Tomou café com

pão francês, almoçou no

trabalho e jantou em

casa como qualquer

outro dia. Faz faxina

três vezes por semana

no seu quitinete.

 

Alda só é ruim pra

ela. Não namora, não

solta os cabelos, não

toma sorvete, não

come chocolate, não

gosta de cinema nem

de música. Nem usa

perfume, não se

enfeita. Passa horas

olhando pela janela e

diz não pensar em

nada. Acredito! Mas

seus olhos mudam de

cor. Nesse momento,

tenho dúvidas, porque

ela arranca fios e

fios dos seus cabelos.

 

Alda disse que

desistiu dos homens

quando ouviu o

barulho de um cinto

afrouxando a calça.

Disse que não gritou.

Disse que mordeu seus

braços assim ó, e

mostrou as marcas.

 

Alda não gosta de

piadas, na tv só

assiste aos noticiários

trágicos. Quem sabe

assim compartilhe sua

dor ou não sei,

perceba outras Aldas,

talvez. Ela não fala mais

sobre o assunto.

Fala de trabalho e

não toma cerveja com

os colegas da repartição.

 

Alda não serve de

exemplo pra filmes

com mulheres

assassinas. Ela não

serve pra mostrar que

sua dor gera crimes.

Alda não serve pra

moralizar ninguém.

Não justifica

massacres, nem atos

cruéis. Ela não

comete crimes.

 

Alda não tem plantas

nem gato, cachorro

ou passarinho. Seu

apartamento é um

espaço que ela

ocupa. Suas roupas não

têm cor. Ela anda

devagar e não usa

sabonete. Ela é tão

doce que não se mata.

 

Alda não existe, não

usa fita branca.

 

 

 

 

 

 

santa fé

 

no chiqueiro o porco quando puxado pelos pés

grita e grita grita grita grita e

gira minha cabeça na dor de saber

a marreta estala a testa e a faca no coração

mudez

 

no chiqueiro a porca alimenta os porquinhos

e a outra porca observa se ela sabe fazer isso

o porco discute com outros porcos como

no chiqueiro aprender a resistir

mas não há sublevações nem encantamentos

e eles continuam parindo porquinhos para alimentar

o dono da porcariada

 

os porcos quando puxados pelos pés

gritam e gritam gritam gritam

tapo meus ouvidos e assisto lars von trier

com os pés sobre para nada me arrastar

 

esse grito preso nos pés

é dessa vontade que não anda

 

tudo gira e grita e birra

e porcos se debatem

sempre que puxados pela trama

lá do chiqueiro da minha

infância

 

 

 

 

 

 

felina imagem e semelhança

 

aninhadinhas doravante

na quentura ronrona eu

esquivança da rua viva

 

            ficamos uma da outra

            teus olhinhos sabidos

            tua patinha na minha mão

            afeto nesse instante cancro

 

com teus pelos acinzentados dou conta de

que se Deus existe é belo e perfeito

deve ser imagem e semelhança dos gatos

 

revaloriza sua felina companhia

meus rugidos olhos mudos

eu teu bicho de estimação devota

adormeço

 

 

 

 

 

 

mar em

 

Clarice me ensinou a comer manga sem usar faca e garfo.

mas quem usa isso pra comer manga? eu. usava.

velejava em areia com saltos altos. colocava na palavra terno e gravata.

Clarice brejeira, moleca d'pé descalço. abiscoitou frescuras e o mar levou.

tirou meus sapatos cheios de vergonhas. da minha palavra o espinho.

na minha cara esfregou a manga e lambeu até. até

: aprendi a ouvir tudo em grão de areia.

 

 

 

 

 

 

por você

 

daquele dia, lembra? ainda é

tarde o sol aqui chama

não adormece

não nasce

consome

insone

seu nome

aqui

oui ?

 

ilumina dedos

eus

 

daquelas luzes

perdi razão

amar você

turva

me

 

sol

ponha

se

não posso

arrisco

há risco

no riso

nas unhas

desse

não ser

 

não sei

 

 

 

 

 

 

seu nome

[de baixo pra cima e o contrário]

 

entre um ai e buscar o ar

te trouxe em palavras

: obscenas

outros dias

troquei o nome dela

o seu num estalo saiu

um quase mudo instante

revolução na pele

virtuosa música

dedilhou canção

na palidez em pele sua

soprei seu nome em brisa

pra ser brasa nos sentidos

dela

chama em nome

pele que clama

o nome

seu

a minha

esquecer seu nome

que me aquece

castiga

irriga —

(?)

necessito.

 

 

 

 

 

 

pelos meus olhos palavras suas

 

abaixo os tecidos!

úmidas línguas pelejam

dedos saqueiam ais

apossam-se

 

[imagin-

ação]

 

corpo almeja perder

resistências

 

o acaso será nosso amigo?

haverá uma esquina

onde renderei em você?

 

após cada batalha

voluptuosamente perdida,

 

de volta contar os passos

recompor meu nada

 

expectativas são insanas

volto pra mim

não nos perderemos em nós

 

não me queira fio de contas

deixa eu absolutamente

 

s

o

l

t

a

 

 

 

 

 

nem olhou pra trás

 

de costas. mergulharia.

não fosse seu riso zomba-

dor

[há sempre névoa e zumbido

e ment-

ira]

ali.

quero me

desembriagar

dessa gana,

mas um pasmo impede

  [sem me prover razão]

fogo sede queima ausência

suo querença

: não há de ser.

passo suspensa

bambeante

delírio & negação

é febre com nome

 

o seu.

 

 

 

 

 

 

dente de leão

 

19/12/11 às 09h30

sms d.g: toma café comigo? tem pão com passas e leite batido com iogurte

 

 

19/12/11 às 09h35

sms anna: hoje não, querido. vou me dar bolo de milho com café.

 

 

18/12/11 22h30

 

ontem saí deixando beijos num pedaço de papel. aproveitei seu banho, vesti minhas roupas e voltei pra rua. comprei sorvete de limão. caminhei. cheguei em casa. silêncio. fiz um lanche, avancei umas páginas do livro A Religiosa, de Diderot e fui tomar banho remoendo aquele materialismo. deitei na cama e abracei minha coberta vermelha. senti uma brisa da janela aberta renovar o ar e adormeci. sozinha.

liberdade não é sair, é chegar em casa.

 

 

 
 
 

excertos do romance inédito amor[e]ira (título provisório)

 

quando as laranjeiras desabituaram-se a florir, conhecemos Alice. belíssima, chegou pelos braços da mãe. ela apresentou nossa nova "amifuinha casca de barata", filha do casal de caseiros recém contratados. esse tipo de apresentação marcava não termos amizade com a apresentada. com Alice, deveríamos nos relacionar feito animal de estimação doente, portanto, distante. amifuinha vestida de baratinha, imprópria para amizade.

 

Alice corria, silenciava ou se escondia quando a mãe nos alcançava. a mãe contava que essa menina nasceu descrente, mamou em revoltosa criatura de olhos piedosos e isso era causa da estranheza de Alice, mas algo normal, terminava. Adele e eu desconhecíamos o sentido disso. quando pequena eu não compreendia a palavra "normal" e tantas outras que ouvia dos adultos. mas não as esquecia para exame: n o r m a l.

 

as árvores suspenderam generosidades e os cabelos de Adele, longos, perderam o viço das possibilidades. contávamos uma década completa. e elas eram lindas na minguitude. o fim é um parâmetro pesaroso. Adele, Alice e as árvores.

 

eu era uma criatura encantada com as palavras. naquela época me cercava dos significados de "normal". tive muitas dificuldades para aprender a ler e a escrever. Adele não, ela era um raio de sol ao me fazer entender as palavras. mas não sabia me explicar o significado de "normal". a mãe tentava e dava Alice como exemplo, dizia que era normal ela andar com os pés no chão, que era normal ela ter os cabelos desgrenhados ou normal ela ser estranha. nada fazia sentido. respondi que todas as pessoas não doentes das pernas, andam com os pés no chão, porque não dá pra andar com os pés no ar.

 

Escrevia com carvão na parede e lia para Adele: n o r m a l  termina com mal, então normal é mal? o que não é normal é norbom? Alice é norboa. Adele divertia com essas minhas confusões com as palavras.

 

eu inventava histórias para Adele, Alice ouvia da janela e corria quando a mãe abria a porta e sentava-se na cadeira. Adele não dormia sem saber o final, então eu contava no seu ouvido baixinho, sempre dormimos na mesma cama, nunca teve jeito nos separar. a mãe sabia exatamente quando íamos dormir,  nos vestia com a coberta de retalhos e dizia que a posição era a mesma de quando estávamos em seu útero. eu não conseguia dormir sem Adele. aprender foi um parto a fórceps pelas mãos ásperas e pesadas do pai.

 

eu virei a década e Adele ficou no tempo. umas laranjeiras secaram e foram arrancadas pelo pai de Alice, um homem sem piedade das criaturas mortas. e vivas. Adele era morta, mas as palavras, esses grunhidos modulados em sons cheios de significado até o último ouvido vivo, essa coisa de cada letra ser um símbolo possível de entendimento, isso é Adele viva.

 

o pai e a mãe não compreendiam minha confusa dor. eu era pela casa, Adele em silêncio. como esquecer quem está presente? eu me sentia incomodada com os olhares deles, sentia que não olhavam para mim. o pai, quando os remédios faziam a mãe se ausentar por horas, algumas vezes dias, me deitava na dispensa sem luz nos fundos da casa para não nos ver, nem ouvir. naqueles dias o inominável me fazia companhia e me ensinava coisas que até hoje não sei desaprender.

 

Alice contou para a vó e me salvou pela primeira vez.

 

 

 

 

*

 

ainda estranhava ele não dizer Até logo, amor. ela... talvez respondesse com sorriso doce e sonolento da cama. eu não entendia, mas sentia que o silêncio era presença na casa e chegou quando cortinas pesadas não abriram mais.

 

desci da minha cama, caminhei e deslizei silenciosamente para o bafo das cobertas dela. lembro-me bem daquela manhã. era tão pequena de modo que mamãe me abraçou inteira. ela não abriu os olhos. cheirou meus cabelos, me aninhou em seu abraço e jogou minhas perninhas sobre seu corpo. fazia tempo que não sentia aquele bem querer. respirei aos pouquinhos o doce perfume entre seus seios. meu corpo quente tremeu em brevíssimo instante, sufoquei um gritinho ainda na garganta, meus olhos viraram de tanta alegria. mais de um ano da morte de Adele, e finalmente meu coração parou de soluçar.

 

senti escorrer em meu rosto um líquido quente e chegou até minha boca um salgadinho amargo. enquanto ela me apertava no seu abraço dolorido, o ar sumia dos meus pulmões. ela agora soluçava e chamava Adele, Adele, Adele...

 

não fiz nada para me desvencilhar daquele abraço, sabia apenas que eu não era quem ela chamava. aos poucos o escuro total e novamente tive paz.

 

Anna, Anna. era a vó quem chamava. eu estava deitada em seu colo. de lá, não saí mais até que poucos anos atrás ela deixou o meu.

 

era carnaval e a tia da escola ensinou a fazer máscaras e dançar marchinhas alegres. acho que nesse dia passei a amar o carnaval. eu e as outras crianças fizemos boa farra. brincamos um dia inteiro e fiquei bastante feliz. quando cheguei, contei tudo à vó, então ela me levou até a cidade e pediu que eu escolhesse uma fantasia.

 

fiquei maluquinha com tantas possibilidades, a vendedora da loja me vestiu com um harém de princesinhas. detestei todas. ficaram doidas quando me viram de branca de neve, disseram que eu era a própria só porque além de branquinha, tinha os cabelos pretos em corte parecido. eu sentia medo dos anões e nunca gostei da ideia de limpar casa e fazer tortinhas de maçã. rejeitei a fantasia e quis experimentar a de bruxa. adorei! era preta, roxa e laranja. chapéu pontudo que prendia fios de cabelos brancos e roxos. mas o que mais me encantou foi a máscara e aquele narigão com verrugas. a vó disse que se eu quisesse poderia sim levar a fantasia de bruxa, mas pediu que eu escolhesse também outra máscara, pois aquela iria pesar e quando eu me cansasse dela, poderia colocar a outra mais leve. escolhi uma de gatinha.

 

o baile de carnaval começou às três da tarde e foi até as sete da noite. a vó sentada na mesa com outras mulheres me via risonha correr pelo salão assustando as princesinhas.

 

depois da morte de Adele, esse foi o primeiro dia em que me diverti pra valer. O carnaval tem em mim o poder de romper velhos hábitos, esse carnaval fez eu voltar a ver e brincar com outras crianças. até então eu brincava só com Adele, depois que ela se foi, eu brincava sentada em frente ao espelho. desde esse carnaval, nas vezes que mamãe veio me visitar, eu me vestia de bruxa e usava as máscaras.

 

quando eles iam embora com meus dois irmãos menores, a vó entrava e dizia olhando bem dentro dos meus olhinhos: fecha o portão com o cadeado.

 

 

 

*

 

Alice e o espelho se olharam. refletiu passivo tapas em cara borrada. eu na porta nada fiz. olhei o autoflagelo. gosto dessas cenas. de meninas com ares suicidas.

ele estragou tudo. ele estragou tudo... — e mais tapas.

 

estava apenas por curiosidade e não por compaixão. mas obrigada interferi quando ela começou a se morder. eu conhecia essa violência.

 

agarrei sua mão para baixo e com a outra mão seus cabelos na nuca. fiz força. quer que eu morda você?

 

esse verbo malhado. trair: eu traio / tu trais /ele/ela trai / nós traímos / vós traís /eles/elas traem... e ela se debatia e chorava. eu segurava mais forte. esse acordo é feito prego no morno da areia numa tarde ensolarada e romântica. é um melodrama insustentável. não percebe? Alice, é ridículo.

 

Alice não sabia, mas eu tinha uma relação com o namorado dela. desde o segundo colegial. eu sabia que ela gostava dele. eu gostava dela e gostava de sexo com ele. ele era divertido. sem compromisso. eu não gostava dos namoros da praça: mãos dadas, pipocas e discussões por olhar dos lados. ele não sabia do meu gosto por meninas, mas desconfiava. toda cidade desconfiava. talvez essa razão de ele me contar como era o sexo com ela.

 

Alice tenta se soltar. seguro. ela diz querer morrer. rio. ela me olha e sua cara toma novos ares. a empurro para cama e ordeno vigorosa que se deite. o jogo também se transforma. sento na cama empurrada por ela que se ajoelha e tira meus sapatos. beija meus pés cansados de uma festa idiota. abraça minhas pernas e implora para que eu a maltrate e lhe dê prazer.

 

nunca tive um conflito de interesses tão grave. a empurrei. acendi um cigarro. relembrei dos prendedores, da vez que, escondida sobre a amoreira, eu a vi toda sua.

 

você gosta dele, Alice.

nem tanto assim.

e qual razão desse choro?

complicado explicar.

fazia sexo com ele?

nunca fiz.

 

acreditei nela. ele mentiu querendo outras histórias. mas nunca teve.

 

toda a família de Alice estava fora. retiro religioso. agradeci. saí do quarto e dei uma volta no quintal. assim que o cigarro acabou entrei e ela estava lá: nua sentada no chão. no meu bolso, prendedores. sobre a cama, uma chinela.

 

eu sei que você quer isso, Anna. aceito se for do meu jeito.

 

eu sabia como era.

 

mas não sabia a tragédia que nos aguardava.
 

 

 

[imagens ©jarek puczel]

 

Ale [Alessandra] Safra é estudante de filosofia e evita os óculos de pollyanna. Nascida em Santa Fé do Sul, mora em São Paulo há anos. Quis escrever para sempre desde a segunda série quando a professora lia suas redações para a sala toda. Tem poemas e textos em revistas eletrônicas, faz parte do e-book Geração em 140 caracteres, da Geração Editorial (2011) e seu primeiro livro, Dedos não brocham, foi editado pela Draco (2012). Suas publicações constantes em seu blogue deram origem ao livro:  dedosnaobrocham.blogspot.com.