Ouvindo Beethoven

 

No lado oculto dos olhos
Um corcel galopa veloz,
Atinge o alto penhasco
E dele se lança no espaço.
Rufla as asas crescentes,
Transforma-se em albatroz.
Desliza trépido ao vento,
Seguindo o andar do arrebol
Que corre em Allegretto
E fulge em bola de fogo
Entre o céu e o mar.

Vai solitariamente,
Deixando guizos que ecoam
Entre as colinas distantes
E atingem a amplidão.

Vai
Desfazendo-se aos poucos
Até se confundir com o ar
Que tento agarrar em vão
No extasiado suspiro
Do último acorde.

 

 

[do livro Pequeno tratado sobre o grande nada & outras insignificâncias, 2010]

 

 

 

 

 

 

Todas as palavras de amor

 

Enquanto me observas tão detida
E Miles Davis extrai luzes do pistom,
Meu espírito navega nos teus olhos —
Mar longínquo, senda infinita —
E minha carne aguarda trêmula a tua marca,
A brasa rubra que arde em teu batom.

Ninguém jamais decifrará
Onde repousam as palavras de amor,
Milhares de palavras de amor
Que não socorrem minha boca nessa hora.

Que poderia alcançar meu pobre verso
Ante o teu mais singelo olhar,
Buraco Negro a consumir todas as coisas,
A sugar com voracidade o Universo?

Ninguém sequer dirá
Que tenha um dia conhecido o amor
Diante desse tão sublime amor!
Que a palavra, porque necessária
E ao mesmo tempo amiúde e rara,
Prefira o silêncio à oração.

Não! Palavras de amor serão guardadas
Sempre que me olhares tão profundo,
A esperar que minh'alma volte ao mundo
Para delas extrair a poesia
E assim depositá-las na tua mão.

 

 

 

 

 

 

Identidade

 

Sou uma soma disforme
De minhas próprias migalhas,
O sumo de todas as lutas,
Resto de muitas batalhas,
Mas trago sonhos nas mãos.

Não contornei desafios.
Vim engolindo as pedras,
Sorvendo os pântanos,
Devorando os montes
Que me surgiram.
Nada ficou no caminho:
Tudo virou identidade.

Só vejo com clareza o que fui.
Assento ainda os tijolos de hoje
E é inútil ter pressa.
Se ontem soubesse o que sei,
Apenas saberia agora
O que amanhã saberei,
No mesmo ciclo:
Criar-se e recriar-se
Sem fim.

Tenho os pés afoitos
E caminhar cauteloso:
Um passo atrás da certeza,
Outro adiante de mim.

Lanço o olhar aventureiro à frente
E reconheço-me no retrovisor.

 

 

 

 

 

 

Vagante

 

Devagar
Voga a luz
A vaga lua.
Vou,
Vaga-lume
A divagar.

Volúvel
Piscadela,
Varo ventos,
Verto versos,
Vivo
A volitar.

 

 

 

 

 

 

Palhaço

 

Certa vez,
Num espetáculo circense,
Um palhaço multicor em cena
Fingia prantear as desventuras
De um amor não correspondido,
No qual sua patetice insistia.

A Plateia gargalhava...
Eu chorei.

Quisera ter também podido
Me ocultar no irreal da fantasia.

 

 

[Poemas do livro Todas as palavras de amor, 2008]

 
 
 
 

 

 

 

 

 
 
 
 

O dia em que perdi as asas

 

As cantigas que queria ter cantado

Os voos que teria empreendido

Os sonhos que deveria ter trilhado

Os sonos calmos que poderia ter dormido

Os encantos que haveria de espalhar

Os enganos de que teria fugido

O sentimento de plenitude

De harmonia

De humílima completude com a vida

Que agora segue

Em desregrado torvelinho

Morreram naquele tiro infeliz que dei

Na infância

E derrubou o passarinho.

 

 

 

 

 

 

Canção da infância

 

Poderia escrever milhões de versos

Que para ti não teriam qualquer sentido.

 

Depois de ler, fecha teus olhos

E reflete na canção de outrora

Que toca insistente ao teu ouvido.

Abstrai-te das dores de agora

E recorda o cheiro da amora

Que carregaste no suor da infância.

 

Lembra-te das estrelas perdidas

Que disseram, depois, que eram aviões?

 

Não aceita!

 

Eram realmente estrelas

Que trilharam as tuas ilusões.

 

Ser pleno é amadurecer

A ponto de se conhecer criança.

 

Diz de tudo o que quiseres

Mas nunca rouba a esperança.

Amar a vida não é predizer a tempestade

Que sempre vem,

Mas anunciar, depois dela,

A bonança.

 

 

 

 

 

 

A cidade das casas abertas

 

Era uma rua torta

Que eu varava ligeiro

Atrás das andorinhas

E toda a gente assistia

Das poltronas e varandas

Porque naquela cidade

As portas e as janelas

Passavam os dias abertas

E só se fechavam à noite

Por causa dos pernilongos.

 

Nada naquele lugar

Oferecia perigo

A não ser o de criar

No espírito aprendiz

A ingênua fantasia

De um mundo sem paredes

E corações sem tramelas

Repletos de ruas tortas

E bandos de passarinhos.

 

À cidade de Ferros/MG

 

 

 

 

 

 

A dança

 

A vida não nos conta a verdade

Tão clara e despretensiosamente

Feito uma semente,

Um riso de criança.

 

Há tantos rios a correr,

Tantos estágios,

Tanta terra a vencer,

Muitas pedras,

Lágrimas, naufrágios…

 

Tanto vazio

Em tanta abundância,

Tanto se encontrar

Em se perder!

 

Nos descaminhos

É que a verdade se oculta.

 

No tropeço

Se esconde a dança.

 

 

 

 

 

 

O menino e o mar

 

Pisou por vez primeira

A areia fina

Trazendo o cheiro verde das montanhas

Entranhado no horizonte pequenino.

 

Não foi preciso que adentrasse o mar.

Antes, cuidara o mar

De entrar por inteiro no menino.

 

 

 

 

 

 

Deboche  

Não, Senhor!

Nada fiz com lucidez até aqui

Que me elevasse

À tua imagem e semelhança.

 

Nem mesmo ao me manter oculto

Sob o véu da indefinição

Para amar nas sombras,

Em silêncio,

Profundamente e sem afetação,

Apenas pelo gozo de amar.

 

O amor

É um deboche da razão.

 

 

 

 

 

 

Um olhar  

Quero ainda algum tempo

Para cantar mais canções,

Contar mais estrelas,

Plantar mais flores

No coração,

Trilhar mais versos,

Romper barreiras,

Distribuir outros sorrisos,

Reler "O Pequeno Príncipe",

Respirar mais verdes

E verdades,

Multiplicar afetos.

 

Tempo para aprender a olhar

Além dos outros olhos,

A estender incondicionalmente as mãos,

A ouvir mais que dizer,

A sofrer sem murmúrios

E seguir adiante.

 

Tempo para beijar a minha mãe,

Amar a minha mulher,

Abraçar meus irmãos,

Orar a Deus por meu pai.

 

Tempo para galgar degraus,

Subir em árvores

E montanhas,

Sentir a brisa,

Correr descalço,

Ouvir um samba

De Chico Buarque,

Aprender a dançar tango.

 

E quando eu me for

E o tempo já não fizer sentido,

Quero saber que tudo

O que vivi e desejei ter vivido

Não durou mais que o instante

De um olhar.

 

 

[Poemas do livro Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo, 2012]

 
 
 
 
 
[imagens ©jemmynen]
 
 
 
 
 
 

Ádlei Duarte de Carvalho (Belo Horizonte/MG). Escritor, publicou A travessia (romance, 2008), Todas as palavras de amor (poesia, 2008), Triângulo Vermelho (Romance, 2011) e Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo (poesia, 2012). Faz parte da antologia nacional Palavras veladas (seleção do Prof. Carlos Francisco de Morais/USP). Em 2010, publicou Pequeno tratado sobre o grande nada & outras insignificâncias, em parceria com os escritores Cláudio B. Carlos e Cleber Pacheco. Em setembro de 2011, recebeu o Troféu Carlos Drummond de Andrade, em Itabira/MG, pela sua obra literária. É membro do grupo de escritores "O Bodoque" e edita o blogue de literatura Verso e Reverso.