Paulo Franchetti na biblioteca de sua casa, em Campinas: "Comecei a pensar em fazer um balanço de
minha vida e recorri a poemas espalhados em cadernos de anotação" | foto de Leandro Ferreira/AAN
 
 
 
 

 

 

Segundo Paulo Franchetti, os poemas de Memória Futura (Ateliê Editorial, R$ 30,00), seu livro mais recente, são independentes e podem ser lidos separadamente, embora formem uma espécie de poema único que sintetiza a sua própria vida. Nascida de um balanço feito pelo autor após completar 50 anos de idade, a obra traz reflexões principalmente sobre a aproximação da velhice e a iminência da morte. Professor titular do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor da Editora da Unicamp, Franchetti é dono de uma interessante obra poética que compreende livros como Escarnho — composto de poemas pornográficos — e Oeste — dedicado à sua especialidade: o haicai. O Caderno C conversou com o poeta sobre seus trabalhos mais recentes e sua formação, sua "relação espiritual" com o haicai japonês e suas opiniões sobre Paulo Leminski, literatura espírita e o racismo na obra de Monteiro Lobato. [Bruno Ribeiro]

 

 

 

 

 

Bruno Ribeiro — Seu novo livro de poesia se chama Memória Futura. Fale um pouco sobre ele.

 

Paulo Franchetti — Depois que fiz 50 anos — hoje estou com 56 — comecei a pensar em fazer o balanço da minha vida e recorri aos poemas que eu tinha espalhados em cadernos de anotação. Busquei aqueles que poderiam ser trabalhados novamente para colocá-los dentro de um conjunto. Por isso a sensação de que fazem parte de um todo, embora possam ser lidos separadamente. Inclusive no aspecto temático há certa unidade, pois os poemas tratam basicamente de três temas: o amor, a velhice e a morte.

 

 

BR - Estes temas sempre estiveram presentes na sua poesia?

 

PF - De certa forma, sim. O que ocorre é que eles foram mudando ao longo do tempo. A visão que fazemos do amor, da velhice e da morte vai se transformando com as nossas experiências.

 

 

BR - Sua experiência com a poesia começa quando?

 

PF - Comecei escrever poesia muito cedo, por influência paterna. Meu pai trabalhava no Banco do Brasil, mas escrevia sonetos nas horas vagas. Tínhamos uma biblioteca em casa e lá havia uma coleção com as obras completas dos grandes poetas românticos. Eu devia ter 12 ou 13 anos quando comecei a ler aquilo tudo.

 

 

BR - Lia e escrevia?

 

PF - Não, escrever foi um pouco mais tarde, quando entrei na crise da adolescência. Com 15 anos comecei a ler Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo... Eu era muito angustiado, achava que tinha que me suicidar. E a poesia me aliviava. Não tinha como lidar com aquilo a não ser escrevendo. Era a minha terapia.

 

 

BR - No caso específico do haicai, como se deu seu envolvimento?

 

PF - Tudo começou quando fui para São Paulo lançar um livro de tradução que eu tinha feito e lá na livraria havia um pessoal — inclusive a Alice Ruiz estava na banca — fazendo um concurso de haicai. Eles davam 15 minutos para quem quisesse fazer o seu. Como tenho um ouvido que não escuta som agudo, escrevi: "Os grilos cantam / Apenas do meu lado esquerdo / Estou ficando velho". Ganhei o primeiro lugar no concurso e, a partir daí, tomei gosto pela coisa.

 

 

BR - A impressão que tenho é que o haicai é tão essencialmente japonês que fazê-lo em outro idioma é quase impossível. E não só pela língua em si, mas pelo olhar oriental que há no haicai. Procede?

 

PF - Em termos. O haicai é profundamente ligado à cultura japonesa, mas não significa que ele seja fácil para qualquer japonês. A maioria dos japoneses que conheço acha o haicai muito difícil. Da mesma forma que ninguém precisa ser oriental para ser budista, ou africano para ser umbandista, ninguém precisa ser japonês para escrever haicai. Há várias formas de se chegar a uma cultura. Eu, por exemplo, penso o haicai como um exercício espiritual. O haicai para mim é um caminho de vida, não é só poesia.

 

 

BR - Qual é a sua definição de haicai?

 

PF - Haicai não é dizer o máximo com o mínimo. Haicai é dizer o suficiente com o mínimo. Você tem que ser muito modesto e escrever apenas o suficiente para que o leitor perceba a experiência real que há por trás daquilo.

 

 

BR - Então o haicai não pode prescindir de uma experiência sensorial?

 

PF - Exatamente. É uma experiência totalmente sensorial. Não é poesia de gabinete. Você tem que ir à rua e direcionar o seu olhar para os detalhes. Vou dar um exemplo: se eu fizer um trajeto curto, da minha casa até o bar, vou pensando no meu trabalho, nas contas a pagar, nas coisas que preciso resolver... Se você me der uma máquina fotográfica, muda meu olhar, muda tudo. Já vou apurando meu olhar em busca de uma boa foto. O haicai é isso: a captação de um instante, de um detalhe que, por mínimo que seja, faça com que você se solidarize com coisas pequenas — um pardal, uma borboleta, uma árvore seca...

 

 

BR - É curioso que o haicai tenha se popularizado no Brasil por meio de quem nunca fez exatamente haicai, no sentido estrito do termo, que foi o Paulo Leminski.

 

PF - O Leminski tem a sua importância pelo seguinte: o haicai dele é baseado em Millôr Fernandes. Ninguém nunca percebeu isso, mas para mim é evidente. Ele sempre quis fazer a junção da cultura erudita com a cultura de massa. No haicai ele faz. Ele é erudito no sentido da reflexão filosófica, mas é popular na veia cômica, no trocadilho, na linguagem de imprensa. E contribuiu também para trazer a crítica política ao haicai. Ele era muito provocador, não era um poeta introspectivo.

 

 

BR - Ele tornou o haicai um elemento da cultura pop?

 

PF - O grande anseio do Paulo Leminski era ser um artista pop. Eu o comparo ao Raul Seixas, acho que eles têm o mesmo lado maldito, underground, cheio de energia. Leminski queria ser compreendido e falar para as multidões. A grande questão era como fazer isso através da poesia.

 

 

BR - E ele conseguiu?

 

PF - Acho que sim. O haicai, sem Paulo Leminski, não teria a penetração que tem hoje na cultura brasileira. E ele conseguiu ainda criar uma leitura própria, brasileiríssima, com o humor que falta ao oriental.

 

 

BR - Há bons autores de haicai no Brasil?

 

PF - A maioria das coisas que leio é muito ruim. Porque as pessoas acham que todo poema de três versos é um haicai — e não há nada mais distante do haicai do que isso. Para fazer haicai tem que ter um sentimento e uma atitude perante a vida. Coisas que eu percebo apenas em alguns imigrantes, como a Teruko Oda, que escreveu um livro muito comovente chamado Canção da Terra Natal.

 

 

BR - Você defende a tese de que o campineiro Guilherme de Almeida foi o primeiro poeta consagrado a fazer haicai no Brasil. Por quê?

 

PF - Guilherme de Almeida foi o fundador da Aliança Cultural Brasil-Japão, em São Paulo. Ele tinha um real interesse na cultura japonesa e se interessou pelo haicai, tendo escrito e publicado na imprensa uma série de sua autoria. Como ele era um poeta muito formal, não abria mão das rimas. O primeiro verso do haicai rimava com o terceiro e no meio havia sempre uma rima interna. E ele punha título nos poemas, o que limitava totalmente a leitura.

 

 

BR - Por que o título é um detalhe limitador no haicai?

 

PF - Porque ele determina e fecha o seu significado. O Guilherme de Almeida tem um haicai muito bonito: "Desfolha-se a rosa / Parece até que floresce / O chão cor-de-rosa". É um bom haicai, sem dúvida. Mas aí você vê o título, "Caridade". Ele mata totalmente o haicai. Mesmo assim, o haicai não teria dado frutos no Brasil se um poeta famoso como o Guilherme não tivesse se debruçado sobre ele.

 

 

BR - As pessoas dizem que o brasileiro não lê. No entanto, a minha impressão é que nunca se leu tanto no Brasil. Qual é a sua opinião?

 

PF - Talvez o brasileiro não leia em termos absolutos. Se você pegar toda a população do Brasil, o número de livros vendidos por ano deve ser muito inferior ao de países como a Argentina, por exemplo. O Brasil teve um desenvolvimento muito desigual, mas o Sudeste brasileiro não fica atrás de nenhuma outra região do mundo em termos de consumo de livros. Se você for a São Paulo, ou Rio de Janeiro, vai ver livrarias lotadas.

 

 

BR - E há o boom da literatura espírita.

 

PF - Claro. Então como podemos dizer que as pessoas não leem? Nós é que somos preconceituosos e queremos que elas leiam o que nós achamos bom. Se elas não leem Machado de Assis, dizemos que elas não leem. Qual o livro de poesia mais vendido no Brasil até hoje? Provavelmente é aquele do Chico Xavier, o Parnaso do Além-Túmulo, que tem uma edição atrás da outra.

 

 

BR - A educação ainda é o grande dilema brasileiro?

 

PF - O Brasil tem dois problemas: um é o da educação, pois ler um livro pressupõe

uma disposição intelectual. O outro problema é mais grave: como o Brasil é um país imenso, de dimensões continentais, o preço para fazer chegar um livro de uma região a outra é exorbitante. Um livro publicado em São Paulo chegará ao Amazonas ou ao Piauí custando praticamente o triplo. Os distribuidores têm por critério cobrar um preço muito alto. Quem é que pode pagar R$ 100,00 num livro? É inviável, o salário mínimo no Brasil gira em torno de R$ 500,00.

 

 

BR - O problema é do salário mínimo ou do livro?

 

PF - Eu acho que dos dois. O livro é caro por causa da distribuição e porque as tiragens são pequenas. E são pequenas porque as pessoas não têm dinheiro para comprar. Com o livro eletrônico, as coisas talvez mudem um pouco, mas ainda é tudo muito incerto.

 

 

BR - Como deveriam ser as aulas de leitura nas escolas públicas?

 

PF - Me parece evidente que as aulas de leitura são fundamentais para a formação de leitores. Mas eu não sei até que ponto as crianças devem ser obrigadas a ler os cânones. Recentemente houve uma polêmica em torno de um livro do Monteiro Lobato, por causa das expressões racistas que ele usa para se referir a uma personagem negra. Sou contra censurar ou alterar o conteúdo das obras, mas acho

que o Estado não deveria adotar livros com esse conteúdo em sala de aula. Se eu tivesse um filho negro, não gostaria que ele fosse obrigado a ler Monteiro Lobato na escola. Não gostaria de vê-lo exposto a este maltrato.

 

 

BR - Os argumentos contrários dizem que Monteiro Lobato é um patrimônio nacional e que suas opiniões apenas refletem o pensamento de seu tempo.

 

PF - Sim, e daí? E daí que é um patrimônio nacional? E se em vez de fazer referências de cunho racista aos negros o livro fizesse referências antissemitas? Os judeus iriam protestar? E as críticas da comunidade judaica seriam recebidas de que forma pela imprensa? Iriam dizer que é tempestade em copo d'água também ou aceitariam com naturalidade? A educação também passa por discussões como esta e não apenas pela leitura passiva dos livros.

 

 

[Publicada, originalmente, no Caderno C do jornal

Correio Popular de Campinas, em 17 de fevereiro de 2011]

 

 

 

 

março, 2011
 
 
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Bruno Ribeiro é jornalista, poeta, cronista e compositor. Autor, entre outros, de Antologia da noite em claro (2010).