©zebble
 
 
 
 
 
 
 
 

*

 

a língua

é uma serpente sem pele e sem dentes

 

emblemática

morde a si mesma com as gengivas de um velho diabo

 

já foi minha vizinha

mas no mês passado mudou para endereço ignorado

 

não bate bem do firmamento

tem a cabeça cheia de vocábulos

 

a víbora linguística diz

que do pensamento é o substrato

 

no ápice do eclipse

em nominar o inominado insiste

 

e que só não é deus não porque não quer

mas porque ele não existe

 

 

 

 

 

 

A REALIDADE É UMA OFICINA PIROGÊNICA

 

no sopé

da grande bunda pasmacenta

a cloaca sagrada expele repugnâncias e bem-aventuranças

que o artista decompõe pacientemente em seu

atelier psicobélico de inutilidades

 

cada fibra

cada naco putrefato levado ao sol

cada rejeito dejeto embalagem plástica reciclada

uma fratura exposta, acinte-impropério, artefato belicoso

sob encomenda para a Bienal Internacional das Artes

de São Joaquim de Campos Leão

 

enquanto isso

a cidadela se diverte

na opulência de sua indiferença degenerada

costela gorda polenta assada drogas mentiras e sexo pago

integralmente deduzível da pessoa física

 

morrer é quase um

desinteresse pelas coisas

que na espuma branca dos lençóis

se desagasalha

ela mesma, a morte

não faria sentido sem a vida

que a legitima

na medida do improvável

 

esse o desafio a percorrer sem

bússola sextante astrolábio

a fissura a fresta o desvio

a racha o interstício o enviesado

a fenda a frincha o descaminho

a greta a brecha o intervalo

o susto semântico

o furo por dentro, troncho

mais embaixo

 

esse desdém

de caneta lusco-fusco sobre a imprecisão do branco

essa escrita que se desenha ao largo do oceano tácito

ponto cego de veículo movido a combustão espontânea

perceptível tão somente a golpes de vista e de raro em raro

é o crepúsculo das referências pré-estabelecidas que

dissipam-se num estalo e mais se regenera quanto

mais despautério agrega à flor do Lácio

sorte súbita do entendimento onde a cabeça

o dente, o olho do alho, são a um só tempo

lã de lobo pelo de ovelha ferrão de orvalho

caldo arquetípico que por não ser expresso

se apresenta sem ruído, se faz sem rumor

proto-vértebra subjacente ao vocábulo

que por incerta imprópria inadequada

transgride embaça

dá chapéus curvas fintas guinadas

e sai de soslaio

redefinindo as dimensões do balacobaco.

 

e como se não bastasse

não por nada ouvi dizer de alguém que nunca existiu

que, se mais não havia, mais não há.

ao menos até aqui.

 

 

 

 

 

 

*

 

não busco a palavra exata

o sentido. o sentimento

nem a pedra lançada no firmamento

ventania que represa o rio

entendimento

 

ou a palavra pela palavra

o sofrimento antigo. o novo

a liberdade selvagem do lobo

instinto que se quer arte

perfeição do ovo

 

não busco. mas encontro

 

 

 

 

 

 

A REDE

 

 

para Sandra Santos

 

mergulhado na tarde esquisita

cometo uma ideia aqui outra ali

entrevejo a mulher que eu adoro

e me divirto

 

aspiro rapé

alguns decímetros cúbicos de ar

e um poema beat desmesurado

 

"...a irrealidade é meu chão

e o esquecimento, minha bússola"

 

há que dispormos das armas necessárias no cinto de mil e uma utilidades

para enfrentar os malfeitores, a burocracia maquiavélica oficial remunerada

e os arque-inimigos do Pasquim

 

mergulhado nessa esquisitice completa

faço anotações para depois do crepúsculo

 

o crepúsculo tem músculos, oníricos músculos

e tudo ronrona depois do crepúsculo

basta esticar o dedo e pedir uma carona que ele te leva onde ninguém

só você

 

cochilo sobre essa ideia

"...depois do crepúsculo tudo ronrona"

 

acordo

aquela manhã morna virou essa tarde quente

êh modorra pachorrenta, antes uma rede

meu reino por uma rede

 

a mulher que eu adoro se despe

abre suas asas de delícias sobre nossa cama

quero o que ela quer

 

o poema pode esperar

 

 

 

 

 

 

TESE SOBRE NADA

 

 

"... escrever nem sempre é trilhar terreno inexplorado

pode ser ladainha repetindo indo indo indo

um requentado". Alexandre Brito

 

 

uma caligrafia do imaginário

se reproduz segundo um código cifrado

em que se representam as ideias mediante caracteres simbólicos 

metáforas consecutivas consideradas organicamente

nas constelações a que pertencem

sem auxílio de referências outras que não elas mesmas

mas, ao acolher ecos e reverberações sígnicas não mensuráveis

mantém um sentido, nas feições, no gesto

sempre transfigurado

 

assim uma escritura em ruptura

que avança do familiar ao desconhecimento

é lavrada no livro secreto das dúvidas

e, sem aparente significado especial

desprovida de qualquer relevância imediata

apenas e tão somente

articula substâncias essenciais medulares

exprimindo, por alusão, matéria subliminal

potencialmente transgressiva

 

pois esta entidade abstrata

esta quase impossibilidade 

literalmente incapaz de ser definida

e determinada com certeza e/ou precisão

propaga-se, conceitual e esteticamente

quer por intangível que seja

quer por outro qualquer motivo

para além dos mapas tábuas e notações pré-estabelecidas

onde por exemplo, pedra  em relação à ventania

harpia  em relação a fósforo

ou ainda estrevania  em relação à betoneira 

habitam o âmago de uma mesma incógnita

 

sinto muito pelos cinco sentidos

não sentem o que eu sinto

os dois pés na cabeça de um fermento

encalacrado fora da zona de segurança

quando cada pormenor sem valor é crucial

e percorre o mesmo sol insólito dos hieróglifos

e, diferentemente do que se enuncia

a complexa simplicidade das coisas não requer preâmbulos

afirma-se per si, por abrasão, atrito, ou pelo puro

logológico jogo dos esquivocábulos

 

em sendo assim

uma poética das arestas é o que resta

protuberância viva no desmesuradamente plano

a parte visível do infinitamente dentro                 

o quinto lado do triângulo

 

 

 

 

 

 

*

 

no dia seguinte

decifrando os sulcos da caneta

na página em branco

ao resgatar o poema posto fora

encontrei a minha arte

 

 

 

 

 

 

*

 

imóvel

pousada na relva comodamente assentada

com forma irregular                arredondada

características graníticas

 

— o tom acentuadamente terroso a distingue —

 

silenciosa

cercada de verde por todos os lados

respira o dia anil

indiferente ao sol que a assola

 

— caberia na concha de uma das mãos —

 

nunca será um peso sobre o papel

nem produzirá círculos concêntricos

em algum lago real

não quebrará vidraças

nem derrubará latas e garrafas

servindo ao exercício de pontaria de alguém

 

mas ninguém subestima

a pedra feita de letras.

 

 

 

 

 

 

*

 

um

dia sólido debruçado sobre outro

dois

pássaros petrificados em pleno voo

três

navios ancorados na cabeça

quatro

noites sem o visgo de uma estrela

cinco

medos aprisionados em um frasco

seis

dedos de veneno e um esparadrapo

sete

palmos de amarelo no crepúsculo

oito

nesgas de inverno no meu pulso

nove

meses de outono sobre a mesa

dez

centelhas de vidro sobre a seda

onze

zeros à esquerda de uma rima        

doze

nexos à direita de uma vírgula

treze

gritos encravados no granito

quatorze

são os velocípedes do sentido

 

 

 

 

 

 

 

*

 

incrustado na pedra bruta

um homem acredita ou aspira acreditar

em algo

 

dois olhos intactos

examinam as próprias dúvidas

fibra por fibra

 

sem a força do sol a manhã pálida ganha vida

nenhum movimento ou quase nenhum

revela o impasse a que se dedica

 

quem sabe talvez algum dia

um amanhã venha a nos dizer a que viemos

 

enquanto isso o leitor, essa ilusão

vira as páginas de um livro que nunca termina.

 

 

 

 

 

 

*

 

dormir dormir e dormir

e acordar num outro mundo

sem pressa ou dinheiro

nem políticos

sem mim

eu seria um outro

alguém com a juventude de Iessiênin

a perna esquerda quebrada de Quintana

e a lógica desavergonhada de um animal no cio

 

quem sabe um poeta bissexto!?

 

dormiria um milênio inteiro

e acordaria com o grito das pedras.

feliz. sem lembrar quem fui o que fiz

 

mas que vigília malfadada

me permite apenas sonhar

por dentro de palavras acesas por dentro

a velar esperanças vãs como brasa no cinzeiro

 

 

 

 

 

 

*

 

à primeira leitura

parece algo insular

 

mais atento

um rito de sobrevivência

 

impresso assim no papel

o rascunho de um degredado à deriva

 

certos poemas

são as pegadas de um náufrago

nas areias do deserto de uma

ampulheta

 

 

 

 

 

 

 

UMA VELA À NOSSA SENHORA DA BOA MORTE

 

a liberdade bastarda se infiltra onde

o céu encontra a terra

denuncia intensa atividade literária

 

essa idéia no papel derramada assim feito gelatina

nem parece uma ideia parece mais um

estorvo feito de cimento e osso

 

o sol miúdo sem bolor entesourado e mudo

desonera de rapapés e obrigações um aglomerado de

letras na biblioteca universal dos manuscritos

 

toda tradição se renova pela libertinagem

a boa nova vem pelo esquecimento intencional das regras

um livro que não descenda de nenhum outro é uma indecência

 

de sorte que o pecado original da invenção

mais que matar o padre e ir ao cinema

é declarar-se órfã pretender-se sem pai sem par

 

numa semana ensolarada de 22

um bebê de proveta aproveita a tarde à beira mar

no calçadão desenhado por Niemeyer

 

 

 

[Do livro Metalíngua. Porto Alegre, Éblis, 2010]

 

 

 
 
março, 2011
 
 
 
 

 

Alexandre Brito (Porto Alegre/RS, 1959). Poeta, músico, letrista. É autor de Visagens (Arte Pau-Brasil, 1986), Zeros (Coleção Petit Poa, 1991), O fundo do ar e outros poemas (AMEOP, 2004), Circo mágico (Editora Projeto, 2007) e Metalíngua (Éblis, 2010). Coeditor da AMEOP — ameopoema editora. Seu livro de estreia para crianças, Circo mágico, foi finalista do Prêmio Açorianos de Literatura Infantil em 2008 e selecionado pelo PNBE-Mec em 2009. Faz parte da Banda os poETs, que depois de dois discos prepara o primeiro DVD. Publica em 2011 dois livros para crianças pequenas, médias e grandes. Pela Editora Projeto, Museu desmiolado, e pela Coleção PoeMitos da Casa Verde Editora, com Sandra Santos, Uakti e Uiara — duas lendas da Amazônia. Mais em seu site [www.alexandrebrito.net.br].
 
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