O livro de estreia do jovem escritor Rafael Carvalho não poderia ter título mais apropriado. De fato, a noção de deslocamento é o próprio vetor de constituição e força do livro. Todos os fragmentos reunidos remetem a essa ideia central de um narrador que realiza um esforço épico de organização do mundo e seus objetos, só que em uma estante que comporta em si o deslocamento natural das coisas, a inevitabilidade e o fatídico. Impulso muito inspirado na visão de mundo dos haicais de Bashô: "Não quero a felicidade contínua, desejo um dia em que eu possa dizer: hoje foi um dia bem vivido". A felicidade nos momentos, que passa pela aceitação de que a vida nunca é, nunca está em seu lugar. De que a vida está sempre no para além.

Mas os tempos são outros, bem distantes daqueles em que era possível ao homem (veja bem, certo homem Oriental. O espaço é também radicalmente outro) afirmar a ligação do sujeito com os objetos, o ideal de paz contemplativa. Pressupõe-se imobilidade, continuidade. O livro do Rafael Carvalho, no entanto, desfila por suas páginas ideais de reconciliação: homem e natureza, eu e outro, matéria e memória. Não só os propõe enquanto alvo, mas afirma por todo livro alcançar esse ideal de aceitação e reconciliação com o mundo, com a vida. Como é possível esse movimento sem recair em uma espécie de mitificação ideológica?

Existe um remédio tarja preta que atualmente está na moda — é já o segundo mais vendido no Brasil — especialmente entre o circuito de classe média, só perdendo em popularidade para uma determinada marca de anticoncepcional. Chama-se "Rivotril", um anti-depressivo poderoso e assumidamente consumido por famosos como Pedro Bial e Selton Melo. Curiosamente, seu principal efeito não é a sensação de euforia e felicidade extrema como acontece com outras drogas, como o LSD ou o êxtase, mas a percepção de que as coisas estão em seu lugar. Uma sensação de normalidade. Pois bem, os fragmentos textuais de A Estante Deslocada causam uma espécie de efeito "Rivotril": um narrador que quer nos passar a imagem de um eu reconciliado, mas que, por excesso de sinceridade — um traço estilístico, antes de tudo — não nos oculta a contraparte de uma terra desolada e em frangalhos, além de uma subjetividade impotente e sem forças para agir, sair de si mesmo ou de seu próprio quarto. Incapaz de tatear sequer uma lâmpada, ou ainda pior, impossibilitado de revelar preocupação com o vazio de existir. Daí que a felicidade é claustrofóbica, e o sorriso, amarelo. A aceitação do deslocamento da estante não acaba com o pavor de que todos aqueles livros podem, a qualquer momento, desabar sobre nossas cabeças. A única certeza é a de que quando o inevitável acontecer, não teremos força pra sair do lugar. Não desejaremos isso.

O narrador não explora seu medo e sua fragilidade, desconstruindo o sujeito da enunciação, conforme nos acostumamos a ver e a esperar na literatura moderna. Ao contrário, tenta passar a imagem de que está ali por inteiro, aceitando as vicissitudes e o imponderável da vida. Em todo sofrimento, em toda frustração, o narrador foca no aprendizado, naquilo que ficou, no azulejo que ficou na memória. Mas o que se depreende desses mesmos fragmentos, página por página, como uma força subterrânea incontornável, é o vazio e a impossibilidade de reconciliação com o mundo. É dessa contradição e desse impulso negativo pulsão de morte incrustada em cada meio sorriso, que o livro extrai a sua força. É por se frustrar em seus objetivos mais sinceros que a obra ganha em densidade.

O que resta para o leitor é a imagem de um eu fragilizado em sua busca sincera e desesperada por afirmação, por amor. Fragmentos anti-depressivos. Um eu que afirma que a felicidade está nos momentos, que a vida se resume a momentos, mas que ao expor esses momentos nos revela um universo de privação, estático, vazio, que só se realiza de fato na memória, ou na imagem dos outros. A aceitação, que seria força, torna-se impotência, tanto maior por ser o choro, ou o grito, reprimido. Não se trata aqui de acusar o narrador de má-fé (o que seria absurdo). Nada impede que ele encontre, sim, a felicidade nesses momentos. Mas os melhores momentos do livro são aqueles em que a felicidade não oculta a carência latente no instante mesmo do prazer.

É desse princípio, por sinal, que emana todas as contradições dispostas pelo livro. Um narrador com inegáveis propensões líricas — pois submete o mundo ao eu — mas que recusa a poesia em nome da prosa, da clareza objetiva das coisas, que só se realiza na ausência. Um sujeito que só acredita na literatura quando um pássaro ataca o livro, ou quando arranca as páginas e as espalha pelo quarto, pela vida, mas que no confronto com o mundo só se depara com vazios e silêncios. Um eu que almeja a concretude das coisas, pura e diretamente, mas que se concentra em sua própria casa, no quarto, ou se refugia na memória da família. A vida feita de ausências.

O deslocamento da estante imprime as marcas da subjetividade no mundo — mais ou menos como o gesso do Manuel Bandeira — mas esse deslocamento é involuntário, está para além das forças do sujeito, que só aceita porque não tem forças para recolocar a estante no lugar. E bem que ele queria: amar, ser amado, as coisas em seu lugar. E sim, a poesia. A vida não tem controle, e o posicionamento do narrador em busca das mais simples experiências burguesas — via certo orientalismo — aponta para uma fragilidade que se insinua em todos os fragmentos. O que deveria aparecer como flashes de plenitude acaba por gerar o já comentado efeito "Rivotril", a plenitude impossível. Um eu que só se relaciona fortuitamente e quer a todo custo nos fazer crer que essa carência é, em si, totalidade. A força do livro está, então em sua honestidade: tanto na vontade desesperada de ser amado, aceito como sujeito integral, quanto em expor as reais condições em que essa subjetividade se compõe. Por mais que ele insista na plenitude de seu encontro com um cachorro (p. 59), nada muda o fato de que ele é um solitário que só possui a companhia de um cachorro, que sequer pertence a ele. O despojamento e o vazio são impostos ao sujeito, que os aceita, sim, por filosofia e sabedoria, mas também por completa falta de opção. Goste o autor ou não, a trilha sonora perfeita para acompanhar suas pérolas de plenitude impossível é o rock indie contemporâneo — o que dá noticia de sua atualidade. Mas indie dos bons, Radiohead, em que a fragilidade é problema, e não alternativa de consumo.

"E ver (com estes olhos tranquilos) que você está aqui comigo, seja por um talher sujo na cozinha, uma tolha estendida no banheiro, um fio de cabelo em trânsito, diz que eu estou amando você". Os olhos estão tranquilos, mas a certeza do amor só se dá na ausência daquela a quem se ama. Os objetos comportam a marca ambígua da presença e da ausência. A aceitação do amor no vazio passa pela reconfiguração do outro pela memória, a transformação da alteridade em imagem do eu. Só assim se atinge a paz: a aceitação da vida (felicidade) depende, no limite, da negação da vida, e é nesse jogo, nesse deslocamento que expõe uma insustentabilidade que no entanto se sustenta em uma forma também deslocada uma poesia desprovida de forma poética, ou uma prosa completamente perpassada pelo lirismo de um eu que se impõe que forma-se uma obra quer ser, precisa ser, é, desesperadamente, literatura.

 

 

 

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O livro: Rafael F. Carvalho. A estante deslocada. São Paulo: Patuá, 2011

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junho, 2011

 

 

 

 

 

Acauam Oliveira nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 8 de junho de 1981, mas criou-se em Marília, no interior de São Paulo. É poeta, educador, músico, batuqueiro, e faz doutorado em Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, orientado pelo professor José Miguel Wisnik. Tem artigos publicados em diversas revistas acadêmicas e blogues.