felice bauer
 
 
 
 
 
 
 
 

       

"Entre a perplexidade e o espanto, talvez seja o portador de alguma

coisa que nem eu mesmo sei o que seja". Wilson Bueno

  

 

Nos ecos da veleidade humana, páginas de diário e contos circulam em A Copista de Kafka, de Wilson Bueno, candidato ao Prêmio São Paulo de Literatura na sua versão 2008. Bueno nasceu em Jaguapitã (PR) e morava em Curitiba até a noite de 31 de maio de 2010, quando foi assassinado. Foi criador e editor por oito anos do suplemento de cultura e de ideias Nicolau, um experimento sem igual nesta terra brasilis. Além de escritor, colaborava periodicamente como resenhista em O Estado de S. Paulo, de onde foi dispensado em troca de cabeças menos pensantes e menos provocadoras, e era cronista semanal do jornal O Estado do Paraná. Entre suas obras, destacamos: Mar Paraguayo, Amar-te a ti nem sei se com Carícias, Meu tio Roseno, a Cavalo e Bolero's Bar.

Lançado em 2007 pela Editora Planeta do Brasil, A Copista de Kafka faz o leitor circular, de modo abissal, por uma nauseante relação entre personagens históricos e personagens ficcionais: Felice Bauer, a verossímil Copista de Kafka; Max Brod, o amigo e testamenteiro de Kafka; Zbwsk; o poeta El Rachid Al-Saad; o Lenhador; um dente; monstros como o Angst. E entretecendo a teia, a fantasmal figura de Franz Kafka.

Se em vida, Kafka não foi um cidadão do mundo, porém, o cidadão de uma cidade, Praga, hoje é fantasma que circula pelo mundo literário, espalhando a tensão existencial/humana praguense. O filósofo judeu Vilém Flusser, também, como Kakfa, nascido e morto (Flusser foi vítima de um acidente de trânsito quando estava na cidade para proferir conferências) em Praga (1920-1991) e radicado no Brasil até 1973, quando foi para a França, diz de sua cidade natal:

Praga impõe sobre seus cidadãos marca indelével. É possível se tentar recusá-la (como Rilke), aceitá-la como destino (como Kafka), ou transformá-la em tarefa (como Neruda), mas para aqueles que vivem fora de seus muros todos os seus cidadãos continuam para sempre praguenses. O característico de Praga é que sua marca supera todas as diferenças nacionais, sociais e religiosas [...] Antes de mais nada se é praguense. Praga é clima existencial, e todos os nivelamentos, com suas múltiplas tensões, ocorrem em tal clima (2007, p. 19).

A marca praguense mostra-se, em Kafka, como limite, como fronteira de um território onde a margem é extensão e não contenção. Extensão que contagia a obra de Bueno, expondo o absurdo de ser gente, mas de não sentir-se humano. Ainda em Vilém Flusser, encontramos que o absurdo reconhece o que é "sem fundamento", "sem raízes", "sem base razoável" (2007, p. 19). E que

Todos conhecemos o clima da falta de fundamentos de experiência própria, e, se o negarmos, é que conseguimos reprimi-lo (vitória duvidosa). Mas há os que se encontram na falta de fundamento, por assim dizer, objetivamente, seja porque foram arrancados da realidade por forças externas, seja porque abandonaram espontaneamente uma situação aparentemente real, mas por eles diagnosticada como fantasmagoria (FLUSSER, 2007, p. 19).

Portanto, todos conhecemos o absurdo e alguns optamos por ele. Kafka optou por ele. Bueno optou por ele ao construir a sua Copista.

Afinal, quem é a Copista? Sentimos a premência de, como leitores (a maioria) educados na verossimilhança e na necessidade de acreditar que o verossímil é o verdadeiro, crer que ela seja Felice Bauer, a jovem estenógrafa alemã que Kafka conheceu em 1912, por intermédio do amigo Brod, e com quem se correspondeu até 1924, porque, ao final de seu primeiro apontamento sobre o senhor Franz, a Copista escreve: "Chamava-me, o tempo todo chamava-me, pelo nome e o sobrenome, de um modo assim entre o reverente e o tímido — Felice, Felice Bauer..." (BUENO, 2007, p. 8). Presumidamente, toda aquela correspondência teria sido leiloada por Bauer após a morte do escritor tcheco.

 

felice bauer e kafka | 1917

 

O livro de Bueno começa com um apontamento de Felice em seu diário. É o dia 14 de agosto de 1912:

Conheci ontem o simpático senhor Franz. Olhou-me demoradamente os pés. Terá notado o defeito que tão insistentemente escondo e dele só dou registro nas páginas deste diário exausto? São grandes, julgo muito grandes os meus pés. Também não aprecio o meu nariz. Acompanha-me o rosto, como me acompanha a boca rasgada e as sobrancelhas proeminentes, mas não aprecio o meu nariz. Pareceu-me um homem encantador, o senhor Franz a noite passada, no apartamento de Brod (BUENO, 2007, p. 7. O uso do itálico diferencia o diário da Copista dos contos. Essa opção é do próprio Wilson Bueno).

        

Impressões sobre o senhor Franz misturam-se a impressões que Felice supõe que o novo amigo tenha sobre seus pés. Se o amigo de Brod lhe parece simpático e encantador, isso não impede que a Copista assuma um pessimismo radical com sua própria figura, marcada pela imensidão dos pés, o rasgo da boca, a proeminência das sobrancelhas e um nariz desagradável. Uma imagem próxima ao monstruoso, ao animalesco, àquilo que a desloca da arquetípica delicadeza das personagens femininas de um certo modelo literário, o que, no entanto, não impede que Franz lhe envie pacotes com sua literatura. No dia 16 de outubro de 1916, a Copista anota no diário:

 

Anotação, ainda, de um detalhe que me envaidece, na qualidade de mulher e de aspirante às Letras: Franz confia a mim todos os bichos de seu bestiário e diz maroto, isso em outra carta, que eu fique com eles, os seus bichos, e os guarde no fundo da alma, sem que ninguém saiba, principalmente o ciumento Brod, capaz de romper com Franz se descobrir que este o trai enviando-me mais que secretos inéditos (BUENO, 2007, p. 75).

Se na anotação de 1912 Felice imprime o que supõe de si mesma, em 1916 ela confidencia ser a guardiã dos bichos de Franz, talvez ela também parte do bestiário, ela um ser humano na sua não-totalidade. Em 20 de outubro de 1916, ela escreve: "Ontem li, de uma enfiada, metade do bestiário de Franz. O livro é às vezes engraçado... [...] É como se a gente risse de lado, um riso envergonhado de nossa sempre parca condição humana" (BUENO, 2007, p. 76).

Vale lembrar que Wilson Bueno deu à luz, em 1999, o seu próprio bestiário, em Jardim Zoológico. São seres cujos nomes mesclam sonoridades de ascendência latina (com as línguas portuguesa e latina) e indígena (tupi e guarani), descritos à minúcia. Um dos seres do bestiário de Bueno é o jaquapitã:

 

os jaguapitãs

 

Dos cadernos do sertanista, retiro um outro monstro indígena, além dos já detalhados neste bestiário — é o jaguapitã, 'cachorro vermelho' em tupi-guarani.

 

O jaguapitã possui um par de olhos de ouro raiados de sangue e é como se coubesse neles uma impossível paisagem.

 

[...] Os kadiuéus, ainda segundo o sertanista, têm no jaguapitã uma fé cega — dessas que amolam a faca até o fio cortar o vento. Nem poderia ser de outro modo — ele, o jaguapitã, é, já em si, o alimento e o motor da Fé, pois só aparece para quem está necessitado Dela, sobretudo aos índios que, acometidos de irremediável engano, acabam abandonando a tribo e se enfurnando nos perdidos da Floresta — batidos de susto e grito (BUENO, 1999, p. 69-70).

Se Praga foi tensão para Kafka, Jaquapitã parece ter sido tensão para Bueno: a paisagem (im)possível da aproximação e do contacto entre o europeu e o autóctone, geradora de te(n)sões procriativas e assassinas, como lemos em outras obras de Bueno — a título de exemplo, Cristal e Meu tio Roseno, a Cavalo. Porém, isso é tema para outro ensaio. Voltemos, pois, à Copista.

Em meio a risos de lado, Felice não deixa de (a)notar a capacidade de Franz em escrever apesar da catástrofe da guerra (a Primeira Guerra) que assola a Europa e das frequentes manifestações de anti-semitismo. Ainda que não perceba, a Copista é arguta o suficiente para narrar que o medo de Franz salta das páginas de seus contos na forma alegórica de bestas:

Outro monstro saltou-me das páginas do manuscrito — o 'Angst'1, peludo e cheio de espinhos, espelho sonambúlico, tenho certeza, da sombra que sobre Franz desce toda a vez que acorda e divisa o futuro do seu dia feito uma inenarrável catástrofe. O 'Angst', permite sucinto diário, fede, com todas as letras, FEDE... (BUENO, 2007, p. 77).

         Apesar de Felice escrever que a catástrofe é inenarrável, o primeiro conto de A Copista de Kafka desmente a assertiva. Em Zbwsk visões da catástrofe e do medo projetam-se na descrição que Zbwsk faz de si mesmo, faxineiro obsessivo nas madrugadas frias da casa da tia Ludmila e seus filhos autoritários:

 

Filho do abandono e do medo, sou algo, aquilo que restou sozinho no mundo. Por isso, meu nome é Zbwsk e choro à noite, todas as noites, no quarto desta pequena cidade gótica [...]

 

[...] como me chamo Zbwsk — e este é o meu maior anátema —, vejo-me forçado a levantar pelas madrugadas frias e, dirigindo-me, pé ante pé, ao porão, dali tirar o pano de chão e o balde. [...] Esfrego e esfrego — sempre temeroso de que alguém acorde no meio da noite e me flagre na faina repetitiva e abominável (BUENO, 2007, p. 12-13).

 

         Em Homens em Tempos Sombrios, especificamente no ensaio sobre Walter Benjamin, Hannah Arendt dedica algumas páginas à obra de Kafka. Ao citar trecho de carta do escritor ao amigo Brod, a filósofa conclui:

 

[...] o desespero aqui se converteu antes em 'um inimigo da vida e do escrever; o escrever aqui era apenas uma moratória, como para alguém que escreve seu testamento logo antes de se enforcar' [carta de Kafka a Brod] (ARENDT, 1987, p. 159).

 

         Se a escrita tem seu quê de lascívia, de luxúria, tanto em Kafka quanto em A Copista de Kafka esses estados são tomados como culpados, por se manifestarem em meio à dor de um mundo em convulsão não orgiástica, mas caótica, manifestação da barbárie que reprime a narração, como propõe Benjamin em seu ensaio O Narrador: como contar experiências explosivas, de corpos estilhaçados pela ação bélica de uma modernidade que prometia o progresso e a salvação do homem? (cf. BENJAMIN, 1986). O escritor/o poeta deve ser castigado, como no conto "O Lascivo":

 

Num remoto harém dos contos das mil e uma noites, o poeta El Rachid Al-Saad foi assassinado de forma até hoje misteriosa.

Uns dizem que, pasmo de êxtase ante a beleza nua da mais bela virgem do Reino, tombou vencido; [...] e outros ainda a debitar a sua morte súbita à hora em que, do orgasmo, conhecera um gozo além, muito além do orgasmo. E que logo as Bruxas nomearam de Luxúria e passaram a coibir sua prática, jogando sobre os amantes água fervente (BUENO, 2007, p. 121).

 

         Luxúria e lascívia se misturam no conto citado. O poeta é tomado por elas, metamorfoseando-se em morte, resultado da sanção por ter, ou contemplado a beleza perfeita, ou por ter experimentado o gozo mais intenso. São, que o leitor compreenda, percepções alegóricas do que pode acontecer com aquele que se arrisca no terreno da escrita mais intensa, experiência do náufrago que se vê afundando e não se furta a enviar sinais que não lhe salvarão a vida, porém, poderão salvar a vida de muitos outros. São também experiência do absurdo de como o deslocamento e a transformação não são tomados como uma dinâmica da vida, mas como atitudes questionáveis pelo ranço de costumes e de tradições que se cristalizaram. É o Lenhador, tomado pela lepra, criado na crença e na esperança das graças de Deus, que carcomido não somente no corpo que arde, mas sobretudo na alma que busca Deus, só ouve o seu próprio lamento descrente:

 

Longe, muito longe, a Floresta ao vento da noite uivava. Sombrio e breu o coração do Lenhador parece ficou ainda mais pequeno. O corpo todo ardia — as purulentas escaras da peste o consumiam. Por uma nesga de céu, entre altos muros, ainda pôde inquirir do Deus os seus horrores e pesadelos. Por quê? Por quê? Por que a morte e o fim? (BUENO, 2007, p. 35).

 

         Wilson Bueno conseguiu em A Copista de Kafka penetrar na obra de Kafka, para criar a sua própria manifestação literária do absurdo, da catástrofe, do medo, a morte. É o dente sem função "dental", posto que caído (ou arrancado?) da boca de seu dono e guardado em uma gaveta de cômoda, esperando que a neve pese "[...] tanto sobre o telhado que os da casa temem continuamente que ele ceda e nos soterre a todos — para sempre" (BUENO, 2007, p. 58).

Ou como escreveu Kafka em seus Diários, em apontamento de 19 de outubro de 1921, e citado em Hannah Arendt (1987, p. 148):

 

A pessoa que não consegue enfrentar a vida sempre precisa, enquanto viva, de uma mão para afastar um pouco de seu desespero pelo seu destino ... mas com sua outra mão ela pode anotar o que vê entre as ruínas, pois vê mais coisas, e diferentes, do que as outras; afinal, está morto durante sua vida e é o verdadeiro sobrevivente.

 

 

 

Nota

 

1Die Angst: substantivo feminino alemão que pode significar: medo, receio, angústia, pavor, ansiedade. Reconhece a sensação que se tem diante de conflitos e de situações tomadas do ponto de vista emocional. Distingue-se do substantivo feminino die Furcht, que reconhece o medo, o receio de algo materializado em uma ameaça real. Angst pode ser comparável à expressão latina angǔstia, que significa ansiedade ou aflição intensa. Em tempo: as distinções aqui estabelecidas são fruto de várias leituras feitas ao longo de anos, dentre elas: dicionários de língua alemã; alguns dos ensaios de Freud; textos vários de Vilém Flusser; e As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões, de Paulo César de Souza. Nossa intenção, aqui, é tão somente mostrar uma possibilidade de vislumbrar o animal / o monstro Angst criado por Bueno.

 

 

 

Referências

 

 

ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

 

BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _______. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

 

BUENO, Wilson. A Copista de Kafka. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007.

 

_______. Jardim Zoológico. São Paulo: Iluminuras, 1999.

 

FLUSSER, Vilém. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007. (Coleção Comunicações).

 

IRMEN, Friedrich. Taschenwörterbuch der Portugiesischen und Deutschen Sprache. Berlin: Langenscheidt, [s.d.]. (Erster Teil – Portugiesisch-Deutsch).

 

 
 
março, 2011
 
 
 
 

 

Rosana Cristina Zanelatto Santos é Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. É doutora em Letras (Literatura Portuguesa) pela USP. Atualmente é professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Publicou o livro A argumentação no horizonte da acusação e da defesa — o caso Inês de Castro na tragédia de António Ferreira (Ed. UFMS, 2007); organizou, juntamente com Maria Adélia Menegazzo e Rafael Maldonado, Marco cultural: questões contemporâneas em debate (Ed. UFMS, 2008). Organizou, ainda, a coletânea Nas trilhas de Barros: rastros de Manoel (Ed. UFMS, 2009) com ensaios sobre a obra de Manoel de Barros.