A bicicleta

 

 

Não. O tempo não estava no movimento. Ele pensava. O tempo estava na bicicleta. Imóvel encostada ao muro.

Sim. O movimento era apenas ilusório, o tempo era além dele. Era imobilidade. Sim.

O muro estático e a bicicleta plantada em suas costas. Sustentação tácita. Amparo. O verbo já não existia. O verbo era distância. De fundo o azul chumbo de um céu imóvel como o tempo. Assim como ele. Estático.

Os aros da roda já não deliravam pelas estradas, mas uma massa de tempo enlouquecida se embrenhava imperceptível por eles. Silencioso enroscava-se no metal da bicicleta, retorcia-o. E ele percebia.

O tempo estava. Antes do movimento. Antes do verbo. Antes da representação do movimento. Antes da representação da fala. Ele.

Os pensamentos tentavam se constituir, mas a densidade temporal era anti-constitucional, e os pensamentos e também os sentimentos mesclavam-se em mechas de tempo e no metal da bicicleta e no barro do muro e na carne que era dele.

Então chorou. Silenciosa a lágrima percorreu pele e carne e porosidades e espaços e lembranças. E fez-se memória e apagou-se-extinguindo-se no silêncio da terra. E não houve outra.

Só a bicicleta muda. E dizia tanto. E gritava tão alto. E o muro permanecia além do próprio muro,visto que agora era lembrança. E também a bicicleta. Verde. Não o muro. Este cinza e velho. Como ele.

Cinza e velho ele percebia o tempo, e a bicicleta e o muro. E se tudo era símbolo. Era ele símbolo. Fechou a mão lentamente e pode sentir o tempo pulsando dentro, e afundar-se na carne e mergulhar pra dentro do corpo. E tudo pulsava e tudo era quente.

Tudo era quente no silêncio da bicicleta.

O movimento já não era necessário. Assim como o muro resolvera ficar. Coisificar-se no tempo. Plantar-se.

Achava que os outros viam por janelas. Ele via fora de casa. Via tudo. E tudo era a bicicleta e o muro. Não havia ilusão, não havia ângulos, só a bicicleta e o muro pendurados no tempo, emoldurados no tempo. De onde estava ainda via os rostos pálidos das gentes que passavam pelas janelas. Viam a delimitação da janela, o limite do olhar e a ilusão do movimento. Não viam nada.

E foi tudo o que viram. Todos eles: um velho sentado em frente a uma antiga bicicleta escorada a um muro ainda mais antigo que o velho. E só.
 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 

Homem Sentado

 

 

Engolia todas as dores. E já se acostumara. Não havia dor que não estivesse acostumado a engolir. Todas. Friamente às engolia. Às vezes mastigava-as. Lentamente. Tudo ao seu redor era lento. Denso. Tudo era denso. Densidades estratificantes que lhe cobriam, envolviam em camadas. Como uma cebola. Não comia cebolas.

Os movimentos eram raros, da cama ao assento frente a parede que não se abria em janela, mas que se fechava em parede. E mesmo assim, seus olhos paravam ali. No espaço que só o olho do homem sentado conseguia ver. Ver? Seria uma frincha? Existiria a possibilidade de o olho buscar e se esgueirar pelos interstícios invisíveis e "impossíveis" da parede?

Comia dores e bebia chimarrão. Amargo e quente. E não escuta o rádio. Mas sempre ligava o aparelho. Uma estação além das vozes chiava dialetos singulares e vetustos. E seus olhos por breves instantes pareciam brilhar.

O tempo era impreciso, já não era possível determinar se era presa de Kronos ou Aion, ou se decidira deixar o corpo para um e o resto para o outro. Mas parecia que já havia preenchido seu quinhão de real com várias toneladas de memória e delírio.

Pelo substantivo louco, era definido pela família. Nunca apareciam, mas pagavam uma funcionária para limpara o pequeno apartamento. Ela chegava lépida, faceira, pequenas e infames piadinhas nos lábios, barriga volumosa e satisfeita, espantando fantasmas e poeira com seu espanador encantado.

Ele ordenava a sua máscara que forçasse um sorriso. Cordialidade. E o que saia era uma careta engraçada que fazia a mulher sorrir e dizer mais besteiras.

A funcionária era um vento. E soprava  com força todo o silêncio e a solidão do espaço do homem, mas quando saia, a gravidade puxava-os para baixo. E ele realmente não sabia se gostava do agora ou do antes.

"O que estás vendo?" às vezes a mulher perguntava e ele respondia que via a cidade da memória. E ela ria. Aquecia mais água para a térmica, perguntava se ele não queria trocar a erva. "Uma carteira de cigarro" ele dizia, mais que pedia. "Eles disseram que você não pode fumar" e ele sorria. E ela trazia a carteira e ele incendiava o lugar. O fósforo incandescente por segundos frente aos olhos e em seguida a fumaça se esvaindo e abraçando o ar em valsa erótica. Lascívia. "Eles se amam" ele dizia. "Quem?" perguntava a mulher. "A fumaça e o ar". A gargalhada era dela, o silêncio dele. "Você é esquisito mesmo, hein?". "É", dizia o verbo pensando na conjunção "e". Esse era o problema. A finitude das coisas e de si mesmo começavam a lhe causar estranhamentos. Gostaria de se ligar a outra oração, acrescentar eternamente. O meio das coisas. O verbo ser. A palavra "é" definia, estagnava e prendia tudo o que não deveria ser nas estruturas  sedimentares do "é". O ser.

Ria dessa suposta unidade. E se esvaia em fumaça. E dissolvido em névoa, qual vampiro, perdia-se inteiramente pelas frestas do seu corpo real e organizado.

 

 
 

No Espelho

 

 

Um sorriso que não era; abriu-se triste em rosto indefinido.

Reflexo, imagem, espectro.

O sorriso já não era. Distante até mesmo do seu sarcasmo.

Só o desenho de sua carne refletida em olhos, boca, cabelo e dúvidas.

Imagem. Interpretação.

A mão procura a boca, e no espelho não há textura, espessura, tato.

Lentamente ergue o braço. Ela conseguiu. Fizera o que ninguém mais fizera.

A mão treme. O braço pesa.

No aço do espelho observa o espaço que a resumiu. A redução do corpo. Alguns livros; linhas de fuga, frestas e buracos na estrutura quase hermética do lugar; cadeiras, mesas, quadros — mais linhas de fugas — cada olho, cada rosto remetia a um outro que não ela, deslocamentos possíveis — exercícios necessários...

Ereta confrontando e confrontada por si mesma... e todas as outras que sabia que era, o olho traçava linhas invisíveis que a costurava magicamente ao seu outro. Ao ser outro.

Frente a frente os "eus" de cada uma se observavam. A concretude de uma e a efemeridade da outra... a realidade das duas. Multiplicidades.

A imobilidade de ambas. Metamorfose, simbiose da carne e do reflexo. Da criatura e do criador. Da luz e da sombra. Quem seria a sombra?

Ela conseguiu. Era o que o cérebro aquém do espelho pensava. Possibilidade.

No rosto as rugas em seus entrecruzamentos matemáticos prometiam números elevados. Os cabelos de um preto falecido lembravam infâncias distantes, sonhos...

Pensou na morte do reflexo. De tudo que era reflexo...

Gostaria de tomar um chá. Sentar à mesa de Hatta e Haigha em março e enlouquecer tentando descobrir porque um corvo se parece com uma escrivaninha.

Do outro lado a que não era sorri, grande sorriso único, solitário, zombeteiro sorriso de Cheshire: "Se não sabes para onde vais, qualquer caminho te levará lá".

Lembrou da menina.

Onde andava Alice? 

  

 

 

 

(imagem ©aurelio asiain)

 

 

 

  

 

Ronie Von Rosa Martins. Professor de Português/Inglês em Pedro Osório/Cerrito/RS. É pós-graduado em Literatura Contemporânea Brasileira (UFPEL) e pós-graduado em Linguagens Verbais Visuais e suas Tecnologias (IFSUL). Seus textos estão publicados em várias revistas literárias como Cronópios, Revista Capitu, Portal Literal, Paralelo 30, Revista Entrementes, Letras et Cetera, Verbo 21 e MeioTom, entre outras.