A narração como intercâmbio de experiências

 

    Walter Benjamin, no ensaio "O narrador, considerações sobre a obra de Nicolai Leskov", faz a seguinte afirmação: "Por mais familiar que seja o seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais" (1994, p. 197). A contundência nesse vaticínio do pensador alemão se justifica na compreensão que ele tem do que seja narração: narrar é socializar experiências. Nesse sentido, para Benjamin, "É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente" (1994, p. 197).

    Não há como discordar de Benjamin, quando ele associa a capacidade de narrar à capacidade de "intercambiar experiências" (1994, p. 198) e lançamos os olhos para a pobreza de experiências que vivenciamos na atualidade. Essa situação se complica quando observamos a data em que ensaio foi escrito: 1936. De lá para cá, o estado de penúria de experiências significativas só se agudizou, nas palavras dele, "(...) da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis" (1994, p. 198).

    Ainda assim, Benjamin consegue encontrar uma luz no fim do túnel na busca de alguém que possua as virtudes de um autêntico narrador. Tais virtudes ele vai vislumbrar no escritor russo Nicolai Leskov (1831-1895) — contemporâneo de Leon Tolstoi (1828-1910) e de Fiodor Dostoievski (1821-1881) — que segundo ele, "Vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele" (1994, p. 197).

São justamente esses traços grandes e simples, como veremos a seguir, que caracterizam Leskov como um grande narrador que vamos encontrar também em João Guimarães Rosa, contrariando a tese de Benjamin, de que a possibilidade da existência de uma narração que se consubstancie em experiências intercambiáveis esteja esgotada nos tempos hodiernos.

 

 

Tipos fundamentais de narrador: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante

 

Benjamin afirma que a fonte primordial em que se abastecem os grandes narradores para a composição de suas fabulações são as experiências socializadas de pessoa a pessoa.  E, segundo ele, "(...) entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos narradores anônimos" (1994, p. 198).

Essa primeira característica de uma boa narrativa, ou seja, a que mais se aproxima das histórias orais é uma das maiores celebrações feitas à obra de Guimarães Rosa. Para Nunes,

 

Já observara Mary L. Daniel que a maioria das histórias de Guimarães Rosa e Grande sertão: veredas são estruturadas em forma de narrativa oral. Trata-se, portanto, como bem lembrou Walnice Nogueira Galvão, de uma oralidade ficta, "criada a partir de modelos orais mediante a palavra escrita" (1983, p. 192-193).

 

Entre os narradores anônimos, Benjamin elege dois tipos fundamentais e que segundo ele se "(..) interpenetram de múltiplas maneiras" (1994, p. 198): o marinheiro viajante e o camponês sedentário. Quem viaja muito tem sempre muitas histórias para contar e mais ainda experiências para dividir, mas não se pode negar também que quem nunca viajou é um grande depositário das narrativas e das tradições de onde permaneceu. Para Benjamin cada um desses tipos são os ancestrais de duas grandes famílias de narradores que ao longo da história da humanidade deram cores e nuances às suas próprias singularidades. No entanto, ainda que tenham prevalecido características autóctones ou alóctones em suas narrativas, é necessário considerar, segundo Benjamin, que sua permanência só se justifica pela "(...) interpenetração desses dois tipos arcaicos" (1994, p. 199), reintegrados na figura do artífice, a partir do sistema corporativo medieval.  Para Benjamin,

 

Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres na arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário (1994, p. 199)

 

Leskov reuniu, para Benjamin, as figuras do camponês e do marinheiro em sua obra, tornando-se, assim, um artífice da arte de narrar. Como afirma o filósofo frankfurtiano, "Leskov está à vontade tanto na distância espacial como na distância temporal" (1994, p. 199), em outras palavras, por ter exercido, durante algum tempo, cargos oficiais em sua terra natal, conhecia muito as condições que a mesma se encontrava, mas por ter sido, logo após e durante longa carreira, funcionário de uma empresa inglesa, alcançou a possibilidade de viajar por toda Rússia, tendo a oportunidade de lançar outro ponto de vista sobre a região em que vivia. "(...) essas viagens enriqueceram tanto a sua experiência do mundo como seus conhecimentos sobre as condições russas" (1994, p. 199), afirma Benjamin.

Tendo nascido em Cordisburgo, Minas Gerais, e passado a infância nessa pequena cidadezinha de nome curioso ("cidade do coração") e na fazenda de seus pais, Guimarães Rosa desde cedo já convivia com vaqueiros, andarilhos e pregadores ambulantes, narradores orais, por excelência, de lendas, mitos, canções e contos folclóricos. Já na juventude foi estudar na capital, Belo Horizonte, iniciando nessa mesma cidade, os estudos em medicina. Formado, trabalhou como médico em outra cidade interiorana, Itaguara, por dois anos. Em 1930, alistou-se como médico voluntário nas tropas rebeldes de Getúlio Vargas, aderindo, em 1932, ao exército legalista, após descobrir o intento dos insurgentes: suprimir a nova legislação social. Tendo abandonado a profissão de médico pelas frustrações que a falta de recursos impingia, iniciou a carreira de diplomata, servindo em vários países como cônsul. Numa dessas oportunidades, colaborou ativamente no asilo de judeus perseguidos pelos nazistas. Só no ano de 1946 é que, de fato, Guimarães Rosa inicia a sua carreira de escritor, com o lançamento do livro de contos Sagarana.

A partir dessa biografia apresentada de forma sucinta, é possível compreender porque Guimarães Rosa deve ser alçado à condição de um artífice da palavra ou um mestre na arte de narrar, segundo o cânone de Walter Benjamin. A experiência acumulada por suas vivências da infância na pequena Cordisburgo; como estudante interiorano na capital; como médico que conheceu as dificuldades em tentar auxiliar e não possuir os recursos necessários; como soldado que sentiu de perto as vicissitudes da guerra; como diplomata que teve a oportunidade de conhecer outra culturas e de contribuir na solução de questões limites internacionais, culminou na realização de uma obra literária que, sem dúvida nenhuma, possui uma grande riqueza de "experiência comunicável", como quer Benjamin. Nas palavras de Rosa,

 

Chegamos (...) ao ponto que indica o momento em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médio, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte... (in LORENZ, 1973, p. 323)

 

Além dessas experiências na constituição de seu ser escritor, Rosa faz questão de ressaltar outras, "Mas essas três experiências formaram até agora o meu mundo interior; e, para que isto não pareça demasiadamente simples, queria acrescentar que também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com os cavalos, vacas, religiões e idiomas1" (1973, p. 323).

 

 

O bom narrador é um sábio conselheiro

 

  Se narrar é intercambiar experiências, é de supor que tais experiências intercambiadas sejam prenhes de ensinamentos, de bons conselhos, enfim, de uma sabedoria que se quer compartilhada.  É o que Benjamin vai chamar de senso prático que todo bom narrador deve possuir,

 

Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos (1994, p. 200).

 

No entanto, Benjamin trata logo de problematizar a noção de "conselho" para evitar a armadilha do esvaziamento vivenciado pelo termo. Ele diz que, se dar conselhos hoje é um gesto ultrapassado, é justamente pelo fato de as experiências não terem tido a capacidade de ser converterem em situações narráveis, comunicáveis, em virtude da insuficiência de vitalidade e, em decorrência, de sentido que as mesmas padecem. "Em consequência, diz Benjamin, não podemos dar conselho nem a nós mesmos nem aos outros" (1994, p. 200). O que é, então, dar conselho? Para ele, "Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão  sobre a continuação de uma história que está sendo narrada" (1994, p. 200).  Dessa forma, continua ele, "O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria o lado épico da verdade está em extinção" (1994, p. 200-201). Para Nunes (1983), o epos (donde épico), é o ciclo de aventuras narradas, mas as aventuras narradas conduzem a uma verdade que precisa ser interpretada a partir do que se narrou, donde a exigência de quem ouve a narrativa buscar compreender  o que está sendo aconselhado, ou buscar a sabedoria, a verdade épica oculta na aventura narrada. Ou, em sentido benjaminiano, dar sequência à história ouvida.

Para dar dois exemplos da presença da verdade épica na obra de Guimarães Rosa, citaremos, o caso do Aleixo e algumas sentenças ou máximas, ambas presentes em Grande Sertão: Veredas (GS:V).

O caso — segundo Nunes, "(...) questão embaraçosa ou dilemática que exige resposta da parte de quem pode ou tem o dever de decidir" (1983, p. 193) — do Aleixo, um dos vários de GS:V, é narrado assim:

 

Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide — tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte — o que não sei é se foram todos de uma vez, ou um logo e logo outro e outro — eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha — três meninos e uma menina — todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo — agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas as sua horas da noite e do dia. Parece até que ficou feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?! (ROSA, p. 28-29).

 

A pergunta final de Riobaldo, protagonista-narrador de GS:V, é lançada para o seu interlocutor invisível, mas como não pensar que ela também se dirige para o leitor que agora se encontra perplexo, imerso em especulações?

Quanto às sentenças ou máximas, que segundo Nunes,

 

Ocorrem, aqui e ali, respeitando o teor conclusivo das sentenças proverbiais, e até observando a qualidade relevante característica dessa forma, sintática e ritmicamente acentuada, esses pronunciamentos categóricos, dos quais o personagem parece ser, por vezes, o transmissor, repetindo ou transformando conceitos quer seriam parte de uma linguagem coletiva (...) (1983, p. 195).

 

Enumeramos as seguintes:

 

Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais... (ROSA, 2001, p. 623).

 

As horas é que formam o longe (ROSA, 2001, p. 604).

Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo (ROSA, 2001, p. 601).

Eu sei: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade (ROSA, 2001, p. 568).

Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem (ROSA, 2001, p. 567).

Sossego traz desejos (ROSA, 2001, p. 540).

choca mal, quem sai do ninho (ROSA, 2001, p. 530).

 

 

Toda essa sabedoria épica, aqui ilustrada de forma ínfima, fazem de Guimarães Rosa, um grande conselheiro. Um conselheiro que não se constituiu pelo papel, mas pelas experiências humanas e mundanas ao longo de sua história de vida.

 

 

O surgimento do romance é a ruína da narrativa?

 

Neste tópico está talvez o aspecto mais controvertido e polêmico do ensaio de Benjamin, que fez com que nos sentíssemos desafiados a escrever esse artigo para problematizar essa questão, tendo em vista, evidentemente, as considerações já feitas por nós  acerca do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, a partir das características apontadas pelo teórico crítico alemão plasmadoras do autêntico narrador.

Benjamin faz a seguinte declaração:

 

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. (...). A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as formas de prosa — contos de fada, lendas e mesmo novelas — é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los (1994, p. 201).

 

Perguntamo-nos, mesmo correndo o risco de incorrer na mais rasa estupidez, como Benjamin teve acesso a Leskov?  O filósofo estava com três anos de idade quando o narrador russo faleceu, portanto, não foi pessoalmente que o encontro entre ambos se deu. Benjamin acedeu a Leskov através de sua obra escrita. Não duvidamos que a obra do escritor russo assegure todos os elementos da narrativa oral, porém, Benjamin foi capaz de escrever sobre ela depois de a ter lido e não de a ter ouvido. A confirmação dessa insolente argumentação está na nota de rodapé com que Benjamin introduz alguns esclarecimentos sobre Leskov, no início de seu ensaio, vamos a ela:

 

Nicolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895, em S. Petesburgo. Por seus interesses e simpatias pelos camponeses tem certas afinidades com Tostoi, e por sua orientação religiosa, com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra são exatamente aqueles em que suas tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária — os primeiros romances. A significação de Leskov está em suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve várias tentativas de difundir essas narrativas nos países de língua alemã. Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Muller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleção em nove volumes da editora C. H. Beck (grifos nossos, 1994, p. 197)

 

Por mais que Benjamin afirme que a característica fundamental do romance é o fato deste estar vinculado ao livro, é preciso considerar dois aspectos: estar no livro significa a opção de um registro que tanto pode ser o romance de Rosa ou as narrativas de Leskov. O livro, objeto que resguarda a escrita, mas que se abre à leitura, não fala — e aqui nos referimos, assim como Benjamin, às autênticas obras literárias — de uma realidade feita de papel impresso, mas de uma realidade constituída de experiências humanas e mundanas transfiguradas em palavras escritas, que se converterão em elementos instigadores ou não para outra e novas experiências para quem as ler ou  as ouvir.

Outro elemento questionável na argumentação de Benjamin é a afirmação de que o romance não advém da tradição oral nem contribui para o seu enriquecimento. É possível falar mesmo hoje de vários tipos de realizações romanescas, de experimentos narrativos que, de fato, se distanciam de uma expectação oral tradicional. Mas também não é verdadeiro afirmar que essa característica seja a realidade de todos os romances. Para o autor que aqui nos interessa, Guimarães Rosa, a tradição oral é mesmo um fundamento na constituição do conjunto de sua obra literária, nas palavras dele, "Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só" (in LORENZ, 1973, p. 339). As suas narrativas estão recheadas de mitos, contos, adivinhas, sentenças, canções populares recolhidas de suas viagens pelo sertão de Minas Gerais, reproduzidas pelas falas e ações de seus personagens, um corpo de baile formado por crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas, capangas, jagunços, videntes, vaqueiros, "(...) num teatro em que não há separação entre palco e platéia. O autor e as personagens nunca são completamente distintos" (RÓNAI, 2001, p. 18).

Por esse motivo também é que não é justo afirmar que o romancista segrega-se, não podendo nem receber e nem dar conselhos. Ao escrever sua obra, o autor não parte de outro lugar a não ser deste em que o ser humano trava as suas lutas, constrói os seus sonhos e anseia por suas utopias; em que busca o sentido para si, para os outros e para o mundo em que vive. Uma vez a obra realizada e difundida preocupação essa mencionada por Benjamin quando, na nota de rodapé, fala das tentativas de difusão das narrativas de Leskov nos países de língua alemã , ela se converte em rara fonte de conhecimento, pois possui sua própria lógica labiríntica, feita de luzes e sombras, de fronteiras visíveis e invisíveis, que a tocha às vezes intensa, às vezes bruxuleante da interpretação ora orientada, ora extraviada busca iluminar. Como diz Benjamin fazendo a sua fundamental distinção entre a narrativa e o romance, atribuindo a este o "sentido da vida" e àquela "a moral da hitória" "O romance (...) não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido da vida" (1994, p. 213).

A nosso ver, aí reside, de forma ambígua e irresisistível, a fraqueza e a força do romance: a verdade épica nele velada é fruto de uma tessitura que envolve estética, sentimento e percepção, portanto, uma sutileza que não ousa conceituar, mas sugerir, indicar, dispor, e, dessa forma, comunicar experiências.

E nesse aspecto, Guimarães Rosa pode ser alçado ao panteão dos grandes narradores da literatura mundial, porque, justamente partindo do sertão de Minas, alcança elementos arquetípicos e característicos de toda a humanidade, fazendo com que suas narrativas tenham um alcance universal, haja vista a quantidade de línguas para as quais a sua obra já recebeu tradução.

 

 

 

Nota

 

1 Guimarães Rosa falava português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano. Possuía conhecimento suficiente para ler em latim, grego clássico, grego moderno, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e malaio.

 

 

Referências

 

BENJAMIN, Walter. O narrador, considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.  pp. 197-221.  (Obras escolhidas; v.1). (Trad. Sérgio Paulo Rouanet).

 

LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. São Paulo: E.P.U., 1973. (trad. Rosemary Costhek Abílio e Fredy de Souza Rodrigues).

 

NUNES, Benedito. Literatura e filosofia: (Grande sertão: veredas). In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura e suas fontes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

 

RÓNAI, Paulo. Rondando os segredos de Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Noites do sertão (Corpo de baile). 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

 

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 

 

 

 

março, 2010