©eliége jachini
 
 
 
 
 
 
 
 

"Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar —

tem uma coisa! —: eu vejo é o puro tempo vindo de

baixo, quieto mole, como a enchente duma água...

Tempo é a vida da morte: imperfeição".

João Guimarães Rosa

 

Vencido o primeiro momento da fundação do Universo — o Caos1 primordial — a mitologia grega alcança um estágio intermediário em que Úrano — o Céu, reúne-se em núpcias divinas a Géia — a Terra, de cujo relacionamento, nascem os Titãs, as Titânidas, os Ciclopes2 e os Hecatonquiros3 (BRANDÃO, 1986).

Porém, mais que uma constituição filial, a semanticidade dessa reunião entre o Céu e a Terra deu frutos mais predicativos

 

A união de Úrano e Géia é o que se denomina uma hierogamia, um casamento sagrado, cujo objetivo precípuo é a fertilidade da mulher, dos animais e da terra (BRANDÃO, 1986, p. 195).

 

O que ocorreu, então, não foi somente um casamento entre deuses, mas uma verdadeira comunhão entre estes e os homens, entre os eventos astrais e os telúricos. Os humanos foram, assim, os grandes favorecidos por essa força demiúrgica convertida em prosperidade e felicidade, ao mesmo tempo, sagrada e terrena. Encontramos uma bela passagem em Lukács, que descreve essa ambiência característica do que ele chamou de "culturas fechadas",

 

Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina. Tudo lhe é novo e no entanto familiar, aventuroso e no entanto próprio. O mundo é vasto, e no entanto é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da mesma essência que as estrelas; distinguem-se eles nitidamente, o mundo e o eu, a luz e o fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios um ao outro, pois o fogo é a alma de toda a luz e de luz veste-se todo fogo. Todo ato da alma torna-se, pois, significativo e integrado nessa dualidade: perfeito no sentido e perfeito para os sentidos; integrado, porque a alma repousa em si durante a ação; integrado, porque seu ato desprende-se dela e, tornado em si mesmo, encontra um centro próprio e traça a seu redor uma circunferência fechada (LUKÁCS, 2000, p. 25).

 

Mas essa harmonia não havia mesmo que durar, sobretudo, tratando-se de deuses tão inconstantes e belicistas, como eram aqueles que habitavam os céus da Grécia clássica.

Entre os Titãs concebidos por Úrano e Géia estava Cronos ou Crono. Pela etimologia, Cronos não provém do grego Khrónos, que significa Tempo. É semanticamente que este Titã associar-se-á a este conceito impalpável, imponderável e inelutável, que nenhum ser humano logrou definir, mas que também não se recusa em buscar seu sentido: a temporalidade.

Úrano, mal nasciam seus filhos, encerrava-os, outra vez, no útero de Géia, pois temia que algum deles lhe roubasse o poder. A mãe Terra, então, decidiu pela liberdade de ir e vir de seus filhos, exortando-os, inclusive, que enfrentassem o pai em pé de igualdade. Cinco deles capitularam. Só um, justamente o mais jovem, Cronos, encheu-se de destemor, e foi enfrentar o temível Úrano. Armado de uma poderosa foice, providenciada pela própria mãe, o filho caçula tomado de ódio, decepou o pênis do pai, quando este, com ela copulava. Com este gesto parricida, Cronos liberta a si e seus irmãos e concede vingança à sua genitora. Ao mesmo tempo, Com esta mutilação peniana, Cronos instaura uma nova ordem na relação entre os deuses e os homens, pois, de agora para diante, o Céu separava-se definitavamente da Terra, cindindo a harmonia outrora alcançada entre o divino e o humano. Cronos rouba, então, o poder ao pai e casa-se com Réia4.

Uma vez governante, Cronos tornou-se tão déspota quanto o seu genitor. Temeroso em ser destronado pelas outras entidades concebidas por Úrano e Géia, os Ciclopes e os Hecatonquiros, lança-as às trevas abismais do Tártaro5. Sabedor de uma predição sobre o seu próprio destino, revelada por sua mãe, de que seria destruído por um de seus filhos, Cronos resolve devorar cada um deles, assim que vêm ao mundo. Pela intervenção de Réia, um deles escapa a este fado, Zeus, nascido de maneira ocultada, na ilha de Creta. Desta forma, "Crono devora, ao mesmo tempo que gera; mutilando a Úrano, estanca as fontes da vida, mas torna-se ele próprio uma fonte, fecundando Réia" (Brandão, 1986, p. 198).

É fundamental somar-se a essas características de Cronos, como o encarnador da simbologia do Tempo, a sua condição de Titã, mobilizadora do modus vivendi da nova relação dos humanos com os deuses.

Os Titãs, segundo Brandão (1986), representam as forças violentas e elementares da Terra em oposição a diafaneidade do mundo espiritual. Gananciosos, iracundos e revoltados, são adversários contumazes da espiritualidade consciente. Tendo como meta a condição de dominadores e de déspotas, os Titãs romperão definitivamente com a harmonização entre as entidades divinas e os homens.

Diante deste quadro, é à solidão que a humanidade é lançada. Não podendo contar com a benevolência e com a amizade dos deuses, os homens terão que conquistar seu quinhão existencial, à custa de suas próprias mãos. No entanto, sobreviverá sempre em suas mentes, a boa lembrança de uma antiga harmonia com as divindades e, amparados por esta memória atávica que não se esvai, eles continuarão a crer que, por trás deste deus titânico, armado de uma foice e com os dentes limados, há de vir um outro que irá vingá-los e remi-los.

Por uma distensão semântica, Cronos simbolizará as aparências angustiantes do Tempo, "(...) são os tempos, travessia da gente?" (GSV, p. 418). O seu aspecto devorador é uma sobrederteminação teriomórfica que imprimirá em sua face uma aparência bestial: um monstro de dentes afiados sempre à espreita de suas vítimas. O fato de ter arremessado seus irmãos do alto de um abismo, o identificará às imagens catamórficas da vertigem e da queda, causadas pela passagem irrevogável das horas, dos dias, dos meses e dos anos, "(...) não sabia que a vida era do tamanhinho só menos de que um minuto..." (GSV, p. 486). As trevas, de que se compõem as profundezas do Tártaro, dar-lhe-ão um aspecto obscuro, tenebroso, indevassável, caracteres estes que dão substância às imagens nictomórficas.

Isomorficamente, em Grande Sertão: Veredas, Cronos ganhará uma nova faceta. Surpreendentemente, a temporalidade com a qual Cronos afia a foice e lima os dentes se adensará em espacialidade, reconfigurando-se no ambiente físico e metafísico em que a narrativa rosiana escorre: o Sertão. Desta maneira, a simbologia teriomórfica presente no Sertão terá no esquema do animado, a sua manifestação fundamental.

Há um movimento reinante no ambiente sertanejo, "Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente..." (GSV, p. 538) — seja motivado por sua diversidade topográfica, composta de terras altas e baixas, florestas densas e áridos desertos, finíssimos córregos e longos e caudalosos rios; seja pela composição bizarra de sua fauna, com a presença de rastejadores peçonhentos, voadores multicores, galopantes equinos e mugidores cornudos; seja pela presença de um sortimento de singulares tipos humanos que nele trafegam: fazendeiros, jagunços, prostitutas, loucos, cantadores, negociantes, bugres, soldados, contadores de estórias; seja, enfim, pela atmosfera mítica, mística, religiosa, violenta, benfazeja, poética que o envolve — que faz deste espaço geográfico, um espaço vivo, pulsante, um imensurável animal desdobrando-se sobre si mesmo, em movimentos intempestivos, ruidosos e terrificantes, "(...) o sertão está movimentante todo-tempo — salvo que o senhor não vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos..." (GSV, p. 533).

Embora este movimento, em seu aspecto temporal, não seja alcançável pela percepção humana, o seu aspecto espacial é patentemente irrecusável, pois que, suas modulações e alterações se dão, a olhos nus, em todas as aparências físicas do tópos Sertanejo,

 

Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca doce pode de repente virar azangada — motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas — vai se amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces de uma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engulir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas, — que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço (...) (GSV, p. 27).

 

A paisagem camaleônica sertaneja não assegura nenhuma garantia para quem nela trafega, as cores, as texturas, as nuances de reino animal, vegetal e mineral, no mesmo instante que podem servir a uma apreciação entretida, oculta perigos mortais, tornando sua travessia uma aventura exótica e arriscada,

 

Por lá, sucuri geme. Cada surucuiú do grosso: vôa corpo no veado e se enrosca nele, abofa — trinta palmos! Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de mula, arranca ferradura por ferradura. Com medo de mãe-cobra, se vê muito bicho retardar ponderado, paz de hora de poder água beber, esses escondidos atrás das touceiras de buritirana. Mas o sassafrás dá mato, guardando o pôço; o que cheira um bom perfume. Jacaré grita, uma, duas, as três vezes, rouco roncando. Jacaré choca — olhalhão, crespido do lamal, feio mirando a gente. Eh, ele sabe se engordar. Nas lagoas aonde nem um de asas não pousa, por causa da fome de jacaré e da piranha serrafina (GSV, p. 47).

 

Diante deste Sertão cambiante, variável, mutável e fugidio, o ser humano busca ansiosamente por estacas indicativas que melhor direcionem a sua travessia. Eivado de desconfiança, a primeira atitude é tentar controlá-lo em seu favor, com modos brutos, como que aprendendo as lições da irracional maneira da natureza sertaneja se dar, "O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!" (GSV, 35).

Cada homem enfrentará, então, à sua maneira, este gigante bestial que se mostra com inumeráveis faces,

 

Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério — foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu Joãozinho Bem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro consistia. Joca Ramiro — grande homem príncipe! — era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Sô Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó — severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. (GSV, p. 33)

 

Este movimento inquietante do Sertão-monstrengo, provocado por sua falta de repouso numa lógica orientadora, estabelece uma dinâmica semelhante no modo de agir de seus habitantes, como se estes, espavoridos com os gestos bruscos do Mundo, reagissem também bruscamente, em novas e intermináveis ações,

 

Tanta gente — dá susto se saber — e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... De sorte que se carece de escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só (GSV, p. 21).

 

É, portanto, ao caos — "O sertão é confusão em grande demasiado sossego..." (GSV, p. 470) — que o Sertão lançará os seus incautos moradores, de cuja irremediável mudança temporal, todos deverão buscar adaptação e assimilação urgentes, "Sertão não é maligno nem caridoso, mano oh mano!: — ... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo" (GSV, p. 537).

Os personagens, habitantes de Grande Sertão: Veredas, logo percebem, a partir da cobrança de responsabilidades a eles dirigidas, mediante os constantes e erradios movimentos do Mundo, que " (...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe (...) é no meio da travessia" (GSV, p. 80). Desta forma, a errância também caracterizará o desejo de Riobaldo e seus pares, na busca de dominar o monstro-Tempo, em que o Grande Sertão, semanticamente, se metamorfoseou. O próprio narrador-personagem vaticina, "O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa..." (GSV, p. 511).

Neste ponto, o esquema do animado, converte-se no esquema da fuga, cuja teriomorfia do cavalo é o símbolo maior. O desejo de domar o Tempo, cavalgando-o com laços, esporas e arreios, sobredetermina a vontade de fugir à inexorabilidade mortal do destino, ao fado da morte, a que todo ser humano, mais cedo ou mais tarde, terá que se submeter. Resguardando, em si mesmo, a simbologia da finitude, o Sertão-cavalo deixar-se-á montar e ser cavalgado, no entanto, é ele que, todavia, determinará o itinerário do pseudo-condutor, "Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para a força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela" (GSV, p. 391).

Ao se transformar em tigre debaixo da sela, a teriomorfia sertaneja desliza, repentinamente, do esquema do animado para o simbolismo mordicante, "o fervilhar anárquico transforma-se em agressividade, em sadismo dentário" (Durand, 2002, p. 84). Tal mudança tem na primeira tentativa de travessia do Liso do Sussuarão o seu simbolismo maior. 

Na topografia, ao mesmo tempo, real e fictícia de Grande Sertão: Veredas, o Liso do Sussuarão localiza-se no extremo oeste de uma extensa região que compõe a margem esquerda do rio São Francisco. A necessidade de atravessar esse lugar misterioso e temido deveu-se a um plano apresentado ao então chefe do bando de jagunços, Medeiro Vaz, que consistia em alcançar de surpresa, através de um "intransponível" atalho — "O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se sentia no poder de fazer" (GSV, p. 61) —, a fazenda de Hermógenes, traidor e assassino de Joca Ramiro, pai de Diadorim, secreto idealizador desse estratagema. "Razão dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme Medeiros Vaz com as poucas palavras: que íamos cruzar o Liso do Sussuarão, e cutucar de guerrear nos fundões da Bahia!" (GSV, p. 61), informa Riobaldo, narrador da saga rosiana.

O adjetivo "liso" indica uma região "Cuja superfície é plana ou sem asperezas" (Ferreira, 1986, p. 1039), conclusão esta a que se chega pela leitura da descrição dos elementos que enformam a região: pobreza de fauna e flora e desolamento geográfico. Na Segunda tentativa de travessia, já sob o comando do Urutú-Branco — apelido de Riobaldo, após o misterioso pacto nas Veredas-Mortas —, essa descrição se alterará radicalmente, chegando o Liso a assemelhar-se mesmo a um paraíso ecológico. Porém, o "liso" como uma "superfície plana e sem asperezas" pode distender-se em claridade ofuscante e sem sombras, como indica Durand: "(...) os processos de gigantização imaginária se acompanham sempre de 'luz implacável... brilhante... que cega... impiedosa'. (...). Neste caso (...) estamos diante de uma obsessão angustiada da luz, do brilhante e do liso" (grifo nosso, 2002, p. 146).

 "Sussuarão" será tomado aqui como o substantivo masculino de "sussuarana", que se observa com a variação "suassurana", em O léxico de Guimarães Rosa, "SUASSURANA. (V. PUMA), — (...) Mamífero carnívoro, da família dos felídeos; onça parda. (...) Do tupi suasua'rana; apresenta diversas vars. a mais usual, dic., é suçuarana" (Martins, 2001, p. 470).

Outra contribuição para a assertiva de que se trata de um termo indicador que "sussuarão" seria a variante do "macho" da "sussuarana" é a presença de dois outros lugares próximos ao Liso: a Lagoa Sussuarana e a Serra da Sussuarana.

O "Sussuarão" materializar-se-ia, desta forma, num predador de garras e dentes afiados, da família dos felídeos, assim como o puma, o leão, o tigre, o jaguar. O simbolismo fundamental deste animal seria o devoramento, "É, portanto, na goela animal que se vêm concentrar todos os fantasmas terrificantes da animalidade: agitação, mastigação agressiva, grunhidos e rugidos sinistros" (Durand, 2002, p. 85). O engolimento, nesse caso, é descida turbulenta, agitada, trincada, cheia de obstáculos, agônica, estabelecendo o encontro das simbologias teriomórfica e catamórfica.

Segundo Ronecker, O jaguar "aparece (...) como antepassado nos mitos brasileiros concernentes à origem do fogo: ele é então um animal civilizador, depositário e primeiro utilizador do fogo (...)" (1997, p. 240). O isomorfismo desse animal predador com as chamas tornará o engolimento ainda mais insuportável, pois incluirá a combustão inclemente de gases e líquidos digestivos.

Houve todo um preparativo e municiamento de provisões e víveres para a arriscada e incerta travessia do Liso, como se o bando de Medeiro Vaz já soubesse os tormentos que iria passar:

 

Os bogós de couro foram enchidos nas nascentes da lagoa, e enqueridos nas costas dos burrinhos. Também tínhamos trazido jumentos, só modo para carregar. (...). Cada um pegava também sua cabaça d'água, e na capanga o diário de se valer com o que comer — paçoca. (...). Seis novilhos gordos a gente repontava, serviam para se carnear na rota (GSV, p. 63).

 

Conforme a região do Liso era acercada, a fauna e a flora, gradativamente, iam empobrecendo em quantidade e em qualidade

 

Mas o terreno aumentava de soltado. E as árvores iam se abaixando menorzinhas, arregaçavam saia no chão. De vir lá, só algum tatú, por mel e mangaba. Depois, se acabavam as mangabaranas e mangabeirinhas. Ali onde o campo largueia. Os urubus em vasto espaceavam. Se acabou o capinzal de capim-redondo e paspalho, e paus espinhosos, que mesmo as moitas daquele de prateados feixes, capins assins. Acabava o grameal, naquelas paragens pardas. Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, no descampante. Acabou o sapé brabo do chapadão (GSV, p. 63)

 

A imagem que a descrição nos revela é a de que os jagunços estavam sendo mobilizados, muito menos por sua vontade própria que pela atração hipnotizante e predadora da boca de um enorme monstro: um incomensurável sussuarão, cuja garganta mais se assemelhava a uma gigantesca fornalha:

 

A gente olhava para trás. Daí, o sol não deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo. (...). Achante, pois, se estava naquela coisa — taperão de tudo, fofo ocado, arreveso. Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo dela, confinante? O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta — feito cabeleira sem cabeça. As-exalastrava a distância, adiante, um amarelo vapor. E fogo começou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente (GSV, p. 63-64).

 

O calor solar descrito por Riobaldo distancia-se das benfazejas características do astro-rei, como propiciador da vida na Terra. Neste caso, o sol transforma-se em relógio natural terrível, estabelecedor do movimento inquietante e pertubador de Cronos, bafejando seu insuportável mormaço sobre os homens.

Paradoxalmente, no esquema mordicante dos símbolos teriomórficos, há também a presença terrificante das trevas, estabelecendo o deslizamento para a simbologia nictomórfica. Isto se dá quando Riobaldo ouve um comentário que João Bugre dirige a ele ou a um outro companheiro, justamente no momento em que eles adentram o Liso: "— '...O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o Capiroto...'" (GSV, 64). É o momento que Riobaldo ouve pela primeira vez as histórias sobre a existência de um pacto com o demônio, cujo teor implica em favorecimentos sobre-humanos por parte dele ao pactário, em troca da alma deste:

 

O pacto! Se diz — o senhor sabe. Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo — e espera. Se sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor imaginalmente percebe? O crespo — a gente se retém — então dá um cheiro de breu queimado. E o dito — o Coxo — toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma (GSV, p. 64).

 

Como se observa, tal contrato metafísico se estabelece num ambiente de mais profunda e tenebrosa escuridão, envolvendo a tentativa malograda de domínio e controle do tempo e da morte, por parte do ser humano.

O calor insuportável intensificava a capacidade imaginativa diurna de Riobaldo. Ele agora, lembrava-se das inúmeras conversas entabuladas com Quelemém, adepto do kardecismo, sobre os assuntos de religião, acerca daquele inferno descrito por seu compadre e amigo como a região de que todos provinham num constante e incessante processo de melhoramento carnal e espiritual,

 

A gente viemos do inferno — nós todos — compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonho, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem (GSV, p. 64-65).

 

Compara esse inferno com as atitudes cruéis e homicidas de certos homens no plano terrestre, levando-o a suspeitar se tais seres não teriam escapado ou sido liberados do reino de Lúcifer antes do tempo,

 

Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros — as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo (GSV, p. 65).

 

A essas duas dimensões do inferno — a primeira metafísica, em que os homens estão subordinados ao poder e à vontade de um ser demoníaco; a segunda, humana, em que os homens fazem prevalecer a sua vontade, o seu livre-arbítrio — se juntava a que Riobaldo vivia no momento: a travessia do inferno do Liso, agora transmutado na figura do órgão digestivo de um sussuarão-monstrengo, essa não mais metafísica nem humana, mas imposta pela natureza:

 

Mas mor o infernal a gente também media. Digo. A igual, igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião — areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás. Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou cinzento, gretoso e escabro — no desentender daquilo os cavalos arupanavam (GSV, p. 65).

 

Conforme o engolimento do sussuarão se consumava em calor infernal, Riobaldo descreve uma nova cena que remete aos símbolos catamórficos, indicadores angustiantes da vertigem,

 

Os companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receei ter um vágado — como tonteira de truaca. Havia eu de saber por que? Acho que provinha de excessos de idéias, pois caminhadas piores eu já tinha feito, a cavalo ou a pé, no tosta sol. Medo, meu medo. Aguentei (GSV, p. 66).

 

Apesar de Riobaldo ter experimentado outras travessias, embaixo de sóis mais terrificantes e doídos, essa se mostrava diversa, estranha, inusitada, ao ponto de bulir com sua coragem e lhe causar temor, dado o oculto que ainda estava por vir e que ele não sabia o que seria. Riobaldo é um herói humano, de carne-e-osso, espírito e pensamento, portanto, passível de dores e tormentos.

A vertigem, véspera da queda, provocada pelas pressões do ambiente, tornam o mundo, a natureza, o sol, os alforjes, as armas, as roupas, o corpo, o pensamento e os sentimentos demasiado pesados e empurram o homem para baixo, para o chão, para o cansaço e para a caída,

 

Tanto tudo o que eu carregava comigo me pesava — eu ressentia as correias dos correames, os formatos. A com légua-e-meia de andada, bebi meu primeiro chupo d'água, da cabaça — eu tinha avarezas dela. Alguma justa noção não emendei, eu pensava desconjuntado. Até que esbarramos. Até que, no mesmo padrão de lugar, sem mudança nenhuma, nenhuma árvore nem barranco, nem nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar do outro. Nem auxiliei a tomar conta dos bois nem a destravar os burros da albarda. Onde era que os animais iam poder pastar? Noite redondeou, noite sem boca. Desarreei, peei o animal, caí e dormi (GSV, p. 66).

 

Com a chegada do anoitecer, os jagunços experimentaram o seu quinhão de alívio. A noite surge aqui, não como uma solução definitiva para o calor e claridade opressivos, mas como uma breve sombra que logo se deslocará, conforme o astro-rei cumpra seu sobrevôo sobre a outra banda da Terra.

O amanhecer quer significar vida nova, novas possibilidades, força restituída, a luz do sol prenuncia uma outra chance e oportunidade de uma existência melhor. No entanto, para quem amanhece nas entranhas de um sussuarão gigante, só pode esperar que o novo dia seja muito mais atormentado que o anterior,  é o que Riobaldo revela: "Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes?" (GSV, p. 66).

 O inferno prevalecia ante o desejo heróico de libertar-se do mesmo por parte de Riobaldo e de seus infelizes companheiros. A imaginação diurna de Riobaldo não perdia um só detalhe no esquadrinhamento doentio da realidade. Todas as reações dos jagunços, os gestos "humanos" dos cavalos, os silêncios, os ruídos, as ausências e presenças de cores e nuances da paisagem e das pessoas eram descritos por ele com capricho rigoroso e precisão analítica:

 

A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dôr do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando — só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Água não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado de couro, e dosar ao meio, eles esticando os pescoços para pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que cangavam esforço e cada restar de bebida carecia de ser poupado. Se ia, o pesadêlo. Pesadêlo mesmo, de delírios. Os cavalos gemiam de descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum pôço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava (GSV, p. 67).

 

Depois de ter testemunhado, perplexo, os vários reveses por que passavam ele e seus companheiros,

 

O Miquím, um rapaz sério e sincero, que, muito valia em guerreio, esbarrou e se riu: — "Será que não é sorte?" Depois se sofreu o grito de um, adiante: — "Estou cego!..." Mais aquele, o do pior — caíu total, virado tôrto; embarançando os passos das montadas. De repente, um rosnou, reclamou baixo. Outro também. Os cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas as caras. Credo como algum — até as orêlhas dele estavam cinzentas. E outro: todo empretecido, e sangrava das capelas e papos-dos-olhos (GSV, p. 69).

 

Riobaldo sentiu-se forte o bastante para decidir por si mesmo de não mais ser engolido pelo esôfago do sussuarão, e, ao fazê-lo, decide também por seus companheiros, desafiando as ordens do comandante. O primeiro a apoiar o seu gesto é Diadorim, o que fez com que o chefe Medeiro Vaz capitulasse de seu intento, sugerido por quem agora apela por seu abandono: Diadorim.

 

Medeiro Vaz estava ali, num aspeito repartido. Pessoal companheiro, em redor, se engasgavam, pelo o resultado. — "Nós temos de voltar, chefe?" — Diadorim solicitou. Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente sofreasse. Tom bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outro querer, a não ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então — por primeira vez — abriu dos lados as mãos, de nada não poder fazer; e ele esteve e ombros rebaixados. Mais não vi, e entendi. Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Mas era mesmo o final de s voltar, Deus me disse (GSV, p. 69).

 

Riobaldo e os medeiros-vazes, sendo um alimento de sabor não palatável, de digestão difícil e tendo provocado desconforto intestinal, fez com que o sussuarão os vomitasse, rejeitando-os como a um mal bocado, "Saímos dali, num pintar de aurora" (GSV, p. 70).

 

 

Notas

 

1 "Caos (...) significa abismo insondável. (...). Consoante Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o Caos é 'a personificação do vazio primordial, anterior à criação, quando a ordem ainda não havia sido imposta aos elementos do mundo'" (BRANDÃO, 1986, p. 184).

 

2 "(...) os Ciclopes eram concebidos como seres monstruosos com um olho só no meio da fronte. Demônios das tempestades, seu olho único representa o relâmpago, daí serem chamados Brontes, o trovão, Estéropes, o relâmpago, e Artes, o raio" (BRANDÃO, 1986, p. 204).

 

3 "Os Hecantoquiros eram gigantes fortíssimos e mostruosos, com cem braços e cinquenta cabeças. Chamavam-se Coto, Briaréu ou Egéon, e Gias ou Giges" (BRANDÃO, 1986, p. 206).

 

4 "Réia simboliza a energia escondida no seio da Terra. Gerou os deuses dos quatro elementos. É a fonte primordial ctônia de toda a fecundidade" (Brandão, 1986, p. 201).

 

5 "(...) é o local mais profundo das entranhas da terra, localizado muito abaixo do próprio Hades, isto é, dos próprios Infernos" (1986, p. 186).

 

 

 

Referências

 

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega (Vol.I). Petrópolis-RJ: Vozes, 1986.

 

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3.ed. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

 

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

 

MARTINS, Nilce Sant'Anna. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 2001.

 

RONECKER, Jean-Paul. O simbolismo animal — mitos, crenças, lendas, arquétipos, folclore, imaginário. Trad. Banôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1997.

 

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001

 

 

 

junho, 2010