©erik isakson
 
 
 
 
 
 

Quando meu tio veio morar no quarto dos fundos da nossa casa eu tinha seis anos de idade.

Ele tinha deixado a venda e a lavoura eventual para tentar a vida na cidade.

No princípio, eu não entendia bem o que ele tinha vindo fazer. Ele passava os dias fumando, andando pelo quintal, às vezes recitando palavras que lia num livro ou em folhas de papel escritas por ele mesmo.

Eu ia para a escola de manhã, e brincava à tarde.

Ele dormia na parte da manhã (minha mãe não gostava disso), andava pelo quintal à tarde, fumando e recitando os cadernos, ou então se deitava na rede, ouvindo música no rádio. E à noite ia para a escola dele.

Naquele tempo, a cidade tinha um cinema apenas. Depois teve dois. Mas naquela época tinha só um.

Ficava na praça da igreja e tinha um nome engraçado: Cine Theatro Polytheama.

Nas matinês de domingo, todos os garotos da minha classe se apinhavam no “poleiro”, que era o mezanino, de onde se podia jogar bolas de papel e chiclete mastigado na cabeça dos que se sentavam embaixo, perto da tela.

E algumas vezes eu ia, com a minha mãe ou com meu pai, à sessão da noite, quando o programa era livre.

Foi ali que eu vi o primeiro filme do Elvis, tocando seu violão elétrico, rodeado de garotas, dirigindo um carrão e cantando, acompanhado da orquestra que não aparecia na cena, nem estava no carro ao lado, como meu pai tinha reparado.

Eu adorava o Elvis, o seu olhar meio triste, a sua alegria dançarina.

Quando se anunciava algum filme dele, eu logo ia pedir para me levarem ao cinema.

Eu gostava de rock. Tinha dois discos, que tocava sem parar, na pick-up ligada ao rádio.

Como só havia um rádio, a disputa era grande no período da tarde.

À noite, não tinha disputa. Meu pai se sentava ao lado do aparelho, na cadeira de preguiça, e ouvia os intermináveis programas de risadas.

Mas eu dormia cedo e não queria ouvir música à noite.

Já durante a tarde, o conflito era certo. Meu tio queria ouvir boleros. Eu queria ouvir “Oh, Carol!”, que então fazia sucesso, e queria rodar o mostrador, até me cansar e colocar na pick-up um dos velhos discos do Elvis, de uma música só de cada lado.

O vizinho da frente gostava também de boleros mexicanos, como meu tio, e cantava alto o seu cucurrucucu-paloma-ah! Mas tinha uma lambreta e um topete que eu achava muito parecidos com os do Elvis.

Era um rapaz magrinho, que tinha o apelido de Rato. Era simpático: um dia me levou no porta-malas da lambreta, que não tinha garupa, até a praça da igreja, quando eu ia para a missa.

Ele não gostava do Elvis, me disse. Mas eu achava que, se imaginasse a música, quando ele saía com o topete ao vento, de lambreta, ele bem se parecia um pouco com o Elvis.

Meu tio também parecia um pouco, pois tinha um topete quase igual ao do Rato.

Ele e o Rato eram amigos, porque trocavam discos de bolero. E um dia que meu tio foi visitar o Rato, eles beberam e ficaram gritando cucurrucucu-paloma-ah!, até que meu pai atravessou a rua e pôs um final naquela bagunça.

 

Quando foi chegando o meio do ano, meu tio começou a ficar nervoso. Tinha de fazer a prova.

Minha mãe, na hora do almoço, sempre perguntava se ele estava pronto. Ele resmungava alguma coisa, com a cara no prato, e ficava quieto o resto do tempo. Um dia, quando ela perguntou, ele saiu da mesa, sem responder. Ela não perguntou de novo, nos outros dias, e almoçamos em paz.

Por essa época, meu tio perdeu o interesse na música. Quando o Rato veio, uma tarde, trocar os discos, eu o ouvi dizer que queria vender os que tinha. Fizeram negócio e o Rato não voltou mais. Mas quando ele cantava o cucurrucucu-paloma-ah!, o meu tio ficava de pior humor ainda.

 

Eu começava a enjoar dos dois discos que tinha, e ficava tentando ouvir alguma coisa nova, no meio dos chiados do aparelho de rádio.

Por não ter muito que fazer, comecei a tentar puxar conversa com o meu tio. Ele, no começo, me enxotou. Depois, como eu tentasse agradá-lo, levando para ele o rádio e água gelada, me chamou para conversar.

Disse que tinha de estudar, que o concurso do banco era dali a uma semana. Que se entrasse no banco ia comprar uma lambreta. E então disse a frase de que me lembrarei para sempre: que se entrasse no banco e comprasse a lambreta, me levaria a Araraquara para ver o Elvis.

Eu fiquei sem palavras algum tempo. Já tinha ido a Araraquara. Era uma cidade grande, mas eu não sabia que o Elvis morava lá.

Ele me disse que não. O Elvis morava em outro país. Mas vinha fazer shows em Araraquara. E gostava de andar de lambreta com as moças de Araraquara. E nós podíamos ir juntos, se ele entrasse no banco e pudesse comprar uma lambreta com garupa, mais nova do que a do Rato.

 

Foi um longo período aquele da preparação final.

Fui impecável no transporte silencioso da água gelada. Esvaziei o cinzeiro, trouxe bolachas e prendi o cachorro. Mas depois o soltei, porque ele latia e causava mais transtorno do que quando estava livre.

 

Meu tio finalmente fez o exame. No dia seguinte, voltou para o sítio. Minha mãe disse ao meu pai que tinha sido perda de tempo, que não tinha esperança.

Algum tempo depois, meu pai chegou, no final do dia, e disse para minha mãe que meu tio não tinha conseguido, que não tinha passado no exame para o banco.

Naquele final de semana, decidiram ir ao sítio.

Eu não queria ir. Não queria ver o meu tio receber a notícia.

Perguntei para o meu pai se ele me levaria ver o Elvis. Ele disse para eu parar de besteira. Que íamos, sim, mas era para o sítio do Tamanduá.

Tive uma febre. Ou fingi que tive. Minha mãe acabou desistindo de ir ao sítio.

Meu pai foi sozinho dar a notícia ao meu tio. Nada de banco, nada de lambreta, nada de Elvis, quando ele viesse a Araraquara.

 

 

dezembro, 2005

 

 
 
 
 
Paulo Franchetti. Professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos sobre literatura brasileira e portuguesa dos séculos XIX e XX, dedicou-se por vários anos ao estudo do haicai japonês e seu aproveitamento pelas literaturas modernas do Ocidente. É autor do livro de contos O sangue dos dias transparentes (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003). Além de ter publicado livros de ensaios, de haicais e de contos, é crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Desde 2003, dirige a editora da Unicamp.
 
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