Anões de Plástico

O prédio da faculdade de medicina estava situado em lugar privilegiado, no alto de um monte, que era conhecido pelo povo como Morro da Saúde.

O diretor e proprietário da Faculdade, um idoso e afamado médico, punha em prática todo o seu cabedal de conhecimentos, supervisionando diariamente a limpeza do prédio e esterilização do material técnico, protegendo apenas a cozinha da devastação. O seu ideal era a limpeza.

Dedetizava quinzenalmente o Morro da Saúde, motivo pelo qual a flora toda havia morrido e fora substituída por belas imitações de plástico e acrílico. A nova vegetação era conservada sempre limpa e brilhante, sob os cuidados de um batalhão de escravos pigmeus.

A esses pigmeus não era permitido o acesso ao santuário da Faculdade, havendo dormitório para eles ao pé do morro. O povo os chamava de "anões de plástico". Vestiam-se de branco e qualquer mancha que aparecesse nos seus aventais merecia o castigo de três chibatadas.

Dr. Faustus, o afamado, tinha desprezo por estes anões, achava que só viviam para se sujar, e eram um foco de infecção.

— Uns vermes, uns vermes, mumurava. — Se ao menos não fossem tão morenos. — E fazia um gesto vago.

O edifício da Faculdade, deveras imponente, fora construído em alumínio e vidro. Para evitar contaminação, o prédio elevava-se sobre altas colunas de metal.

— É a medida mais higiênica que se pode tomar, afirmava o proprietário.

Numa dessas colunas encontrava-se o elevador que conduzia os alunos ao saguão da Faculdade. Neste ascensor havia um vaporizador, de onde provinha um perfumado desinfetante, que tinha a virtude de eliminar os micróbios indiscretos, escondidos nas costuras das roupas dos estudantes. Não havendo escadas no prédio, este elevador era o único meio de chegar àquele templo de ensino.

A tarefa de ascensorista era um ofício maldito, praticado pelos pigmeus, considerados utensílios descartáveis. Muito frágeis, estes anões! Perdia-se mais ou menos uma média de vinte por ano, envenenados com aquele desinfetante. Mas isso não constituía problema, porque era uma racinha fértil, que se reproduzia facilmente. Para cada acasalamento, a porcentagem era de noventa por cento de sucesso. Eram eliminados os exemplares estéreis. O mesmo acontecia com aqueles que nasciam imperfeitos.

— Precisava-se cortar o mal pela raiz. Fruta estragada, joga-se fora, — ponderava Sua Excelência, batendo com a régua na mesa, como apoio. E reforçando: — Realmente, não há necessidade de que essa racinha perigosa se multiplique muito.

Apenas seis destes pigmeus foram agraciados com a permissão de adentrar o edifício para fazer a limpeza do mesmo. Sofriam um rigoroso processo de esterilização diária.

Era esta Faculdade que Manon frequentava, para isso tendo que se levantar diariamente às cinco horas, porque a cerimônia de limpeza a que se submetia lhe tomava muito tempo.

Havia um controle rígido do asseio pessoal dos alunos, feito por um computador colocado no caminho à saída do elevador, por onde eles obrigatoriamente teriam que passar em fila. Para o aluno não liberado na limpeza, a roleta eletrônica não se abria. Ao detectar qualquer impuridade, o computador impulsionava uma campainha, que por sua vez acionava um aparelho de televisão, o qual estampava a imagem do infrator na tela instalada na sala do diretor. Este aluno era imediatamente eliminado da Faculdade. Por causa desta seleção rigorosa, a classe de Manon, onde havia de início trinta alunos, estava reduzida apenas a cinco.

Manon precisava usar um veículo especial para ir de casa até ao Morro da Saúde. Era um pequeno automóvel que continha os mais modernos aparelhos de esterilização já inventados. Os anões de plástico eram encarregados de conservar seu minicarro sempre limpo. Ela costumava conseguir o que queria com os anões e ameaçava delatar suas pequenas falhas ao patrão, se não lhe obedecessem.

Como era a pupila preferida do diretor, foi escolhida para sua secretária e auxiliar para assuntos de espionagem.

Foi considerada a melhor aluna em limpeza, recebendo sempre o elogio do computador, que vinha estampado em letras luminosas, com a palavra "excelente".

Por muito tempo ela havia disputado esse lugar com sua colega Ninon. Finalmente, obteve a classificação, por esforço próprio, depois da tragédia que aconteceu com sua colega, que foi expulsa da Faculdade, rejeitada pelo computador, porque havia borrifado laquê nos cabelos. Produto que havia ganho de presente, na véspera, de sua colega e amiga Manon.

Vencida a competição, reinava sem tropeços naquele mausoléu esterilizado.

Ela às vezes cometia certas irregularidades na sua vida extra-escolar. Saía de casa para dar longas caminhadas, o que era condenado pelo diretor, devido à poluição das ruas.

Finalmente, voltava para casa feliz com a sua travessura, para retomar a imagem da mocinha comportada e merecer o conceito "excelente" do computador.

Os pigmeus, que há muito tempo já não gostavam de Manon, ultimamente tomaram-lhe ódio, devido às chacotas que sofriam por parte dela, quando o diretor estava presente. Ela ridicularizava a estatura e modos no andar e falar, enfim, tudo. Todos os dias reclamava do trabalho deles, e fazia queixas frequentes à direção, causando-lhes severas punições.

Certa vez, quando Manon saía de casa para a Faculdade, encontrou seu carro com os quatro pneus vazios. Percebeu logo a obra dos pigmeus. Jurou vingar-se.

Chegando ao escritório do diretor, a secretária viu o grande vaso de porcelana chinesa, ornamentado com rosas vermelhas, sobre a mesa. Quebrou-o, deixando toda a água e as rosas esparramarem-se sobre os papéis do chefe. Em seguida, saiu correndo e gritando.

— Dr. Faustus, Dr. Faustus, venha ver. Que coisa horrível!

O diretor, extremamente exaltado, na frente de toda a escola reunida no Salão Nobre, exigia que o culpado se acusasse, senão os seis anões internos seriam severamente punidos.

E discursava, inflamado:

— É um ultraje! Não posso permitir, dentro da minha Faculdade, que sempre primou pelo espírito de cordialidade e cooperativismo, um abuso destes. É um desrespeito à autoridade, à tradição, aos bons princípios, é uma conspiração, uma sublevação, um motim, é o prenúncio do apocalipse. Sua Excelência substantivava com ênfase, vermelho de raiva.

Manon voltou do Salão Nobre realizada. Exultava intimamente, havia alcançado a sua vingança com êxito total. Olhou-se no espelho, convencida de que contemplava um gênio. Seu orgulho subia em ondas de calor, acelerando-lhe as batidas do coração, dando-lhe uma sensação de gozo. Repassava em sua mente os diversos momentos em que venceu disputas com os "anões de plástico". Era uma vitoriosa, sempre os dominou com a força da sua esperteza. Tinha mesmo que ser assim, a beleza e a inteligência eram argumentos valiosos bastante para sobrepujarem a parvoíce e a feiúra.

Apavorados, os anões pouco se mostravam, os que eram vistos traziam as cabeças baixas, o andar descompassado.

O silêncio era total, parecia o prenúncio de uma tempestade. Os professores pediram para suspender a última aula, porque a maioria dos alunos já tinha ido embora e algumas salas estavam vazias. A suspensão foi concedida e todos foram-se aliviados.

Dr. Faustus e Manon demoraram-se na recuperação da escrivaninha avariada, enxugando papéis com ferro de engomar, lustrando novamente a mesa e esperando que o culpado se acusasse.

Finalmente, resolveram sair, sendo tarde já, sem haver apanhado o delinquente.

Os corredores estavam vazios e as luzes apagadas. Manon tocou a campainha chamando o anão servente, mas não obteve atendimento. Acendeu ela mesma a luz dos corredores e foram caminhando para o elevador. Tudo em silêncio. O som de seus passos ecoava alto, subindo pelas paredes e chegando ao teto.

Ela não se sentia bem, parecia estar angustiada, marchava ao lado do diretor, que também não falava.

Ouviram um barulho atrás deles. Assustada, voltou-se e percebeu que a luz que acendera, no início do corredor, estava agora apagada. Chamou pelo anão, mas não teve resposta.

— Tenho a impressão de que tem gente espreitando, pareceu-me ouvir passos, murmurou.

— Rápido, apresse-se, murmurou o diretor, empurrando-a pelo braço.

Aceleraram seus passos, até alcançarem o saguão. Este também estava às escuras. Não sabiam onde se encontrava o interruptor. Seguiram a luz do elevador, que excepcionalmente estava com as portas escancaradas. O ascensorista não apareceu.

Ela até sentiu um alívio, não se achava com coragem de enfrentar o olhar acusador do anão.

— Ufa! Ainda bem — pensou.

Entraram no elevador e a perversa apertou o botão da garagem. Normalmente, o elevador começou a descer. Subitamente, porém, entre o andar térreo e a garagem, o elevador parou. Assustada, ela apertou o botão de emergência e não aconteceu nada, nem a porta se abriu, nem soou nenhum alarme. Neste momento o vaporizador do desinfetante começou a funcionar com a força toda. Manon freneticamente começou a apertar todos os botões do elevador, mas este não se moveu.

Sua Excelência, perdendo a compostura, começou a gritar e a esmurrar a porta do elevador. Depois parou, com os olhos desmesuradamente abertos. Pela primeira vez na vida, percebeu a sua impotência para resolver um problema.

— Não. Não é possível que eu seja derrotado por uma raça inferior, por uns vermes abomináveis, rastejantes. Inacreditável! Absurdo! Ridículo!

A tosse foi começando, primeiro fraca, depois gradativamente mais forte, depois o ar foi ficando irrespirável. E aquele perfume forte do desinfetante cumpria a sua função: esterilizava!

 

 
 
 

Azeitona para a Farofa

 

 

Na rua, o povo acotovelava-se, correndo para as últimas compras de Natal. As lojas estavam cheias, todo mundo irritado, os balconistas não levavam desaforo para casa e os donos dos estabelecimentos queixavam-se de vender pouco.

Dentro do supermercado, Matilde tratava de adquirir as ameixas pretas e azeitonas para a farofa do peru.

— Humm. Faltam ainda as coisas para a maionese — pensou ela, olhando em volta, para as outras prateleiras — batatas, tomates, maçãs...

Foi colocando no carrinho o que precisava, e mais alguma coisa supérflua como castanhas de caju, nozes, passas.

— Ah! E as bebidas, não posso esquecer o vinho tinto para o Manoel, e os refrigerantes para os pequenos.

Estava apressada, pois ainda havia muito por fazer. A velha Chica tinha ficado na limpeza, mas o pior era com ela mesma.

— Foi pena ter deixado o pudim para fazer hoje, — lamentou-se — talvez nem esfrie para a noite. Ah! Mas se eu colocar a forma na bacia com água e gelo, é garantido. Sempre esfriou, porque não irá, logo hoje? Depois, a ceia sai tarde, mesmo.

Cheia de pacotes, ganhou a rua, desviando-se do povo natalino. Precisava esconder bem os presentes das crianças, porque elas eram danadas em descobrir coisas.

Pensava que seria melhor se ainda tivesse carro, chegaria num instante em casa. Mas não se arrependia de tê-lo vendido, pois o Manoel precisava de advogado. Pegaria um táxi.

Matilde sorriu ao apertar contra o peito aquele pacotinho especial.

— Com certeza ele vai gostar — pensou com um meio sorriso — lá ele precisa muito de meias.

Há três meses Manoel fora detido. Ele havia escrito uns artigos para o jornal, que tocavam fundo nos melindres dos poderosos. Como resultado disso, veio a prisão. Mas hoje era esperado em casa para a ceia de Natal.

Com muito custo ela conseguiu um táxi, e tocou para casa. Chegou afobada, deixando pacotes nas cadeiras, mesa e pia da cozinha.

— Chica, venha me ajudar com as compras — gritou lá para dentro — estou exausta, andei tanto! Tá uma loucura, lá na rua, é um empurra-empurra, que só vendo.

A Chica veio correndo, balançando os enormes seios de ébano, curiosa para ver os pacotes.

— Chii! Que tanta coisa, nossa!

As duas foram guardando as compras nos armários e na geladeira. Matilde ia dizendo que os preços estavam altíssimos e que só se ouvia reclamações do povo, nas lojas. Havia até gente gritando nas ruas contra a alta do custo de vida. Queixavam-se do preço da gasolina, que ocasionara o aumento de tudo o mais.

Tentando economizar lugar na geladeira, esvaziou tigelas maiores, passando os restos de comida para as menores, colocou uns mantimentos sobre os outros, jogou coisas mais velhas no lixo.

— Nessas horas é que a geladeira fica pequena — lamentou, sem parar de trabalhar. — Chica, vá buscar o isopor de piquenique, por favor.

Voltou a Chica, desolada, com a caixa de isopor nas mãos.

— Veja, Dona Matilde, o que aqueles capetinhas fizeram com a tampa, morderam todinha.

— Deixe prá lá, vamos usar assim mesmo — apressou-se ela. — Vá colocando aí dentro os refrigerantes e o gelo por cima. Por favor, alcance-me a tábua de carne e os temperos para cortar.

— Telefonaram da maternidade... — avisou Chica, querendo fazer mistério. — Queriam falar com a senhora.

— Hein? O quê?

— Sua irmã.

— O que Chica? Conta logo de uma vez! — ordenou Matilde.

— Sua irmã está em trabalho de parto, é para hoje ainda!

— Meu Deus, logo hoje! Eu já estava tão nervosa, ainda mais essa! — E gritando para Chica — Ande logo com essa cebola, é para hoje!

Chica nem ligava para essas broncas, porque sabia haver outro motivo por detrás de tudo. Depois de sondar a patroa por algum tempo, arriscou-se.

— E o Dr. Manoel vem mesmo? Hein, Dona Matilde?

— Ai, Chica. Vem, vem. Ele vem mesmo, ora se vem.

Já não o via há mais de um mês, mas o advogado lhe assegurou que ele viria. Ainda ontem ele lhe repetira pelo telefone: "Pode ficar tranquila, Dona Matilde, tenho estado com seu marido sempre, ele me garantiu que irá, disse para a senhora preparar o peru do jeito que ele gosta".

Não podia parar de pensar no Manoel. Como ele estaria? Pálido? Três meses na prisão abatem até um touro.

— Que horas são Chica? explodiu ela, sem tirar os olhos da faca, com a qual cortava os maços de salsa e cebolinha. — Apresse-se, você parece uma tartaruga. Ele vai chegar logo e está tudo atrasado. E repetia: que horas são? Mas esse relógio está certo? Ligue para cento e trinta e confira.

Ela não parava de trabalhar e olhar o relógio. Às vezes parava um pouco, sentindo a água da torneira escorrer sobre o seu pulso e empurrar a espuma para o ralo.

O cheiro do peru assando, invadia a casa. Esta estava limpíssima, a sala enfeitada com a árvore nova. Matilde havia mandado as crianças para a casa dos  avós. À noite, eles as trariam.

Ouviu-se a campainha e em seguida a voz aflita :

— Corre, Chica, estou com as mãos sujas. Deve ser o Manoel.

Não era. Era o carteiro, trazendo um telegrama de Natal.

Matilde já mostrava sinais de impaciência. Caminhava da cozinha para a janela da sala, e de lá para a cozinha.

— Você não acha que ele já devia ter chegado? — resmungava a todo instante.

 Precisava vestir-se para a noite. Depois de fazer as recomendações necessárias sobre o atendimento do peru, foi para o quarto mudar de roupa. Lá do quarto, ouviu o telefone. Parou e ficou à escuta. Os passos da Chica aproximaram-se da porta.

— Dona Matilde, a criança já nasceu, é uma menina, chama-se Flávia. Sua irmã está passando bem.

Matilde esboça um sorriso. — Flávia, que bom. É um lindo presente de Natal, assim como a visita do Manoel.

Em seguida, soou a campainha. Mesmo abotoando-se correu para abrir a porta. Era o advogado. Sozinho, em pé à porta, ele aguardava.

— Entre, Dr. Orestes. Onde está meu marido? — murmurou, olhando para fora.

Ele entrou muito sério, perguntou pelas crianças e sentou-se em silêncio.

— Sinto muito, Dona Matilde, seu marido não poderá vir.

— Mas não é possível, o senhor prometeu, o senhor garantiu, o senhor... Mas o que houve?

Sem olhar para ela, apenas fixando o chão, o Dr. Orestes pôs-se a soletrar, muito baixinho:

— Sinto muito. Sinto muito. O Dr. Manoel foi encontrado morto em sua cela, esta manhã.

 

 
[imagens ©aussiegall]
 
 
 
 
 
Lygia Lopes dos Santos. Contista e poeta, nasceu em Paranaguá (PR) em 1934, filha de Pompília Lopes dos Santos e Dario Nogueira dos Santos, ambos professores e escritores. Fez licenciatura em Letras-Inglês e Pós-Graduação em Teoria da Literatura na PUC. Lecionou no Instituto de Educação do Paraná, no Grupo Escolar D. Pedro II e na Escola Técnica de Comércio De Plácido e Silva. Foi proprietária, diretora e professora do jardim de infância Branca de Neve. Trabalhou na Fundação Cultural de Curitiba de 1973 a 2000, até se aposentar. Em 1982, fundou e coordenou, por cinco anos, a Livraria Dario Vellozo da FCC. À disposição da UFPR, lotada na Editora Scientia et Labor, criou a Livraria da Universidade Federal do Paraná, em 1988. Em 1978, publicou o livro de contos Dança do Caos, com orelhas de Helena Kolody e Denise Guimarães e prefácio de Walfrido Pilotto. Em 1979, entrou na Academia Feminina de Letras do Paraná, onde ocupa a cadeira 39, sendo sua Presidente desde 2004. Na Academia Paranaense da Poesia ocupa a cadeira 7 (2003). Faz parte do Centro de Letras do Paraná desde 2005. Recebeu da CMC a Medalha de Mérito Fernando Amaro (2006). Tem diversas publicações em revistas, coletâneas e jornais.