A plaquete Meu Bar Meu Lar, de Jovino Machado, foi composta por Mário Alex Rosa e Fernanda Moraes. A tiragem é pequena (no máximo, 100 exemplares) e não tem fins lucrativos. Tudo foi discutido lentamente, não houve pressa, pois entendemos que essas criações não são para o mercado apressado das coisas descartáveis, sobretudo, nesses tempos em que tudo parece virar mercadoria. Além dos poemas de Jovino Machado, a plaquete reproduz também poemas e frases de outros poetas e escritores que viveram ou não na boemia. Se não viveram, refletiram sobre essa condição que exige, além de coragem, uma boa dose de saúde para atravessar as noites em branco ou no escuro. Com saúde ou não, o que importa é a qualidade dos poemas e isto os de Jovino têm, aliás, são copos-poemas cheios de humor, de ironia, a começar pela brincadeira que faz com a velha e conhecida frase: Lar doce lar. Aqui, por uma simples troca de letras, o endereço muda e lar vira bar. Lugar de outros ares. O poeta não vai aos bares, vai e está nos bares, para usar de uma fala coloquial e tão comum no nosso dia-a-dia, e vista na primeira fase radical da poesia modernista no Brasil nos anos vinte do século passado.

O doce lar de Jovino é talvez o lugar mais democrático que existe, onde todos se misturam para um bate-papo sem muita cerimônia. Enquanto conversas são jogadas fora, o poeta atento vai pegando no AR, e quanto mais a dose (a conversa) aumenta, mais assuntos vão aparecendo e mais o poeta com seus ouvidos abertos capta e transforma a boemia em poesia.

Há um pensamento de Leminski mais ou menos assim: "vai vir um dia que tudo que eu diga seja poesia". A pretensão pode ser exagerada, mas, sendo do poeta curitibano que tinha sede de viver e não separar a vida da poesia, não nos parece tão excessivo. Aliás, isso era um dos lemas da geração conhecida como "poetas marginais", parecendo mais adequado falar de uma geração mimeógrafo. Mas o que importa aqui é reafirmar a tentativa de amalgamar vida e poesia. Como bem disse Cacaso no poema "Na corda bamba": "Poesia/eu não te escrevo/eu te/vivo/e viva nós!". Aqui novamente a poesia e a vida procuram se juntar nesse feliz e tão bem acertado pronome "nós" do fim do poema.

Pois bem, essas ideias se encaixam como luvas nessas vivências de Jovino Machado que procuram mesclar vida e poesia, por meio de uma relação tensa e intensa. No poema "Meu jeito bêbado de ser", com todo o risco que se corre com essas dosagens, o poeta com humor irônico manifesta que não seria bom para a sua história morrer sem uma lata de cerveja na mão; afinal, ser atropelado em estado lúcido não combina com o jeito bêbado de levar a própria vida. Assim, nota-se que o jogo entre "mas" e "sem" modifica a idéia trágica que se anuncia de ser atropelado com uma lata de cerveja na mão:

 

 

tenho medo de ser atropelado

com uma lata de cerveja na mão

mas não seria bom

para a minha biografia

ser atropelado

sem uma lata de cerveja na mão

 

 

Por meio dessa espontaneidade, vinda dos modernistas e explorada ao extremo pela geração 70, criou-se uma poética menos intelectualizada que põe em cena a intimidade colada na vivência, não importando até onde se separa o eu lírico da biografia do poeta, até onde se isola a experiência da escrita, enfim, tudo é matéria para o poema. Evidentemente, muitos querem achar nessa poesia algo sem força na linguagem, pouco elaborada, sem a "racionalidade" da lírica de João Cabral, sem a elaboração estética do Concretismo, como se tudo isso fosse o único modelo para a poesia brasileira contemporânea de 70 para cá. O fato é que a poesia não é necessariamente o que a crítica supostamente afirma e julga como referência qualitativa. Portanto, com ou sem rigor, muitos poetas ainda mostram que é possível dar a ver que a linguagem é inesgotável. Assim, desentranhar poesia do cotidiano ou do próprio jogo com a palavra ainda pode abrir caminhos tanto para os caprichos como para os supostos relaxos. O importante é saber ver com olhos livres, tendo em mente que o lúdico e o cerebral não se separam. Assim, a poesia, vinda de Oswald de Andrade ou de João Cabral — para ficar apenas nos extremos de dois poetas —, tem lá a sua perícia verbal.

Perícia que aparece nesse poema simples, mas cheio de graça e de sugestões, indo desde um choro amoroso pela perda de uma paixão efêmera (ontem), que diminui com o tempo com um baixo chorinho para terminar (amanhã) em chope, ou seja, tudo na verdade acabava virando motivo para mais uma ida ao bar, meu lar. Entre a ordem da sequência temporal (ontem, hoje e amanhã) e o jogo sonoro e abafado das fricativas palatais (ch), há o som talvez dos acordes agudos de um cavaquinho mesclados, ainda, ao choro tristinho que vai diminuindo até virar um chorinho musical do poeta e da música, diga-se de passagem, muito tocada em bares. Enfim, esta pequena amostra de Jovino Machado demonstra bem a verve de um poeta lúcido.

 

 

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A plaquete: Jovino Machado. Meu bar meu lar. Belo Horizonte: Editora Couber Artístico, 2009.

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março, 2010

 

 

 

 

 

Mário Alex Rosa (São João del Rei-MG, 1966). É professor de Literatura Brasileira no Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH). Tem poemas publicados nas revistas Dimensão, Inimigo Rumor, Cacto, Teresa e no Suplemento Literário de Minas Gerais. Participa da antologia O achamento de Portugal (Org. Wilmar Silva. Belo Horizonte: Anomelivros/Fundação Camões, 2005), que reúne 40 poetas mineiros e portugueses contemporâneos. Publicou o livro de poesia infantil ABC Futebol Clube e outros poemas (Belo Horizonte: Editora Bagagem, 2007). Em breve, sairá seu primeiro livro de poemas adulto: Via férrea.
 
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