Virna Teixeira por João Urban
 
 
 
 
 
 
 

 

Fotografar palavras. Escrever paisagens. Estes dois enunciados nascem de uma reflexão que faço sobre a linguagem poética, e que me leva a afirmar que a dimensão do olhar, na poesia, revela-se na imagem. Ou antes, diria: revela-se na palavra, que "traga e traduz", como diz a canção de Caetano Veloso, a "luz do sol", imagem que nos reporta à realidade e também, se a lermos do ponto de vista da metáfora para o contexto construtor da linguagem poética, reporta a algo superior a ela, que está além, que é conhecimento, luz, dimensão intervalar. Na canção de Caetano Veloso, seu sentido sugere o processo de refração das coisas na sua manifestação de acontecimento, de presença diante da lente que flagra o acontecimento como palavra. Essa palavra/folha traduz em imagem, em "verde novo", o referente do mundo.

O gesto de "tragar" e "traduzir" metaforicamente revelam-se como o processo que Jakobson irá chamar de "alteração profunda pelo jogo da ambigüidade" da função referencial do discurso, pois explica que a "supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência (a denotação), mas torna-a ambígua". (apud RICOEUR, 1983, p. 334). O exercício metalinguístico a que me volto vale-se, neste caso, do gesto metafórico para iniciar uma reflexão sobre a lírica contemporânea e sobre sua relação com a linguagem da fotografia, ou seja, sobre como o acento da forma ambígua do discurso da lírica contemporânea é criado a partir do elemento iluminador da linguagem fotográfica. A ambigüidade a que aludo está no processo de sobrepor ao desenho do referente um outro, o responsável pela construção icônica do corpo do poema. Num primeiro momento, a presença da fotografia se impõe como um dado procedimental que ilumina no poema uma sintaxe que recolhe da realidade seus fragmentos. A palavra como referente denotado dribla a percepção do sujeito e se rarefaz na sua natureza aparente para emergir como imagem num segundo momento. Nesse caso, o gesto de "tragar" e "traduzir" que trazemos aqui se refere ao movimento que o diafragma da câmera opera na direção do foco do seu olhar. O objeto é "tragado", fica impresso na retina do filme/memória da máquina e se traduz como luz na revelação da imagem final.

      De outro modo, diria que a palavra, na poesia, traga (e traduz) o objeto do olhar do sujeito que se revela pela ação de situar o referente no mundo em termos das dimensões que organizam sua presença: o espaço e o tempo. Ou melhor: o objeto do olhar do sujeito situa-se num entre-espaços, numa espécie de intervalo, que, por sua vez, se projeta num contratempo, um tempo fixado, impossível de apreender no fluxo do automatismo das percepções. Esse contexto de significância gera no poema uma construção que leva o leitor a inserir-se numa trilha intertextual que recupera na linguagem a presença de outro discurso — o fotográfico — que reinaugura o referente para o poema.

Assim caminho nesta reflexão para descobrir o modo como o olhar do sujeito poético constrói o instante da percepção do objeto e como esse olhar pode revelar o dado sutil da imagem, aquilo que, num jogo de presença e ausência, se instaura como o "punctum"1 da cena e dá presença foto-gráfica, ou seja, presença grafo-temporal criando um espaço de sentido.

A lírica contemporânea tem sua natureza assentada num processo autofágico, ou seja, alimenta-se das próprias evoluções do gênero ao longo das épocas e um de seus traços é o modo objetivo com que rasura a paisagem e extrai dela o traço mínino com que desenha a palavra, transferindo para a sintaxe um modo de mimetizar a dimensão do recorte e da focalização que faz do mundo. Os processos de releitura a que se lança com referência à tradição literária também se voltam para a especificidade de outros sistemas, cuja linguagem passa pelo crivo crítico do poeta ao perceber que a metáfora de sua poesia assenta-se sobre outras bases.

É nesse contexto de reflexão que trago alguns poemas de Virna Teixeira 2, de seu livro Distância (2005), no qual a poeta realiza um trabalho poético que plasma o traço fotográfico na construção dos versos. Seus poemas revelam um trato com o discurso poético que alinha concisão e brevidade do verso a uma poesia que elabora a objetividade do recorte na subjetividade da expressão lírica. Seus poemas partem de notações de cenas urbanas ou de cenas flagradas pelo passante em espaços como a praia, a praça e a casa, por exemplo. A representação de tais cenas recupera um tempo, cuja duração expande-se no poema por meio da imagem que as espacializa e lhes dá um caráter tenso no qual estaticidade e movimento se entrelaçam muitas vezes.

O que chama a atenção na poesia de Virna Teixeira é o dado fotográfico da composição que instaura um momento de pregnância na cena flagrada. As palavras, mínimas, subtraem do referente o traço de memória do sujeito que observa a cena e reconstrói na imagem o resíduo do tempo no espaço observado. Na reconstrução do espaço, o referente submete-se ao olhar do sujeito frente à cena, olhar que semanticamente produz as relações entre os objetos do foco, como se o sujeito tivesse alcance sobre a "alma" desses objetos.

Em "Calçada", um dos poemas do livro Distância, o olhar, de natureza fotográfica, plasma na linguagem o corpo situado num espaço mítico cujas nuances de cor e sentido, num movimento de concisão, irá plasmar na palavra o "instante fotográfico".

 

 

Calçada

 

pequeno, o

frágil

corpo

soluça

 

vermelha,

a flor

entre os

dedos

 

 

O título, "Calçada", situa o olhar do leitor no espaço urbano, campo aberto dos passantes, do trânsito e da mudança. O dado de movimento contrasta com a descrição do objeto situado nesse espaço, cuja presença é ensimesmada no soluço que toma conta de si. Como um "corpo" anônimo, frágil e pequeno, consumido pela tristeza, a imagem se faz representar pelo dado humano e universal. No espaço do trânsito, um corpo que fica. No espaço da pluralidade, um corpo é resgatado na sua singularidade. No espaço externo, o flagrante de uma interioridade.

Seria apenas um corpo abandonado na sua dor e melancolia, se não fosse o olhar do poeta a situá-lo numa dimensão mítica que o recoloca frente a uma dicção não submissa a uma "poesia de expressão", ou seja, uma poesia marcada pela presença emotiva do sujeito que observa a cena. Há entre ele e a cena um filtro, representado pela lente que isola o observador e constrói para ele um distanciamento crítico responsável pela objetividade da descrição. Nesse processo, o olhar do sujeito que observa o seu objeto transporta-o para um lugar outro. Sua presença surge estranha e seu interior se expande para os seus contornos.

A construção vertical do poema, estruturado a partir de dois blocos de quatro versos, sendo cada verso formado por uma ou duas palavras, sugere um espaço que se constrói pela presença metonímica do corpo representado. O olhar que flagra, ou que encena o flagrante do corpo, isola no espaço o objeto no seu instante único, expandindo-se para uma tensão que não se resolve, pois sua presença se mediatiza nos verbos no presente do indicativo. O dado imagético se situa nessa "suspensão" do olhar e se completa pela objetividade do recorte e pela limpidez da descrição que projeta, na sintagmática dos versos, as escolhas combinatórias que são responsáveis por, centripetamente, migrar aquilo que seria emoção e sentimento para o desenho de um corpo percebido metonimicamente. Uma espécie de fotogenia que revela a busca pela recusa da intervenção da subjetividade do sujeito no flagrante da cena. O resultado é "frio" na medida em que o vazio e a melancolia preencheram o espaço pelos seus indícios.

A simplicidade da expressão dos versos revela-se pela objetivação com que a cena é descrita. Entretanto, a sintaxe realiza duas inversões significativas. A primeira está evidente no verso 1, em que ocorrem duas pausas sintáticas: "pequeno, o". Uma pausa presente na vírgula e outra na ruptura do verso (indiciando o enjambement) que termina no termo determinante, driblando nosso olhar que não encontra imediatamente o elemento determinado. Nossa tendência é fazer convergir a concordância nominal da qual temos como norma, para fazer a inversão da leitura do verso: "o pequeno". Ainda que tentemos rapidamente colocar "ordem" na sintaxe, a presença da construção invertida insiste e nos fere (eis o traço do punctum), pois nos leva para uma imagem de solidão e de ruptura, sentido que vai encontrar repouso nos outros signos da estrofe, que concorrem para a construção do isolamento do "corpo que soluça", no espaço aberto da calçada.

Ao retomarmos o verso nos seus constituintes semânticos, no adjetivo "pequeno" percebemos contida a carga semântica que se intensifica no adjetivo seguinte — "frágil" — e no verbo — "soluça". O "corpo" focalizado na cena é reduzido à esfera disfórica de sua dimensão espacial, ensimesmado num gesto que tem na forma da expressão sua dimensão visual. O que as pausas sintáticas dinamizam na imagem seria o contratempo de um ato, ou ainda, o sentido da ruptura no interior do sujeito que soluça e atrai para si outros semas como os de melancolia e dor.

Embora seja um recurso utilizado por Virna Teixeira em mais de um poema de seu livro, com sentidos outros, a ruptura sintática a que me refiro como a pausa no final do verso, separando o determinante ("o") de seu determinado ("frágil/corpo"), e a vírgula no interior do verso, separando o adjetivo "pequeno" do substantivo ao qual se refere no sintagma "o/frágil/corpo/soluça", funciona aqui, no contexto deste poema, como um mecanismo de espacialização do tempo no flagrante da cena, cujo gesto teve sua ação primeira num "fora de campo", num tempo anterior a este acontecimento.

A dimensão com que o "corpo" é flagrado no espaço da calçada encontra aqui o recurso imagético da poesia, que subverte o que poderia ser prosaico e comum (o studium3). Composta a cena por um corpo que soluça e se mostra, nessa condição, frágil, a partir da estrutura do verso, o sentido emerge pelo recorte que a objetiva fotográfica do olhar do sujeito é capaz de realizar. Recorte mimetizado pela natureza dos versos que primam por concentrar no mínimo da dicção traços do objeto que vão ganhando uma dimensão lírica. É, pois, na forma que o punctum vai encontrar seu lugar e dar ao poema a dimensão singular do tema.

A segunda estrofe traz outro dado à cena: a dimensão da cor vermelha da flor entre os dedos (daquele corpo?) e a imagem simbólica agregada a ela. O bloco de versos traz uma estrutura semelhante à da estrofe anterior. No verso 1, "vermelha," iconiza o drama do sujeito, ao expandirmos seu sentido semântico para o poema como um todo. A cor vermelha, disposta como adjetivo anteposto ao seu substantivo, estruturando sozinha o primeiro verso da estrofe, reporta-nos a um procedimento semelhante na poesia brasileira, porém com um alcance icônico mais acentuado, em Manuel Bandeira, no poema "Pensão familiar", em que o verso "amarelo!", destacado da estrofe, interrompe a sintaxe pela ruptura gramatical,

 

 

Os girassóis

                                               amarelo!

                                                                                     resistem.

 

                                                                  (BANDEIRA: 1982, p. 61)

 

 

convergindo a atenção do leitor para um dado desviante em vários sentidos (o punctum), como, por exemplo: pela falta de concordância com o substantivo que lhe antecede e que pela justaposição dos termos somos levados a crer que pertencem à mesma esfera sintática; pelo espaço ocupado no poema, rompendo com a estrutura fluente do verso até esse momento; pelo caráter de autonomia que adquire também, por valer-se de um ponto de exclamação, adquirindo, assim, a voz do sujeito lírico, sobreposta à voz de um outro sistema, que nesse momento interfere num gesto agônico no marasmo da cena descrita da "pensãozinha burguesa".

         No poema "Calçada", o elemento cromático ocupa o seu lugar no verso sem alterar a estrutura geral do poema e perfaz, de maneira diversa, a força imagética com que o elemento cromático é evidenciado no poema de Manuel Bandeira, que vimos como uma camada de sentido que se torna pontual no processo descritivo da cena. A flor, cuja cor é vermelha, desaparece em meio à expansão do valor semântico do adjetivo a que sintaticamente se agrega. Explica-se essa obnubilação do elemento flor pelo aspecto cromático que se agrega ao tom de melancolia da cena, cuja nuance está nos verbos da primeira estrofe. O vermelho associado à dor e à paixão, ao sangue e à vida, enfim, não aparta do poema o campo semântico que já reconhecemos no adjetivo. Embora não modifique nosso campo de pensamento, a estrutura com que a representação da cena é elaborada emite muito mais do que um dado visual. O isolamento da cena e a simplicidade com que é expresso nos versos produzem uma aura em torno desse acontecimento que o torna objeto de nossa atenção.

         Como delimitar o elemento de suspensão nesse poema e o dado pontual que nos faz desviar dos detalhes da cena para algo além dela?

A objetividade expressa nos versos do poema nos impele a pensar o elemento da denotação como viés do movimento de construção de sentido do poema. A denotação está ligada à prosa, ou melhor, ao prosaico.  Ela teria o seu uso atrelado ao sentido usual, próprio, habitual. Nesse caso, falar da construção da imagem pela denotação é falar de uma construção que estaciona no referente e não segue adiante.

No caso deste poema, o plano denotativo insere-se por meio de uma função. Sua presença não é mero acaso e sua ação é um instrumento de construção que vai moldando o plano conotativo da linguagem por meio das correspondências visuais. O espaço criado na dimensão do poema organiza uma correspondência entre os elementos e dirige nosso olhar para algo que vai além da mera alusão ao aspecto visual dos seres em correlação. O plano denotativo, portanto, dribla nossa percepção, pois ele está a serviço de uma significância, de uma construção de sentido que vai além da mera aparência referencial dos elementos. O plano conotativo dar-se-ia no arranjo desses elementos, na sua disposição lacunar no todo do poema, na sua forma fragmentária.

A construção no poema dessa correlação de elementos traz como dispositivo articulador a memória, que conduz o desenho dos objetos no espaço à luz das marcas que ficaram em sua retina. Assim, o poema é construído de modo lacunar muitas vezes, direto, pontuando metonimicamente os objetos e elaborando sua síntese nesse próprio espaço. Procurar compreender as dimensões do espaço e do tempo, como dimensões de articulação dos sentidos no poema é importante para conceber as relações entre o poema e a fotografia, em termos de procedimento de construção e não de mera transcrição do que o olho vê na foto e traduz em palavras. A força do poema, descritivo e conciso, está na pontualidade e exatidão do recorte espacial que flagra o tempo da figura; é mais visual e imagético do que discursivo, muito embora o alcance de seu sentido procure a reflexão posterior para expandir-se na consciência do observador/leitor.

No poema de Virna Teixeira, em análise aqui, as palavras adquirem uma presença única na sua simplicidade nomeadora do corpo, esse referente que situa o olhar para além dele. O ritmo pontuado por versos de métrica irregular (4/1/1/2//2/2/3/1) constrói no poema a imagem lacunar do vazio de um corpo cuja voz fala na ausência. A poesia parece aqui nascer desse encontro com o instante único da palavra, seu poder de representar a dupla realidade do homem: sua presença lírica no mundo: "a flor / entre os dedos". Imagem da solidão, cuja cor "vermelha" cobre e inicia a estrofe com sua presença sugestiva de qualidade pura: "vermelha" não é só uma cor, a cor da flor: "vermelha" traz a si mesma como símbolo: o "verme", que corrói e se metamorfoseia na dor; "vermelha" é a centelha, a fagulha.

"Calçada" é um poema que sugere, pelo lance rápido da descrição pura, o registro fotográfico de uma ausência. Metonimicamente construído, gera a metáfora, a relação analógica entre os dois focos: o pequeno corpo que soluça, frágil na sua dor, um fato que nada diz sozinho. Acompanhado da seqüência da presença da flor entre os dedos, vermelha, num novo foco, sugere uma relação cujo sentido não é dito, mas sugerido. O tom objetivo da dicção na pontuação dos elementos provoca no leitor, pela cena clara, o mistério que os traços, poucos, sugerem: a cena da dor, que estará sempre lá como uma fotografia, um instante derradeiro e único, eterno no seu lance, ensimesmado na sua força de sentimento.

A relação promovida entre os elementos impõe a questão do referente pela ilusão que é criada, no poema, pelo uso do elemento determinante ("o") que isola o objeto da percepção do sujeito em meio ao mundo. A determinação confere ao objeto uma existência mais real, mais próxima do observador, como se fosse flagrado fotograficamente, tal qual uma cena colhida ao acaso, dentre tantas que ocorrem no ambiente caótico da cidade.

Entretanto, o caráter icônico do objeto, sua qualidade presencial, é construído no poema de modo a burlar o referente, conferindo-lhe uma presença mítica e mimética. O mimetismo estabelecido confere ao objeto observado uma semelhança formal com a ideia de vazio do sujeito, de isolamento que emana dos predicados que assumem a função de reescrever, de representar a singularidade do objeto. A semelhança buscada confere ao objeto um caráter mítico, de existência singular, porque ele se universaliza.

         René   Magritte afirmava que queremos sempre ver aquilo que está oculto naquilo que vemos, pois há sempre algo escondido por trás. Mesmo que o poema de Virna Teixeira pareça tão claro e simples na sua descrição do corpo no espaço, ainda assim queremos saber o que esconde tal criatura e como podemos completar esse fora de campo que se anuncia e se oculta pela burla à camada de sentido denotativo das palavras. Talvez esse mistério esteja no poema "Noite" submetido às imagens de uma sala e um sofá que ainda guardam a memória do outro que não está mais.

 

 

Noite

 

branca, a sala

a cor desta

ausência

 

teto

 

inalcançável

 

sofá, o vulto

imaginário

de um corpo

 

 

O gesto fotográfico que flagra no espaço o branco da sala revela, na extensão que vai do teto ao sofá, a marca da memória do outro, agora presentificado como "vulto/imaginário", como espectro. Novamente o adjetivo estrategicamente posicionado num verso separado dos demais mimetiza o sentido da imensidão do espaço apesar das molduras que se colocam no campo visual do sujeito (teto/sofá), conferindo a esse espaço a dimensão da medida da perda e da ausência. Novamente o ritmo de versos curtos impõe o tom lacunar do vazio: "teto / inalcançável"; "...vulto / imaginário"; "branca... / ausência".

No exercício poético a que se lança a lírica contemporânea em aproximar-se do gesto da fotografia para inaugurar um modo ambíguo de resgatar no referente um dado de plenitude e universalidade, deixando intactas sua presença e forma denotadas, aludo à busca por um dizer de concisão da linguagem, de obliterar o discursivo e prosaico, para expandir, na célula mínima do verso, o objeto recortado do mundo e exposto como um corpo em si mesmo no poema. Nessa perspectiva, a lírica contemporânea traz um desafio à crítica: como compreender os modos pelos quais o discurso poético tece o diálogo com as demais séries literárias e com outros códigos e sistemas? Procurei nesta reflexão compreender as relações entre a poesia e a fotografia na lírica contemporânea, de modo a, num momento, perceber como a tradição da lírica se traduz como um ato crítico da linguagem, e noutro, como a poesia procede a essa tradução do olhar da fotografia, em termos dos seus procedimentos de linguagem.

 

 

 

Notas

 

 

1 A raiz latina de punctum traria a ideia de picada, de marca feita com um objeto pontudo. Pontuar ou ferir, portanto, seria na ação de olhar uma operação de "ir além do mero referente" ou daquilo que a aparência do referente me apresenta num primeiro instante. O punctum, no contexto do raciocínio que teço aqui, seria associado a uma "atitude poética", e, portanto, ligado ao ato de criar, como diria Barthes (1984), o "campo cego", um dado que sobressai ao todo observado. O "punctum" é definido pelo crítico como "uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver: não somente para 'o resto' da nudez, não somente para o fantasma de uma prática, mas para a excelência absoluta de um ser, alma e corpo intrincados" (1984, p. 89).

 

2 Virna Teixeira é poeta e tradutora. Nasceu em Fortaleza em 1971, é graduada em Medicina pela UFC, com residência em Neurologia pela Universidade de São Paulo, mestrado em Medicina do Sono pela Edinburgh University e especialização em Dependência Química pela UNIFESP. Mora em São Paulo há vários anos, onde trabalha como neuropsiquiatra. Publicou dois livros de poesia pela 7letras, Visita (2000) e Distância (2005) e, pela Lumme, o livro Trânsitos (2009), além dos livros de tradução Na estação central do poeta escocês Edwin Morgan pela coleção "poetas do mundo" (editora UnB, 2006) e antologia de poesia escocesa Ovelha Negra (Lumme Editor, 2007). Atualmente, cursa doutorado em Letras no Departamento de Lingüística da USP.

 

3 Ao ato de enquadrar ou flagrar o objeto, situando-o pela luz num horizonte de expectativa, Barthes (1984) chamará de studium, ou ainda, ao conjunto de figuras que formam uma composição na qual o olho do espectador apreende um dado harmônico, o qual compreende, pois ele participa culturalmente das escolhas do fotógrafo, como os cenários, as ações e os gestos; haveria uma espécie de codificação sob o conjunto, que leva o olhar do espectador a encontrar nada muito alheio ao seu horizonte de expectativa.

 

 

 

Referências

 

BANDEIRA, Manuel. Antologia Poética. 14 ed. Rio de Janeiro: livraria José Olympio Editora, 1982.

 

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

 

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Porto: Rés Editora, 1983.

 

TEIXEIRA, Virna. Distância. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

 

 

março, 2010

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Susanna Busato (São Paulo/SP, 1961). Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, de São José do Rio Preto/SP, onde leciona Poesia Brasileira, no Curso de Licenciatura em Letras e na Pós-Graduação em Letras, desde 1999. Organizou juntamente com Sérgio Vicente Motta, o e-book Fragmentos do contemporâneo: leituras (São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009), pelo selo da Editora da UNESP. Escreve o blogue Papel de Riscos.