"Renda-se, como eu me rendi.

Mergulhe no que você não

conhece como eu mergulhei".

Clarice Lispector

 

 

Clarice Lispector vivia numa torre de babel, quase não recebia amigos em casa, morava com gatos, cachorros e sua história lendária; filha de judeus russos que emigraram para o Brasil. O seu nome de batismo era Chaya Pinkhasovna Lispector, segundo os registros oficiais. Contam que ela nasceu de mãe sifilítica, em 10 de dezembro de 1920. Clarice passou a infância em Recife, viajou o mundo como esposa de um diplomata, morou no Leme, Rio de Janeiro, e sofreu muito por amor não correspondido pelo escritor Lúcio Cardoso. Isso é o que contam alguns biógrafos impressionistas de Clarice, décadas depois de sua morte.

Mas acaba de ser publicado no Brasil a biografia intitulada Clarice, — de Benjamin Moser, ed. CosacNaify. Benjamin é um biógrafo comovido, fascinado pelo personagem a ser desvendado. Barthes diz que "só existe biografia da vida improdutiva" mas Benjamin o contradiz revelando a história de uma das mais produtivas e importantes escritoras brasileiras de todos os tempos.

Os críticos demoraram a reconhecê-la como uma das inventoras do romance moderno da Literatura Brasileira. O crítico Álvaro Lins saudou Sagarana, de Guimarães Rosa, mas foi indiferente com Perto do Coração Selvagem, primeiro romance de Clarice, lançado em 1943. Mas o crítico Antônio Cândido soube reconhecer a maestria da escritora ao criar uma literatura que "adentra domínios pouco explorados, um pensamento cheio de mistério, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente".

           O que importa em Clarice é a maneira dela narrar os fatos mais banais do cotidiano. Ela inaugura um outro tempo ficcional. Faz indagações filosóficas. Para ela, as coisas divinas são reais, mas para atingir esta realidade, é preciso despersonalizar-se, sentir-se como o outro, e viver a dor "que não é alguma coisa que nos acontece, mas que somos".

A prosa clariciana fala ao nosso mundo interior, desvenda o paraíso espiritual a partir de uma narrativa poética. Clarice desenvolve a linguagem como uma poeta dramática. Ela quase sempre torna visível o invisível, como se fosse possível dizer o indizível. Fernando Sabino, em carta à Clarice confessa que, "de certo modo, você me dispensa de escrever. Resta o consolo de pensar que se eu fosse capaz como você de dizer o indizível, eu teria a dizer certas coisas que você ainda vai dizer".

A autora de Água Viva descreve as histórias de seus personagens através de pensamentos, sensações, percepções e sentimentos. É discípula de Virgínia Woolf, autora de Orlando, conhecida como uma ficcionista que aperfeiçoou modernas técnicas de narrar, como as do monólogo interior e a do fluxo de consciência. A maneira de contar a história para Woolf é mais importante do que a história em si. Clarice também revela a sua história através do pensamento inaugurado por imagens. O pensamento é o tempo da memória. A memória está sempre descobrindo paisagens. Clarice só quer lembrar das paisagens esquecidas e das palavras malditas. Para ela, "a palavra que falta para completar um pensamento pode levar meia vida para aparecer".

Clarice contou a história de sua vida. Martim, Vitória, Joana, Lucrécia, Macabéa, personagens de suas tramas, também são ela. Clarice era existencialista. Criou uma linguagem fragmentária. Metalinguagem. Linguagem de rua. É autora de uma filosofia de vida muito particular: "Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz".

           A escritora viveu debatendo sobre a morte, querendo salvar os outros e ao mesmo tempo cultivava uma solidão que não era apenas o estado de estar só, mas o estado de exuberância da alma. Clarice viveu a sós com seu mundo, longe das coisas mundanas e perto do mundo imaginário, talvez, por isso, não se preocupava em entender a vida. Segundo a escritora, "viver ultrapassa todo entendimento".

Toda a sua obra descreve o mundo que poderia ter sido, um mundo que "independia de mim — esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. Então adoro".

Ela também adorava matar o tempo desespelhado da chuva. Tomava chuva apenas para tentar capturar alguma luz despenumbrada. Nestas horas de solidão, ela procurava se salvar dos seus pensamentos que refletiam as suas eternas ausências. Fingia ser cega em tardes de domingos e feriados. Não suportava o infinito dos instantes passando longe dela para recolher as suas sombras abandonadas. Abria os olhos para desassombrar dos ventos tardios e doentios. Sonhava com o tempo excedente do mundo, mas jamais o via.

O leitor da biografia de Clarice, quando acabar de ler este extraordinário livro vai "chorar por ela uma aleluia". Pode-se usar um fragmento da própria Clarice para explicar a emoção que provoca a leitura desta biografia: "Quando fechardes as últimas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar".

Para Clarice, descansar era como morrer. Aliás, ela dizia que morria várias vezes em um só dia. Conta-se que a escritora morria de medo de morrer à noite, mas estava sempre "pronta para o silêncio grande da morte". Às vezes, em plena luz do dia, pedia licença para morrer só por uns instantes.          

           Clarice precisava de segredos para viver.

 

 

 

 

Fragmento do livro Água viva, de Clarice Lispector

 

 

"O que este escrevo não tem começo; é uma continuação. Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, você sente? Minha experiência vem de que eu já consegui pintar o halo das coisas. O halo é mais importante que as coisas e que as palavras. O halo é vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado: é uma palavra como fino bloco monolítico que projeta sombra. E é trombeta que anuncia. O halo é o it.

         Preciso sentir de novo o it dos animais. Há muito tempo não entro em contato com a vida primitiva animálica. Estou precisando estudar bichos. Quero captar o it para poder pintar não um águia e um cavalo, mas um cavalo com asas abertas de grande águia.

         Arrepio-me toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Os bichos me fantasticam. Eles são o tempo que não se conta. Pareço ter certo horror daquela criatura viva que não é humana e que tem meus próprios instintos embora livres e indomáveis. Animal nunca substitui uma coisa por outra.

         Os animais não riem. Embora às vezes o cão ri. Além da boca arfante o sorriso se transmite por olhos tornados brilhantes e mais sensuais, enquanto o rabo abana em alegre perspectiva. Mas gato não ri nunca. Um "ele" que conheço não quer mais saber de gatos. Fartou-se para sempre porque tinha certa gata que ficava em danação periódica. Eram tão imperativos os seus instintos que na época do cio, após longos e plangentes miados, jogava-se de cima do telhado e feria-se no chão".

 

 

 

 

março, 2010

 

 
 
 
 
Pedro Maciel (Belo Horizonte/MG). Autor do romance A hora dos náufragos (São Paulo: Bertrand Brasil, 2006) e Como deixei de ser Deus (São Paulo: Topbooks, 2009). É um dos escritores da antologia de contistas brasileiros Il Brasile per le strada, lançada na Itália, em 2009, pela Editora Azimut.
 
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