©l. burken
 
 
 
 
 
 
 

A família toda reunida — quase toda, faltaram alguns, como de praxe — em torno do aniversário do patriarca (o último? suspiravam alguns: desejo não contido de por a mão na gorda herança — "mas ela não vai levar mais do que eu não, tenho mais direitos", "que será que esse cara que entrou agora pra família, contra a minha vontade aliás, tá querendo? me passar pra trás?" — claro, assim é o script, sabemos todos).

 

Sentado, encurvado — nada mais dava jeito no corpo, carcomido à medida que os outonos se cumpriam — olhava tudo, piscava os olhos, sorria forçado para um ou outro, resmungava com as crianças, mordia com dificuldade um salgadinho; sentia certa alegria de ter quatro das filhas ali, mas a alegria trazia, em contraponto, a tristeza irrecorrível da ausência da caçula, a mais querida, sim, por isso, diziam, sempre a protegida. Afastava o sentimento com um pequeno prazer: o que gostava mesmo era vez por outra como quem não quer nada, e sem que ninguém percebesse, quem diria, ele o moralista-mor, o símbolo ilibado da moral, encostar a mão no joelho da sobrinha do genro sentada a seu lado, moiçola de carnes fartas como ele definia, rostinho de anjo, cabelos encaracolados, lembrava a Cachinhos Dourados das historinhas que lia tempos atrás para os netos. Mas ela afastava logo a perna, uma, duas, três vezes. Bem, ele tinha todos os direitos, afinal era o pater.

 

"Olha, papai, mais um presente! Que linda camisa, foi o marido dela aqui que te deu, não é bonita?". Um olhar desinteressado e um muxoxo do velho esgotavam a cena e passava-se para outra. "Hoje é um dia de muita felicidade, mais um em nossa bem-aventurada família, toda unida aqui e agora em volta de papai, esse homem honrado, digno, com quem nós aprendemos, em todas as gerações, os conceitos e as práticas  da melhor educação, de moral, de comportamento ilibado, de lisura, ética, respeito e, por que não? me desculpem os que não acreditam, os mais elevados princípios  cristãos. Poucas famílias têm um pai, avô, bisavô, sogro, o que seja, como esse que nós temos. Privilegiados somos, pai querido, por ter você e por você ser assim como é, como sempre foi. Eu te agradeço, Senhor, por essa bênção, pela existência e pela vida de meu pai, desse homem feito à Tua imagem e semelhança como poucos nessa vida. E que Tua graça, Tua luz e Tua bênção lhe dê muitos anos de vida, amém e amém. Viva!".

 

O velho aproveitava para mais uma vez encostar a mão, por debaixo da mesa, no joelho da moça, que mais uma vez afastava delicadamente a perna.

 

Chega Joaquim Maria: "Comemoramos o fracasso da espécie humana?". "Ah, pronto, lá vem o cético, o pessimista, não é à toa que tem esse nome, eta garoto metido a intelectual; agora, não é por ser meu afilhado, mas ele é muito inteligente, isso é. Sabem que está escrevendo um livro? e à máquina, sim, daquelas de datilografia, o geniozinho não usa computador nem celular, diz que ativam o sistema nervoso e a excitação emocional; aliás, cinco dos maiores neurocientistas norte-americanos estão agora num acampamento, sem nenhum aparelho ou equipamento eletrônico, justo para estudar o comportamento e as reações de um ser humano à ausência de tecnologia. E meu querido Joaquim Maria está mesmo à frente de todos...".

 

Sem desistir nunca, o velho encostou não só a mão no joelho, mas também a perna na perna da moiçola, já se preparando para a recusa e mais tarde poder insistir, era um jogo que o saciava mais do que toda aquela "palhaçada dessa gente idiota", que todos os salgadinhos e doces e acepipes especialmente preparados para a festa; ah, como se deliciava com essas brincadeirinhas.

 

Mas dessa vez a moça não afastou a perna, deixou–a ali ao alcance; a mão esquerda do velho permaneceu pousada em seu joelho.

 

No clima e nesse cenário de alegria, um dos genros sugeriu música, "vamos dançar, alegria, alegria, minha gente! a bailar, nasci para bailar, cha-cha-cha..." e logo quase todos se punham se não a dançar, pelo menos a cantar. O bailado e a cantoria tomaram conta do ambiente.

 

Só uma das filhas "do meio" — não a mais velha nem a mais nova — parecia ter consciência plena daquele enredo, ou melhor, dos enredos familiares em geral (aludia sempre a Tolstoi, parodiando sua antológica abertura de Anna Karenina, no caso "todas as famílias têm um enredo comum, mas só algumas têm um enredo muito particular em que as  nuances  se desdobram em complexidades muito específicas". Era a que mais nitidamente percebia o quanto de dissimulações e subterfúgios se valiam aquelas pessoas, aparentadas em suas representações, verdadeiros atores e atrizes de uma comédia, que seria cômica se não fosse trágica, para não fugir ao lugar comum. Até quando, pensava do alto de sua lucidez, até quando o frágil equilíbrio poderia se manter, a realidade artificial se protegeria do real verdadeiro, um telhado de vidro que poderia se quebrar...

 

A mão do velho deslizou vagarosamente um palmo acima do joelho, empurrando um pouco a saia da moiçola, já na coxa dela, que vagarosamente abriu um pouco as pernas, e um fio de arrepio percorreu-lhe o corpo. No canto da sala, o homem sempre atento a essas coisas e sempre de olho nas ninfetas, em casa ou na rua, percebeu os bicos dos seios da moça arrepiados na blusa sem sutiã, e aguçou sua atenção e os olhos;  "não é de hoje que saco essa garota, espivetadinha e sapeca, é muito gracinha mesmo".

 

A primeira pedra na "vidraça do telhado" veio da criança de oito anos, como de vez em quando fazia, só que não em momentos de festas como esse, rigorosamente instruída para não fazer, inclusive com ameaças de castigo: "mamãe, quero a mamãe! por que não está aqui?! quero ela, cadê ela?!...".

 

Muitos pararam de dançar e cantar, aquele frisson típico de anúncio de tempestade percorreu a sala, toda a enorme casa, chegou à cozinha e aos empregados na copa.

"Você sempre com isso, garota. Deixe desse nhemnhemnhem, esquece que ela nos deixou, abandonou papai à própria sorte, o coitado foi internado, tá lá na clínica de malucos até hoje. E se mandou com aquele cara, o vizinho do prédio ali da esquina?...".

 

"Cala a boca, menino! Você já tem 11 anos, devia ser mais educado, mais respeitador. É isso que dá liberdade demais, não tem pais pra pôr freios, dá nisso", gritou a tia, já  apavorada.

 

"... e foi o vovô que incentivou, mandou que ela deixasse o papai, pagou a viagem dela com o cara pra Bahia, e agora sustenta eles!".

 

"Filho da mãe! Desgraçado, cala essa boca, seu verme! Eu mato você!". O velho esmurrou a mesa com as duas mãos, largou a coxa da moiçola, levantou-se, avançou pro garoto, agarrou seu pescoço, e tentava estrangulá-lo. "Filho de uma ... vou acabar com você!...".

 

"Calma, papai, segura ele aí, larga o menino pelo amor de Deus!". O velho apertava mais e mais o pescoço do garoto, cujo rosto se avermelhava, a boca aberta, os olhos esbugalhados...

 

A moiçola, sentada à mesa, inerte, assombrava-se com tudo aquilo. O homem no canto da sala a observava, atento.

 

"Larga o menino, velho caquético!". Agarrou as duas mãos do velho e com o corpo deu-lhe um safanão que quase o jogou no chão; acudiram duas filhas e o outro genro, seguraram-no e o puseram no sofá. "Cretino, você é tirano mesmo, um déspota! Tudo o que o menino falou é verdade, você produziu toda a separação e desde então sustenta o casal! Canalha, falso, hipócrita!".

 

"Meu pai não é isso não, seu desgraçado! Quem é você pra falar de moral e comportamento, seu corrupto de primeiro grau, tantos golpes no mercado financeiro, e ainda tá aí solto, não existe mesmo lei  nesse país!".

 

"Olha quem fala, a cunhadinha moralista que vive nos shoppings à cata de homens mais jovens, de rapazes pra satisfazer seus apetites sexuais. Você é tão puta quanto a irmã que se mandou".

 

"É isso mesmo, essa cínica ninfomaníaca, que por azar é minha prima, vive por aí na caça, e o babaca do marido dela finge que não vê, acho até que dá força, pra se excitar, não consegue dar conta com toda a gordura dele, e a cocaína que consome adoidado no escritório".

 

"Espera lá, quem é você pra falar dela e dele, sua contrabandista de joias, moambeira?! Não é pelo fato de ser tua parenta que vou livrar tua cara, viu? O marido dela é um homem de bem, trabalhador, realizador, dinâmico, bem sucedido, uma pessoa muito digna".

 

"Tá defendendo ele porque tem o olho na grana dele, pensa que não sei de tuas conversas e conchavos? Pra investir naquele candidato e na campanha dele em que você vai trabalhar, né? Um candidato tão corrupto como você, quem diria que depois de praticamente ser expulso da política, com todas aquelas acusações, provadas, volte agora, e vai acabar sendo eleito, esse é o Brasil, pátria amada salve salve!"

 

"Todo mundo aqui sabe, você é filha de um assassino, que mandou matar a assistente que trabalhava com ele, porque ela descobriu e iria denunciar à polícia a lavagem de dinheiro e as remessas ilegais que fazia praquele paraíso fiscal...".

 

"Ih,mais essa no "currículo" dessa famigerada, que passa por profissional competente em direito tributário, pessoa séria e proba, e é tão corrupta e bandida como o pai e como esse crápula de quem vai fazer campanha...".

 

"Cretina que você é, e se diz minha amiga, "prima querida", cobra venenosa e desprezível!"

 

"Quero a mamãe!", grita a garota. "Quero o meu pai!", berra o menino.

 

"Pessoal, péra aí, um pouco de compostura, chega de sandices e brigas, estamos em festa! Papai não merece isso, sempre foi tão bom e dedicado à família, de conduta ilibada, honesto...".

 

"Não merece, não merece ?! O crápula quase matou meu filho, agora; violento como foi sempre com a mulher, com as filhas, com os empregados da casa, com os da fábrica. Não se faça de boba, nem a nós, cunhada. Ah, essa é boa: honesto? Enriqueceu superfaturando obras pro governo e comprando políticos em Brasília e no Brasil todo. Ilibada, ilibada! Só falam nisso, eta palavrinha mais falsa pra esse falso aí: tanto traiu a mãe e tia de vocês com todo tipo de mulher, até prostitutas, não façam essas caras cínicas, foi amante durante anos de uma corista do teatro de revistas, levou um empresário ao suicídio ao descobrir que o "santo" patriarca de vocês comia a mulher dele toda semana. E até hoje continua tarado, sempre de olho nas jovens e ninfetas, eu já não vi?!...".

 

A moiçola, ainda paralisada na cadeira junto à mesa, estremeceu. O homem no canto da sala, sempre atento a ela, percebeu.

 

"Cala a boca! Ele não merece isso, e logo no dia de seus 86 anos, vocês parecem selvagens, insensíveis, desumanos!".

 

 "Olha, papai tá passando mal, vai ter um troço, chama o médico pelo amor de Deus, o coração dele já tão danificado não vai resistir! Acudam!".

 

"Morre logo, desgraçado! Não é o que todo mundo quer, pra pegar a grana da herança ?!... É isso que ele merece, e que seja a morte mais horrenda!".

 

"Flho da mãe, patife, que mau caráter! Dá um jeito no teu marido, minha irmã!".

 

"Ha-ha, vocês pedem respeito e comiseração com esse déspota...".

 

"Quem é você pra falar em respeito e o cacete, que não se dá ao respeito, metido a intelectual, escritor, poeta, todas as noites no bar em Botafogo, enchendo a cara e convivendo com bêbados, drogados e mendigos, quem sabe também não se droga, mal consegue chegar em casa, alta madrugada. Tua mulher é uma santa que ainda atura isso, se fosse eu já tinha me mandado...".

 

"Se mandado como a puta de tua irmã, é isso?".

 

"É a síndrome de Lima Barreto,que ele adora, tem até o mesmo nome; vai acabar do mesmo jeito...".

 

"Cala a boca, Joaquim Maria, vai pro inferno com teu pessimismo doentio e esse ar blasé de sábio... E que coisa isso de  cada um vocês ter o mesmo nome daquele que os inspira, idiotice. Será que os pais já deram os nomes como homenagem, ou vocês, bobalhões, é que incorporam o espírito deles, hein, hein?".

 

"Herdei esse nome com muita honra. É o que digo: vendo esse cenário e a existência e a vida que vocês levam, não vou ter filhos, "não deixarei legados, etc., isso me consola, pelo menos", mas tenho família, essa que está aí, aliás, igual a todas as outras, com seus disfarces e hipocrisias, exemplo mais bem acabado da miséria da espécie humana...".

 

"Meu marido tá nervoso, porque papai agrediu o menino; fiquei tão apavorada, em choque,  que não consegui me mexer... E ele não é bêbado não, sua vaca! É muito inteligente, um gênio...".

 

"Mas que deixa a mulher em casa e vai beber na rua. E não sabe conter a ganância material da mulher que tá sempre comprando, consumindo, se endividando, que nem doida, e só fala na herança do papai...".

 

"Desgraçada, toma isso, sua...". O soco desferido com raiva atingiu a outra no  supercílio, que logo começou a sangrar.

 

"Que horror, duas irmãs se matando assim! Todas sem-vergonhas, sem pudor, sem compostura...".

 

"E você, sua carola, não vem querendo dar lição de moral, que você também faz das suas...".

 

"O que quer dizer com isso? Me respeite, sua...".

 

"Quero a mamãe!", grita a garota. "Quero o meu pai!", berra o menino.

 

O velho, meio desfalecido no sofá, fecha os olhos e pensa na morte; vem à mente a morte de Ivan Ilicht, o conto que a filha do meio, psicóloga intelectualizada, vidrada no autor — dizia que era o melhor conto jamais escrito, em qualquer literatura, o tal de Tolstoi, que ela adorava. "eu tinha de fazer dela minha favorita, isso sim, não aquela ingrata" — lhe dera há alguns anos e que volta e meia comentava e até lia para ele. Especialmente aquele trecho sempre lhe impressionara: "será preso ao leito, frente à morte certa, que a vida de Ivan Ilitch se revelará mais livre, mais autêntica e pujante", sabia até de cor essa frase. Queria mesmo é que cheguasse a  hora final de se livrar de vez de todos e daquela família.

 

Todos falam ao mesmo tempo, todos gritam, agridem-se, acusam-se, ninguém se entende, verdadeira Babel, engalfinham-se, caos total. Vidros se quebram, estilhaços pelo chão.

 

A moiçola, inerte no mesmo lugar, assombrada com tudo aquilo, vê o homem sair do canto e atravessar a sala, abrindo passagem entre os contendores, chegar a seu lado e acariciar sua cabeça, murmurando "não tema, calma, fique tranquila". Pega em sua mão, ela sorri sem graça, meio sem jeito, mas  deixa a mão na mão dele e a aperta.

 

Alguém chega de repente na sala, em meio à balbúrdia, "é dona Nadir, bem-vinda dona Nadir, que prazer!". "Mas que alegria, que beleza, que festa animada, linda! E que família feliz, unida! Feliz aniversário, Seu Mauro!".

 

 

dezembro, 2010